Tava uma noite fria do inferno. Eu sei que já reclamei disso, mas só tem uma coisa que eu detesto mais que um frio do inferno: um calor do inferno.
Mas mesmo naquele maldito frio infernal eu tinha um trabalho para fazer. Branca Carmim Neves tinha sido assassinada. Não que isso fosse uma questão pessoal para mim, mas essa pica me tinha sido jogada no colo. Não, a questão pessoal era outra...
Por isso eu fiz minha antiga ronda.
Acho que isso tem muito a ver com o porquê do Mago ter pedido especificamente para eu cuidar do assunto. Na polícia de Willingham City a gente tem aqueles títulos chatos que todas as polícias têm. Eu mesmo era capitão antes de ser... “convidado a me retirar”, mas a gente prefere se chamar pelos nossos apelidos carinhosos.
Todos os cadetes são chamados de Moglis e o centro de treinamento é na parte mais tensa da Selva (se nada mudou ainda devem ser Baloo e Baghera que treinam os Moglis sob a supervisão da Raksha e do Rama).
Desde Mogli o meu trabalho tem sido patrulhar o Bosque (sempre me pergunto nas bolas de quem eu pisei pra ser mandado para tão longe do centro de treinamento). A maioria dos Moglis se forma para ser Elefante, a tropa responsável por policiar as ruas, mas eu consegui me tornar um Lobo, os detetives da corporação. A gente vê melhor, ouve melhor...
E por mais que não fosse um lobo já há algum tempo, agora eu tinha que voltar a ser um. Refiz minha velha rota: passei nas docas, falei com velhos conhecidos em todo o território, verifiquei dos peixes menores, como Os Meninos Perdidos, até as grandes gangues, como as Bruxas.
Tinha até topado com o Tímido, um dos capos da Branca (e junto com o Doutor e o Zangado, o único que não era um viciado crônico). Tímido era responsável pelo tráfico de informações da organização da Branca. Depois de explicar tudo o que eu sabia para ele, o baixinho até topou me passar algumas de suas informações.
Depois do trabalho de sempre, segui a rotina e fui parar na Casa dos Doces, um bar famoso em todo o Bosque. Eu tinha marcado com ela e esperava que a ruiva pudesse me ajudar em algo.
A Casa dos Doces era um dos domínios da máfia conhecida como As Bruxas e eu tinha feito barulho o suficiente para uma delas em pessoa vir me receber na porta.
- Ah, olha o que meus doces atraíram – Frau me deu o sorriso mais inocente que aquele saco de rugas que ela chamava de rosto permitiu. – Um Lobo.
Frau parecia uma velhinha inocente e amável, mas era uma das cabeças das Bruxas, líder de todo o Bosque. Havia muito pouco que aquelas mãos esqueléticas não tivessem feito. Atualmente, sua principal função era administrar a Casa dos Doces e, a partir dali, todo o Bosque e as outras partes da Floresta que formavam seu território.
- Eu não sou um Lobo. E não é como se fosse a primeira vez que eu apareço aqui, Frau. Ou a centésima. A diferença é que eu raramente tenho recepção na porta.
- É só porque nós nunca sabemos quando você está vindo.
- Que mentira, Frau: eu estou sempre vindo e vocês sabem.
- Mas hoje nós sabíamos exatamente quando. Você fez questão de avisar, senhor... como devo chamá-lo, se não de senhor Lobo?
- Que isso, Frau? Somos velhos amigos. Pode me chamar de Reynard. Eu vim me encontrar com uma de suas clientes mais assíduas: Rosa Carmim.
- Muito bem, senhor Reynard.
A contragosto a velha me conduziu até onde Rosa me esperava e até me serviu meu tradicional bloody mary. Afinal, ainda há respeito pelos velhos clientes.
Rosa Carmim era irmã da Branca. O velho Coronel Neves era famoso por ser um mulherengo tarimbado. Branca deu sorte da mãe dela ser a mulher oficial. Rosa não deu essa sorte: era filha bastarda do Coronel.
- Rosa.
- Lobo.
