Eram três, muito arredios, aterrorizados como os outros que encontrara. Manuela suspirou, já era o quinto caso em menos de dois meses. Sempre 3 cães grandes utilizados para caça ou guarda nas fazendas, marcados com aqueles quatro buracos profundos, pouco sangue e muita agressividade. Os primeiros três grupos encontrados em semanas distintas já haviam morrido, completamente fracos, mas ainda assim agressivos. Não havia nada de mais nos exames. Apenas a perda excessiva de sangue. E aquela outra substância que ninguém conhecia bem, aquele veneno esquisito que não aparecia em nenhum estudo de veterinária e, agora que os casos se avolumavam, de medicina, que ela tenha encontrado.
-Dona Manuela, que que nóis vamo fazê? O povo tá querendo sai pra caça esse bicho, tá dizendo que deve ser alguma coisa do capeta que escapo do inferno. Ou o lobisomem das lenda da floresta.
-Que bobagem seu Aristides! Isso não é nada do inferno nem sobrenatural.
Pensou no desperdício que seria matar um animal raro como o responsável pelos ataques, tinha pena pelos cães, mas gostaria mesmo de examinar o autor bizarro que sugava o sangue das vítimas com quatro caninos longos e pontudos, e deveria confessar a si mesma, gostaria de ver esse animal em atividade.
Provavelmente era alguma espécie que, como tantas outras, teve sua subsistência alimentar e até mesmo sua casa, destruídas de forma agressiva e criminosa pelos humanos, e agora procurava sobreviver próximo de onde poderia encontrar comida e abrigo, imaginava que não deveria ser muito grande, pois não atacava animais de porte maior, como vacas e cavalos, somente os cães. Não imaginou que de fato já conhecia os autores daqueles ataques, era impossível para ela que fizessem algo contra os animais.
–Isso devem ser morcegos com alguma modificação por conta dos pesticidas que esses fazendeiros usam. Se eles cuidassem mais da qualidade dos produtos que plantam as coisas seriam diferentes! Mas não, eles preferem envenenar seus produtos, o solo e os rios, apenas por preguiça e ganância. - Falou para apavorar, modificações não aconteciam assim, mas era bom que sentissem medo dos venenos que faziam todos ingerirem.
-Dona Manuela, cuida o que a senhora fala, esse povo das fazenda é bravo! – Aristides trabalhava na fazenda em que os cães foram atacados, era um homem simples, gostava da “doutora dos bichos” e não queria que se metesse em encrencas, apesar de concordar com ela.
Deu de ombros e carregou os cães de volta para seu consultório, uma das vantagens de ser a única veterinária realmente boa naquela cidadezinha era poder falar o que quisesse, afinal quem mais cuidaria dos rebanhos deles? Ligou para uma amiga pesquisadora que trabalhava em uma universidade da capital e explicou o problema. Aline disse que não poderia ir até o interior do estado pelas próximas duas semanas, mas que enviaria uma aluna de doutorado muito competente para ajudá-la.
Manuela sedou os cães, examinou as feridas e os deixou no soro, alimentou e os encheu de vitaminas, mais antibióticos. Foi exatamente o que fez com os outros, não teria efeito para uma cura, mas ao menos tentaria os deixar sem dor e bem alimentados. Observou eles por um tempo, ainda sedados, acariciando o pelo que já começava a perder o brilho.
-Quem fez isso com vocês meninos? Digam pra tia Uyara, por favor. - Suspirou e tratou de deixá-los presos nas grandes gaiolas, com estoque de ração e água, antes que acordassem e não deixassem que os tocasse mais.
Perto das 13:30, entrou no restaurante de Cléber e sentou na sua mesa preferida, bem no fundo do grande salão, o rapaz que veio atendê-la se aproximou sorrindo, já com um suco de caju servido no copo grande e liso.
-Obrigada Anderson, o Cléber está?
-Coordenando a cozinha, eu disse que você estava aqui e ele disse que vem servir seu prato ele mesmo, e já aproveita para almoçar. Aliás, o suco de caju, segundo ele, serviria para acompanhar seu prato.
-Tá bem, eu espero ele. O que vou comer, que combinaria tanto com esse suco? - Fez uma expressão desconfiada, mas era apenas brincadeira.
