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A NÚMERO UM
A NÚMERO UM
Por: Raquel De Oliveira
A PRIMEIRA GUERRA

ROMANCE DE RAQUEL SANTOS OLIVEIRA

A NÚMERO UM

ROMANCE BASEADO EM FATOS REAIS

Dedico esse livro a Júlio Ludemir, meu mestre. A ti não necessitaria escrever. É sua a dedicatória, os capítulos, as linhas, os pontos finais, vírgulas e acentos e o todo, pois sem ti não haveria.

A Écio Salles, meu amigo e grande chefia que oportunizou a janela por onde, hoje, vislumbro um horizonte superior contagiado pela confiança no mérito das minhas  possibilidades.

A Jacqueliline que num dia transformou minha derrota em honra com sua amizade e seu carinho.

Em memória ao bando e a Ana Lúcia.

AGRADECIMENTOS

Por toda a ajuda e apoio sou   grata:

A  Deus por ter me dado força, coragem e fé para concluir esse livro.

A dupla genial: Ècio Salles e Júlio Ludemir enquanto  criadores da Flupp

A toda família flupenseira por todo carinho e incentivo.

A FLUPP (Festa Literária das Periferias) que me descobriu  como poeta e escritora e me ensinou como um pássaro ensinaria um avião a voar.

A amiga, orientadora e mestra Lúcia Venina por ter feito a correção ortográfica e por todo o carinho que ilumina de maneira especial os meus pensamentos, me levando a acreditar na vida e na minha capacidade.

A Bernardo Vilhena por ter me aturado enquanto orientador e ter me mostrado a verdade das letras.

Ao João Baiano por apostar no meu talento e estar junto em todos os momentos.

A todos do Caps-AD Centra Rio por todo apoio, amor e por me ensinarem a ser uma pessoa melhor a cada dia.

As meninas super poderosas pela amizade e o carinho e por me aceitarem como eu sou.

A Danielli Bernardino por me honrar com sua maravilhosa doçura e amizade sem medidas.

Aos meus filhos e minha nora por me aceitarem e me amarem e acreditarem nos meus ideais.

A todos que direta ou indiretamente colaboraram para a elaboração desse trabalho.

“A literatura é uma defesa contra as ofensas da vida”. (Cesare Pavese)

A PRIMEIRA GUERRA

Capítulo um

-Vou armar uma grande correria esperando me dar mal e morrer do mesmo jeito que você, meu amor!  Já se passou tanto tempo e eu continuo  esperando!

Continuava esperando a morte que, como marcha nupcial me levaria até você, meu único, grande e verdadeiro amor! Tudo é saudade!  Tudo é você!  Nada faço para prolongar essa minha vida insistente. Ao contrário, vou pela contramão e alguém pula na frente e me puxa para a porra da calçada!  Tentei várias vezes, essa maldita insiste em continuar!  Vida!  Parece que sou imortal...

-  Não existe vida sem você! Nada do que vivo é real!  Nada é você!    Nada sou eu de verdade. Você não está aqui!   Eu também não deveria estar... Não estou. Não quero estar!   Sou uma carcaça vazia. Devoro-me em quantidades cada vez maiores de cocaína.  Vou tocando a boca de fumo e aprendendo na prática como é viver sem você.  O passado não volta.  Nada será como antes.  Nem eu. A amargura me guia em ações cada vez mais ousadas. Buscava a morte. Qualquer anestesia era pouca.  Vai além do que o meu corpo pode suportar. Mas me mantinha acordada por vários dias e livre de qualquer impulso sexual que pudesse atrapalhar o negócio.  Agora estava ali. Movimento montado. Cachopa!  Dezenove homens sob o meu comando e, todo dia,  eu só queria morrer.  A dor que senti quando Pará morreu não passava!  Três anos depois e eu ainda sentia como se tivesse acontecido naquele presente!