- Eu não sou mais um Lobo.
- Muito tempo que você não aparece... – ela era muito parecida com Branca, a única coisa que diferenciava as duas é que Rosa era mais bronzeada e seu cabelo era de um ruivo vivo. – Então por que resolveu aparecer?
Foi só quando eu estava percebendo a semelhança entre as duas que eu percebi que ninguém teria dito a Rosa que sua irmã havia batido as botas. E, do maldito nada, eu era responsável por aquela declaração delicada. Oh cacete, por que essas merdas acontecem comigo?
- Rosa... Sua irmã... A Branca... Branca foi assassinada.
É... Eu realmente não sou bom com essas coisas.
Rosa me encarou por um instante para ver ser a informação era verdadeira e, quando decidiu que eu falava sério, simplesmente comentou:
- Que ela apodreça no inferno de onde nunca devia ter saído, aquela desgraçada.
Já me sentia melhor por não ser bom com essas coisas.
Rosa serviu uma dose de bloody mary para mim e outra para ela. Uma parte de mim, por instinto, quase disse “obrigado, mas estou de serviço”. A vantagem de ser freelancer é não ter que dizer esse tipo de coisa.
- Quem fez o favor pra humanidade de dar cabo daquela filha da puta? – Rosa bebericou o copo.
- Ainda não sei quem apagou Branca. Vim aqui justamente esperando que você pudesse me ajudar.
- Você não vai fazer uma pergunta idiota como “quem teria motivo pra matar Branca Neves?”, vai?
- Eu pareço um cavaleiro para você? Se o Grande M quisesse alguém para fazer perguntas imbecis, ele teria mandado o Lancelot. Não, eu sei quem teria motivo matar a Branca. Até uma pedra sabe essa: todo mundo. O ponto é: quem teria capacidade para matar Branca Neves. Você pode me ajudar nisso?
- Por que eu poderia?
- Porra, Rosa, tira o pé da minha janta.
- O que eu já te disse sobre a maneira de falar?
- Porra, Rosa, tira o pé da minha janta, por favor.
Ela levantou e serviu mais dois copos de bloody mary.
- Tentando me embebedar, Rosa? – eu peguei o copo destinado a mim.
- Você já tem que ‘tá chapado se acha que eu sei alguma coisa.
- Rosa, qualquer coisa ajuda. Olha, eu vi a cena do assassinato da sua irmã. Não havia qualquer vestígio de luta. Até tinha um maldito caixão de vidro! Isso significa algo para você? O ponto é: quem conseguiria chegar tão perto sem levantar suspeitas. Quem conseguiria levar um maldito caixão de vidro para dentro da porra daquela fortaleza?!
- E como caralho eu iria saber?!
- Rosa, eu ‘tô implorando...
- Quem sabe aqueles anões dela?
- Nós dois sabemos que é mais fácil eles desistirem do crime. Não, claro que não. Sua irmã tinha algum amante?
Ela riu e até eu tive que admitir que a pergunta tinha sido feita de um jeito idiota.
- Sua irmã tinha algum amante digno de nota?
- Os de sempre: Charming...
- Eles não tinham acabado?
- E voltado e acabado e voltado e acabado e voltado...
- Entendo. Mais algum?
- Um ou outro da imprensa... Ah, qual é, Lobo? Isso não vai te levar a lugar nenhum. Ela era Branca Carmim Neves, ela podia ter quem quisesse na hora que quisesses. E ela sempre foi dada a desejos.
- Por que raios vocês falam o nome dela todo? Por que vocês no castelo fazem questão de sempre usar nomes completos? A gente na lei usa só o sobrenome. Eu não sei o primeiro nome de quase ninguém no ramo. Por que o resto do mundo não pode ser assim?
- Falando na lei: Lancelot.
- Lancelot?! Lancelot, o cavaleiro?! Agora sim, nós estamos chegando em algum lugar.
- Lobo, eu não convivo com Branca há anos. Se eu sei de alguma coisa é porque nesse ramo a gente acaba sabendo das coisas, mesmo. Então se você for gastar mais do meu tempo eu vou ter que te cobrar a hora.