-Ele disse que será surpresa. - Deu de ombros sorrindo.
Manuela riu também, Cléber deveria estar querendo que provasse um prato novo, eram amigos desde a infância, e moravam na mesma casa atualmente. O amigo era seu confidente, como um irmão mais novo, ela cuidava dele e ele cuidava dela, se protegiam e sabiam todos os segredos um do outro. Cléber sabia de coisas que ninguém jamais soube a respeito dela, e Manuela conhecia os maiores segredos e temores dele também.
-Então! Prove, e depois direi o que tem aí. - Cleber se aproximou com dois pratos, deixou um na frente dela sobre a mesa e a encarou depois de sentar, apertando os olhos.
Manuela o olhou desconfiada, mas apenas por encenação, era a única que experimentava as criações do amigo, sempre impecáveis. Encheu o garfo e provou a delícia à base de algum peixe fresco e saboroso, mais temperos adicionados na medida exata, era incrível, mas tentou não demonstrar nada para ele. Adorava o deixar curioso também, já que ele não dizia nunca como era feito um prato novo que a fazia provar.
-Diga! Serve para almoços diários ou está no nível do meu restaurante?
-Essa pergunta nem faz sentido, eu almoço diariamente aqui!
-Você é uma menina malvada, sabia? Vai Manu, diz logo o que você achou?
-Perfeito! É claro que está perfeito Cléber! - Riu e comeu mais um pouco, o olhando divertida, ele fechava os olhos e fazia gestos com as mãos e o tronco, como um maestro esperando aplausos. - Eu colocaria mais pimenta, mas isso sou eu, seus clientes provavelmente preferem apimentar suas comidas com mais cautela. Mas é incrível, você se supera a cada novo prato!
-Obrigado! - Só então ele provou, pareceu indeciso quanto a gostar ou não, sacudindo a cabeça lentamente para os lados, como quem não tem certeza. Depois fechou os olhos e sorriu satisfeito. - Se eu pudesse, beijaria esse chef!
Manuela soltou uma gargalhada, levantou e beijou a testa dele com carinho. Sentou novamente e comeu em silêncio.
-Meu prato causa depressão por acaso? - A olhou de lado, desconfiado. - O que foi?
-Mais 3 cães hoje, não sei mais o que fazer. Quer dizer, chamei uma amiga da universidade, ela vai enviar uma doutoranda, pra me ajudar a testar eles, ao menos descobrir um remédio que auxilie.
-Poxa amiga, não existe mesmo nada que identifique esse animal?
-Nada, talvez agora com os equipamentos modernos da doutora eu possa fazer mais testes, ver que espécie é essa e como remediar a situação dos cães.
-Manu, você não acha que talvez… - Ele a olhou daquele jeito, eram tão amigos que se comunicavam pelo olhar às vezes.
-Claro que não Cleber! Imagina se ela faria mal a algum animal. Não, ela pode ser dura, mas não é cruel. Tenho certeza que não tem nada a ver com isso.
-E por que você não vai perguntar para ela então? Não sei, talvez possa ajudar a encontrar o animal responsável pelos ataques.
-Já pensei nisso, os primeiros cães, depois de mortos, me deixaram arrasada, eu fui até lá, mas ela não estava. Provavelmente quando retornar vai me ajudar, até lá tenho que me virar sozinha. Já consultei o pajé da reserva, ele me disse que não sabia, disse que era uma doença dos brancos, que eu deveria deixar que eles cuidassem.
-Ele não gosta mesmo dos brancos não é? - Deu de ombros. - Bem, eu sei o que eles fazem com meninos negros e com mulheres indígenas, por nossa própria experiência, sei o que fazem com crianças negras, pelos jornais diarios, você sabe que somos exceção não sabe? E ainda assim, sofremos nossa cota, não podemos julgar ele. Mas é que são cães, quer dizer, não são brancos fazendeiros.
-Eu sei, foi isso o que disse, ele me respondeu que sentia muito, mas realmente não poderia ajudar.
-Quem sabe? Talvez essa doutora ajude, ilumine todas as suas dúvidas, e vocês salvem os cãezinhos.