Em verdade essa dor me acompanha até hoje!  Nunca consegui superar. Morro de saudade todo dia. Queria estar morta também, mas não estava.  Tinha as armas e lutei perseguindo o fim que me levaria ao encontro do meu guerreiro.  Foram três anos de guerra. Luta armada intensa! Por três anos depois da sua morte me dediquei ao tráfico de drogas da favela da Rocinha.  Bonitona:  esse era meu nome de guerra.  Três anos!  Muitos morreram. Para mim o fim não veio.  O morro estava em paz!  Eu não!  A vida se incumbiu de me afastar desse envolvimento com o tráfico.  Com o passar dos anos as minhas lutas no tráfico armado foram se apaziguando e o meu trabalho sempre terminava em paz.  Com algumas baixas e a paz era implantada, a organização estabelecida.   Aí, era a hora de dar o fora.  Até o fim do fim!  Cheguei ao ponto máximo. Aquele momento da vida em que você olha para trás e não vê mais nada.

Mais nada por que lutar. O trabalho estava terminado. Eu, viva, era só saudade. Ainda chorava por ele!  Ainda acordava gritando seu nome!

- Pará vem me buscar!

Naquele maldito dia em que optei por salvar a nossa afilhada, o Alemão não me deixou voltar, pois cumpria suas ordens. Você abriu aquele buraco, hoje eu sei.  Deixou a ordem de me resgatarem caso houvesse algum conflito.

-Mas porque não veio comigo, porque?

Agora eu sei!  Sei que você sabia que era a primeira coisa que eu procuraria ao chegar naquela maldita casa. Uma rota de fuga.  Ainda mais depois de toda a tragédia acontecida!   Era seu costume, eu sei.  Apesar de eu  dormir na beirada da cama, como toda mulher de bandido, você sempre me dava fuga. Sempre me tirava da zona de conflito.  Sempre! Você abriu aquele buraco.  Sabia que para me dar fuga tinha que ficar para trás. E foi isso o que aconteceu!

O Alemão dizia que você iria escapar e encontrar comigo depois, lá no morro. E gritava isso dentro do mato, enquanto me empurrava violentamente morro acima e, os tiros comiam atrás da gente. O mato alto cortava como navalha  a minha carne,  a dor que eu sentia   na alma, enquanto esperneava, chorava e gritava seu nome, era maior que tudo!    Precisava voltar e ficar contigo!  Nossa afilhada já estava resgatada.    Eu tinha que voltar!

Até que entrei em atrito com aquele homem  enorme que me deu um soco na boca do estômago.  Senti um sufocamento.  Perdi a respiração.  Cai no chão sem conseguir respirar.   Ao fundo, ouvia Ana Lúcia gritando:

- Madrinha!  Madrinha!

A morte pairava no ar!  Alguém me jogou por cima dos ombros.

- Cuidado com a mulher do Pará!  Alemão gritou.

- É a patroa porra!

Ali eu apaguei.  Lá longe os tiros e o barulho dos helicópteros, que até hoje, me apavoram, zuniam no meu ouvido!

Acordei com o som dos malditos helicópteros. Estava em um barracão no meio da mata, no alto do Morro do Grotão. Vários homens descansavam em colchonetes. Ao meu lado, minha afilhada dormia banhada e com roupinha limpa. Parecia em paz.  Isso me acalmou um pouco.

- Menos mal!  Pensei.

Alemão, sentado ao meu lado, parecia estar ali há muito tempo.  Era dia ainda.

- Vamos esperar a noite alta para entrar na favela! Não quero que ninguém se ligue em vocês. Prometi ao conterrâneo que tiraria vocês daqui vivas! Disse me olhando bem nos olhos!

Fechei-os instintivamente!  As lembranças eram terríveis!  Quase não podia suportar!  Mais uma vez ele ficou para trás para me dar fuga!  Só que agora eu sabia que não o veria mais vivo!  Sabia que daquela vez tinha sido fatal!  Gritei desesperada!