- Não vou mais tomar seu tempo, Rosa – eu disse virando o resto do meu drink. – É sempre bom te ver, Rosa.
- Principalmente nessas ocasiões festivas – disse ela, como quem propõe um brinde.
No outro dia eu cheguei cedo no escritório e já achei me esperando o que fui procurar: os jornais da manhã.Não que eu esperasse encontrar nenhuma pista ali (mas sempre havia a pegada da sorte, não é?), eu queria mesmo saber a repercussão daquilo tudo. A grossa edição de domingo do Irmãos Grimm estava sobre o resto pedindo para ser lida, e eu leria: eram eles que falavam da parte rica da cidade. “O grande conglomerado de notícias” e aquela bobagem toda. Menos de meia hora depois eu me encontrava com Galahad de novo. Novamente no Palácios, bem próximo à casa de Branca. Esta propriedade era tão vasta e cara como a mansão Neves, mas estava mais para uma chácara que uma mansão.Eu saltei do táxi praticamente junto com Galahad saindo de sua viatura, e me juntei a ele.- O que nós temos aqui, Galahad?- Um problema. Um puta de um problema – ele suspirou. – Cinderela “Cyndi” Cenerentola. Ex-modelo. 05
O relógio bate as doze badaladas. Na virada de um dia para o outro eu penduro-a aqui: em meio às abóboras que ela adorava. Cuidava delas antes da fama e a elas retornou.Me pergunto quanto tempo para o cheiro de carne fazer os ratos superarem o medo do espantalho e virem se banquetear nessa torta de carne com abóbora que fiz pra eles. É assim: quando a gata sai, os ratos fazem a festa.O vestido logo estará em ruinas, mas os sapatos de cristal não.
O sol rompe a escuridão e entra pelos vitrais.Mas só eu estou aqui para ver a aurora. Ambas as auroras.Enquanto uma irrompe a outra se entrega à escuridão. Ela está linda caída na sua cama. Linda como uma rosa. Uma rosa cujo os espinhos foram podados e depois colhida.A beleza da morte.
- Os magos confirmaram: o sangue na placa da Cinderela era da Aurora. E o do quarto da Aurora era da Branca. – Galahad anunciou. Estávamos em um bar: eu, ele e Mulan.- Mas como ele conseguiu o sangue? – Mulan perguntou. – Nenhuma das vítimas teve qualquer corte de qualquer estilo. - Bancos de sangue – eu disse. – Ele fez isso nos velhos tempos: ele assaltou o banco de sangue e com isso sempre deixava um pouco de sangue do próximo alvo na cena do crime. Não sei se fazia isso como desafio ou para apavorar o coitado. Estávamos na viatura dela indo para meu escritório. Ela queria ver minhas anotações. Pra ser sincero, eu queria também. Não fazia ideia de verdade do que estava acontecendo, nada daquilo era a cara do Grande Lobo Mau.- Então... – ela perguntou meio sem saber como. – Por que o Mago colocou você nessa?- Experiência prévia. Eu fui o responsável pelo caso do Grande Lobo Mau na outra vez que ele surgiu. E você? Como você é uma especialista se a gente nem sabe direito o que ‘tá procurando?09
Mulan guiou a viatura o mais rápido possível, mas meu escritório era meio longe do porto. Quando chegamos lá, Hook e Galahad nos esperavam junto a um pequeno barco.- Jim, seu velho puto do mar – eu saudei.- Rey, como está indo com a tentativa de parar de fumar?- Uma merda. Já ‘tô até escolhendo minha marca preferida de palito de dente.- Dei
Uma ruiva. As que mais me incomodam são as ruivas. Me incomodava tanto quanto a voz dela.Mas dei um jeito nisso. Admito que me deixei levar pela fúria. Exagerado um pouco. Mas eu sou o predador, sou o filho do vento norte, sou o Grande Lobo Mau. Qual é a vantagem de ser o Grande Lobo Mau se isso não te permite ser cruel e furioso às vezes?---------------------------------------------------------------------------------