-É espero que sim, porque a partir de amanhã eles vão começar a perder pelo e…
-Nã nã não!!! - Levantou a mão a interrompendo. - Sem detalhes sórdidos sobre o que acontece a eles, me deixe apenas imaginar. - Ela encolheu os ombros e riu divertida, ele continuou mudando de assunto. - Você vai direto para casa hoje? Ou vai visitar o fazendeiro que tem a bundinha mais linda da cidade?
Manuela soltou uma gargalhada e continuaram conversando sobre tudo que não fossem detalhes médicos e veterinários, ele jamais deixaria que falasse sobre isso, sentia enjoos e tinha de correr para o banheiro quando ela insistia. Quando crianças ela costumava fazer bastante isso.
Foi para casa tarde, ficou com os cães por muito tempo, tentava se aproximar deles. Rosnavam e levantavam, já com as pernas fracas, não conseguiriam atacar ninguém, mas como estavam aterrorizados, seu instinto os fazia reagir. Isso a fez parar com as tentativas de aproximação, apenas se certificou que tinham comida suficiente, cheia de vitaminas, misturou algumas ervas na água, não custava tentar se utilizar da sabedoria ancestral, afinal, ela era uma mulher indígena sábia, consciente do poder das ervas e plantas que encontrava abundantemente nas florestas. Ervas que os brancos não faziam ideia, e não tinham curiosidade de descobrir.
Entrou em casa e viu o celular tocando no fundo de sua bolsa, apenas silenciou a chamada, não era hora de falar com Fabricio, queria ficar sozinha e pensar nos problemas. Queria que a Senhora estivesse ali, tinha certeza de que ela poderia ajudar, de alguma forma, naquela situação.
Pensou apenas por um momento, que seu sumiço se devia à desobediência, a Senhora não gostava do que Manuela tinha com Fabricio, mesmo que não fosse nada sério, isso impedia ela de cumprir seu dever. De todos os deveres que precisava cumprir, este era sem dúvidas o que mais a faria feliz, e o único que não poderia, de forma alguma, acontecer.
Tomou um banho demorado e foi até a varanda para fumar um baseado, acariciou seus cachorros e gatos, depois de os alimentar, e ficou sentada por muito tempo observando a mata a sua frente, os sons dos animais ali perto, seguros como em poucos lugares atualmente. Um de seus gatos deitou em seu colo e ela fazia carinho em sua barriga, ouvindo o ronronar alto, pensou que, não fosse a situação com os pobres cães, e a desaprovação da Senhora, poderia mesmo dizer que tinha uma boa vida.
Hellen foi chamada no escritório da Professora Aline pela manhã, pensou que era algo a respeito de sua bolsa, ou orientações sobre seu projeto de doutorado, em fase final, com as graças de todas as deusas.Mas não era sobre nada disso, Aline a recebeu com um sorriso franco e pediu que sentasse diante dela nas poltronas simples do escritório.-Preciso pedir um favor para você. E para ser totalmente honesta, não será nada muito agradável para alguém que está terminando seu doutorado. Apesar de servir muito para seu campo de pesquisa. - Hellen franziu a testa e ela ergueu a mão para se explicar. - Entenda que você não está sendo obrigada a nada, é um favor pessoal. Eu a conheço a pouco, mas acredito que você é
Os três homens estavam armados com espingardas e facas, andavam pela mata, o pouco que ainda existia na região, como se estivessem fazendo um grande serviço para a humanidade.Era um pouco de crendice, muito de preconceito, medo do que não conheciam. Lembravam das histórias contadas sobre os monstros indígenas, seus ataques aos "pobres homens brancos”. Então sentiam, realmente, que a importância do que faziam deveria ser reconhecida. Se imaginavam carregando o monstro sanguinário, fosse ele real ou sobrenatural, até a cidade, e mostrando a todos o poder do homem branco sobre as feras da natureza.Viram quando a indígena que cuidava dos animais passou com seu carro. Ela os irritava um pouco, uma indígena dona de terras, herdeira de fazenda e ainda por cima com forma&cce