- Não! Não!  Cadê ele? Você disse que ele viria!  Onde ele está Alemão?  Onde está?     Um misto de arrependimento e desespero tomou conta de mim.  Estava completamente arrependida de ter te  obedecido!  Quando me obrigou a entrar naquele buraco e os tiros furavam tudo à nossa volta, você dizia:

-  Vai! Vai!.  Sai e tira a menina daqui!  Sai agora! Vai!  Entra logo nessa porra de buraco!  Agora porra!   Vai mulher!  Vaiiiiiii!  Gritou

- Eu vou depois!  Vai meu amor!  Tira nossa filha daqui!  E me beijou.  Me beijou  tão apertado que até  perdi o fôlego.  Chorei destruída e paralisada!

Havia adeus naquele beijo eu não conseguia me mover. Ana Lúcia agarrada em minhas pernas e você dizendo que ia depois, me empurrando violentamente em direção ao buraco, debaixo do tanque, no quintal.  Havia muita urgência e um grande desespero em você!

Não conseguia raciocinar.  O barulho infernal dos tiros, as paredes desmoronando em cima da gente, minha cabeça rodava e sai agachada carregando minha menina que grudou no meu pescoço e passou as pernas pelo meu corpo como um macaquinho. Eu só chorava!  Não dava nem para olhar para  atrás.  A vontade de ficar era incontrolável. O pai sabia disso e gritava;

-  Vai amor! Vai agora!  Vai! Vai porra! Vai!  Gritava desesperado!

Só me chamava de amor quando queria me comover.  Sabia o quanto eu era teimosa.  Os gritos dele e o som da “Jovelina” me impulsionavam. O quintal. O buraco bem na minha frente.  Agora tinha que ir. O pai vinha atrás fechando com balas de HK a minha passagem.  O buraco debaixo do tanque que, no sábado quando cheguei foi a primeira coisa que ele me mostrou.  Me conhecia mais que eu mesma e, sabia que eu ia exigir uma rota de fuga. Explicou que o buraco dava para o matagal e que subindo até o alto do morro, do outro lado era a favela do Grotão. Que tinha amigos lá. Que o dono do morro era o Alemão que iria dar cobertura se qualquer coisa saísse errada.  Na segunda-feira partiríamos dali para a Paraíba.  O carro já estava preparado para a viagem. Mas a felicidade em nos ver, fez com que ele aceitasse dar aquele maldito churrasco.

Vivi dias de guerra que pareciam não ter fim!

Uma guerra que começou com aquela maldita  Operação Mosaico na favela da Rocinha, nossa morada, e terminou na comunidade  do Grotão, no pé da Montanha do Grotão,  num lugar chamado Engenho Pequeno,  em São Gonçalo, município vizinho a  Niterói, com todos os do meu bando mortos!  Meu marido morto.  Só eu sobrevivi. Eu e minha menina; Ana Lúcia, nossa afilhada, tinha três anos.  Todas as minhas referências de vida tinham morrido junto com eles.  Junto com o meu marido; Neyvaldo  Bezerra da Silva, o Pará da Rocinha!

Naquele dia quando bateram na porta, meu coração teve  um sobressalto diferente!  Parecia que adivinhava uma coisa bem ruim.  Era um pulsar gelado!

- Mas o que poderia ser pior do que o que já estava acontecendo?  Pensei.

A saudade era tanta que eu quase podia acreditar que era ele. Meu Pará, batendo na porta.  Que eu abriria e cairia em seus braços e que tudo estaria bem como sempre.  Que seríamos felizes novamente!

Eram dias de guerra!  A polícia havia tomado o morro há um mês.  Poucos tinham sobrevivido à  invasão.  O Negão morreu defendendo a Rua Dois. Do seu bando três morreram. Carlos e os outros do bando  conseguiram fugir para Roupa Suja.  Menor B  estava com Negão  e  foi preso. Foi levado para o DPO local e resgatado. Pará  e  o Cara Murcha,  foram lá e resgataram o Menor B.  Ele estava de castigo, Pará o deixou plantado na Rua Dois, na noite anterior, quando subimos, como sempre, para a Rua Um.  O que causou nele muita culpa e remorso.  Menor B até chorou, detestava ficar com o Negão, implorou para vir conosco, até eu pedi por ele mas, Pará foi implacável, não abriu mão do castigo e  isso o fez resgatá-lo. Também, a merda que ele fez foi muito grande! Quase morreu de over dose comemorando seu aniversário de treze anos e isso assustou muito o pai, que  ficou puto!  Ficava puto quando preocupado ou ameaçado. A ameaça de perder o afilhado assim, por uma besteira foi demais!  Amava aquele menino como a um filho! Por isso o castigo! Por isso o resgate!

Empurrei Ana Lúcia pelo buraco.  Ela relutava em me largar assustada com a guerra instalada atrás de nós.  O barulho dos helicópteros e os tiros eram ensurdecedores. Desgrudei-a violentamente de mim.  Não dava para passar as duas juntas.  Agora o medo e o instinto de sobrevivência gritavam mais alto que tudo. O som da “Jovelina” me empurrava para o buraco!  Minha neguinha gritava:

- Padim!  Padim!  Era como se soubesse...

Gritei com ela:

- Cala essa boca porra!

Desgrudei-a de mim com violência, senão não ia dar.  Passei-a pelo  buraco.   Parecia em choque, ficou quieta, fechou  os   olhos apertado!  Quando passei metade  do meu corpo pelo buraco mãos fortes pegaram-me pelos braços e me suspenderam num puxão. Assustada e completamente desorientada demorei a entender o que estava acontecendo.  Um homem enorme, cabeludo e loiro disse quase sussurrando;

- Alemão.  Vim resgatar vocês. Fica  tranqüila, ordens do patrão!

Ainda sem entender olhei à frente e vi minha neguinha no colo de um homem alto.  Eram muitos homens e estavam fortemente armados e vestidos.  Ali começou a maior de todas as torturas. Me debati, tentando me soltar daquelas mãos pois percebi que a “Jovelina” tinha parado de cantar, Pará não estava atrás de mim.  O choro veio imediato.

Desespero e vontade de voltar era tudo o que eu sentia agora!  O homem cabeludo olhava dentro dos meus olhos. Seus olhos, de um azul profundo, me fitavam arregalados e urgentes, impressionando. Suas mãos prendiam tão forte os meus pulsos que machucavam como   algemas! Parecia que via o desespero dentro do meu coração. Muitos tiros.  Muitos.  Podia-se  ouvir os gritos das pessoas atrás de nós.

Conforme ia me distanciando da casa e do buraco meu homem ia ficando para   atrás.

  Nem conseguia pensar nos outros! Mais que amigos, irmãos, queridos!  As meninas!  Flávia grávida!  Cara Murcha, a Branquinha, o Menor B, Luiz Pedro, o Nel  e a porra do Rick.  Estávamos tão felizes...

-  O que era aquilo meu Deus!

Mesmo dentro do capinzal  o barulho dos tiros e dos helicópteros  ensurdeciam. A casa estava sendo demolida, a tiros.  O barulho de uma granada sacudiu o solo.  Os gritos eram terríveis! Parecia que a porta do inferno tinha sido aberta!  Procurava entre  aqueles barulhos infernais o som da “Jovelina”.  A HK não se fazia mais ouvir!

Agora, acordada, podia sentir um grande peso no coração.  Tudo em mim doía!  Meu corpo todo cortado do capim  navalha doía terrivelmente!  Meu short e a camisa  do  pai que eu vestia estavam em farrapos, sujos de sangue.  Meus braços e pernas também.

Não sabia o que doía mais!  A barriga do soco, meu corpo retalhado do capim navalha, meu coração e minha alma atormentados pela sua falta, meu amor e, pela fatalidade que se anunciava.