Maria estacionou na frente da delegacia da pequena cidade, distante algumas horas de sua própria cidade, e palco de uma das histórias sobre ataques semelhantes aos que investigava. Não tinha muitas esperanças, os casos ocorreram em um período distante e obscuro do país, em que informações eram ocultadas do conhecimento público. Havendo sempre a possibilidade, quando se tentava investigar algum crime da época, de que tudo fosse invenção para encobrir o terrorismo de Estado cometido com liberdade por 21 anos.Registros eram forjados, escondidos e incinerados, assim como os assassinatos e desaparecimentos da época. Mas tinha esperanças de ao menos conversar com algum policial, mesmo que aposentado, que lhe desse alguma informação.Entrou na delegacia e f
Hellen agradeceu Luiz pela carona e entrou em casa rápido, ainda tinha medo das onças, não confiava muito nessa história de “acordo” de Manuela, achava onças lindas, quase mágicas, mas as preferia longe dela.Sentou na bancada da cozinha esperando o café terminar de passar na cafeteira, e ligou para o namorado.-Que bom que você lembrou de mim! - A voz dele era um pouco agressiva, irritada.-Você está bem?-Como se você se importasse Hellen! - Um silêncio irritado.-Qual o problema Edu?-O problema é que você desaparece, não me ouve quando digo que essa história r
O churrasco foi marcado para a noite que antecederia o “dia D.” Cerca de 10 proprietários de terras, somados a alguns comerciantes influentes na pequena cidade, compareceram. Eram os membros mais importantes, aqueles que organizaram os ataques naquela localidade, participando dos grupos que uniam seus iguais, de todo o país.Arlindo sentou com seu copo de uísque e beliscou um pedaço de carne, estava satisfeito com os planos a serem realizados. Finalmente tomariam uma atitude decente para expandir seus negócios, e de quebra acabariam com a empafia daquela “india” que se achava importante.-Tudo pronto? - Otavio parecia nervoso, era o mais jovem deles, havia herdado os negócios do pai, rico criador de gado, há pouco tempo.-Se acalme, menin
No dia seguinte ao jantar, Manuela acordou cedo, pouco depois de o sol nascer, e entrou na floresta, uma das meninas da senhora a aguardava logo na entrada.-Diga a mãe que eu vou entrar com a delegada, ao meio dia de hoje. Vocês não fiquem rondando onde estivermos, deixem a pedra de sacrifícios limpa e se escondam. - Uyara a olhou muito séria, não a conhecia, mas já tinha ouvido falar nas meninas morcego, primeiras filhas da Senhora.A menina acenou e sorriu com seus dentes grandes, dois caninos de cada lado. Abraçou Manuela e desapareceu atrás das árvores. Foi ao encontro da Senhora, que descansava sobre um altar em sua morada de quartzo.-Sua guardiã disse que vai entrar com uma delegada.-Eu
Tiros na cabeça e no peito derrubaram não somente os jagunços que estavam aguardando a incursão na mata, mas também mais da metade dos fazendeiros da cidade, que se juntaram, por alguma razão, aos seus empregados na vigília.Os policiais da cidade foram localizados no meio da confusão, quando viram a delegada correram para ela, ainda com os rostos brancos e as mãos trêmulas.-Doutora! Uma desgraça, obra do diabo ou sei lá o que! – Um dos policiais falava com a voz falhada, gaguejando.-Do que você está falando? – Maria o encarou séria. – Se acalme, se recomponha e me explique o que afinal aconteceu aqui!-Eles estavam todos aqui doutora, em paz e
Maria se desculpou, menos de uma semana após as mortes. Houveram mais casos de violência na cidade naquele dia, aparentemente todos participaram de um churrasco para combinar o tal dia do fogo, beberam bastante, e havia uma substância estranha na casa onde ocorreu o tal churrasco, que causava alucinações em pequenas quantidades, e apagava em grandes. Coincidentemente, a mesma substância que fora encontrada nos corpos das vítimas. O homem - dono da propriedade onde ocorreu o churrasco, e a substância foi encontrada - , estava entre as vítimas em frente a casa de Uyara.Ninguém foi preso, o caso se encerrou com uma explicação plausível, o povo era cheio de crendices, e talvez a culpa os tenha feito enxergar as onças que seriam queimadas, ou perderiam seu lar, no tal dia D.Último capítulo