Tentei levantar, mas as dores me jogaram de volta ao colchão!  Nova tentativa e, ele, o Alemão, me barrou com o braço.

- Te aquieta patroinha!  O pior já passou.

O sotaque nordestino me agoniou!  Me  sacudiu para aquela maldita realidade!  Um ódio me invadiu naquela hora!   Sentia-me completamente vulnerável no meio daquela gente que  nem conhecia.  Esse ódio rompeu minha garganta num grito chorado!

-  Pará, cadê você amor?

Sabia que estava morto!   Não queria saber de mais nada.  Queria voltar e resgatar meu homem!  Ana Lúcia dormia, parecia dopada.  Ninguém nem me olhava.  Era como se esperassem aquela minha reação.  Furiosa, eu estava furiosa!  De um salto levantei, levando toda a dor comigo.  Tentei sair correndo.  Alguém colocou o pé na frente. Caí feio no chão de terra batida. Alemão me puxou do chão para o colchão e me abraçou.  Me deixei abraçar e chorei como nunca tinha chorado antes.  Fiquei ali naquele colo.  Minha menina nem se mexeu.  Adormeci.  Estávamos todos muito cansados.  Os tiros ecoavam dentro da minha cabeça e, ao longe o barulho dos helicópteros.

O frio da febre me trouxe de volta ao pesadelo.  Eu tremia e agora não conseguia levantar mesmo. Já era noite e um lampião iluminava o barracão.  Procurei minha afilhada e a voz do Alemão me tranquilizou:

-Não se preocupe. Ela já foi com minha mulher.  Eu ouvia tudo lá longe. 

A febre queimava meu corpo e embaçava minha visão.  Ele falou junto ao meu ouvido:

- Você está doente.  Descanse patroa.

Não vi  mais nada por dois dias!

Cuidaram de mim.  Uma mãe de santo de confiança veio me cuidar.  Os cortes do capim navalha infeccionam e dão febre alta.  Eu fiquei toda cortada. Aí entendi porque eles usavam tantas roupas.   Os banhos de Aroeira e Tançagem, assim como a pasta de Babosa fizeram o milagre.  Me devolveram a lucidez que eu nem queria.  Sabia que, àquela altura, era um problema ali.  Barraco de “endolação”.  Podia perceber que era. Apesar do silêncio, sabia que a polícia ia varrer aquela mata atrás de drogas e armas.  Tinha que sair dali e voltar. Levar minha neguinha para casa.  Voltar para a Rocinha. Temi por nossas vidas!

Mal podia suportar as lembranças!  Vinham como turbilhão misturadas em ódio, revolta e nem sei mais o quê! Pensava em como tinha vindo parar ali naquele lugar.  Da favela da Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro a São Gonçalo, município vizinho a  Niterói. E, naquele  momento, no alto do Morro do Grotão, dentro da mata, resgatada de um massacre onde só eu e minha afilhada sobrevivemos. Estava no barracão de “endolação” do Alemão. Um barracão de madeira e telhas portuguesas, de cumeeira alta, assoalho de ripas e suspenso em palafitas para proteger da umidade.  Agora, livre da febre e me recuperando dos ferimentos, podia perceber o movimento do lugar. Três dias haviam se passado e eu ainda estava tonta. Desorientada. Os analgésicos e a beberagem feita de ervas davam muito sono. Mas, já estava lúcida o bastante para perceber a movimentação ao meu redor e a urgência em sair dali.  Tocar a porra da vida!

A polícia não estendeu as buscas morro acima, mas invadiu a favela do Engenho Pequeno e embaçou o tráfico por dois dias.  Não arrumaram nada pois o Alemão já sabendo disso se preparou e fechou as bocas e recolheu as drogas e as armas.  Decretou luto oficial pelos amigos mortos. Pendurou pano preto na entrada a comunidade. A polícia foi embora sem entender nada e tudo voltou ao normal. Ouvia os comentários. Ali naquele cômodo, os fundos do barracão, onde eu estava era tipo um dormitório, com vários colchonetes espalhados pelo chão. Tinha um escritório onde rolava a contabilidade, um paiol com armas e munição e na sala da frente rolavam os trabalhos com as drogas. No quintal, atrás de onde eu estava, um laboratório.  Tinha sempre alguém tomando conta de mim, me dando água e comida e a mãe de santo vinha à tardinha me dar banho e me vestir. Na quinta-feira eu já me levantava e ia ao banheiro sozinha e no sábado à tarde, pedi à mãe de santo que me levasse um recado ao Alemão, dizendo que eu já estava bem e já podia sair dali. Precisava ir para casa.

Na madrugada vieram me buscar. Dez homens fortemente armados formavam o bonde da minha comitiva.  Já era hora de prosseguir e o próximo passo era voltar para minha favela.  Voltar para a Rocinha.

Descendo aquela mata escura e tortuosa procurava alguma coisa dentro de mim que me dissesse que eu estava viva. Não encontrei vestígio de nada que pudesse me mostrar isso ou porque deveria prosseguir.  Mas, sentia dentro de mim que o que estava por vir me levaria por si só e me manteria viva mesmo que eu só quisesse morrer.

A polícia tinha ocupado a favela da Rocinha  há um mês.  Poucos tinham sobrevivido a Operação Mosaico I.  Meu marido, Pará e alguns do nosso bando conseguiram sair da favela, juntos, três dias depois da ocupação, escondidos no chão de um ônibus da Cerasa (aqueles ônibus que vendem frutas e legumes e parecem uma feira ambulante), que atravessou a ponte rumo a São Gonçalo, onde a irmã mais velha do Cara Murcha tinha uma casa, num loteamento de um condomínio lá.  O lugar era chamado Engenho Pequeno,no pé do Morro do Grotão.   Luiz Pedro providenciou a fuga. Foram com ele: Menor B, Cara Murcha, e o Nel, o irmão mais novo  de Cara Murcha.

Para saber disso tive que abrir a porta e, lá estava o irmão preto do Pará:  Luiz Pedro.  Meu sangue gelou!

  Fui colocando ele para dentro, morrendo de medo que a notícia fosse de morte!

- Calma ele está vivo e mandou te buscar.  Disse demonstrando nervosismo. Deve ter visto o terror na minha cara!

Minha mente voltou aquele passado recente onde nos separamos pela primeira vez em quase três anos  juntos. Lá na Rua Um. Engoli o choro.  Tinha me prometido não chorar mais.  Promessa difícil!  Luiz Pedro percebeu minha agonia e abriu os braços onde me aninhei como se quisesse apagar tudo o que estávamos vivendo até aqui.

- Que bom te ver neguinho!  Disse, tentando esconder meu egoísmo de querer saber só do meu homem.

Eu não podia esquecer que havia mais pessoas naquele sofrimento.  Pessoas que pertenciam  a minha vida, a minha história e à história daquele amor e toda aquela situação filha da puta.  Eu não podia esquecer que o Luiz foi um dos que mais nos ajudou a viver essa história de amor com a maior liberdade possível . A mulher dele, Yolanda, sempre brigava muito quando o via envolvido com o irmão bandido  .Eram meio irmãos, tinham o mesmo pai. E ela sempre clamava em nome da liberdade. Dizia que bandido não tinha isso.   Pará sempre dizia, debochando:

- Se nós não temos liberdade mando  comprar essa porra!  E ria...

   O som daquela risada soou no meu ouvido.  Era como se eu estivesse ouvindo-a agora...

 Feliz, sonora, forte. Uma risada que brinca com a gente!  Daquelas que dá vontade de gargalhar junto. 

Àquela altura meus devaneios me enlouqueciam.  Já havia passado mais de um mês, em  verdade, quarenta e cinco dias  que eu esperei para ouvir aquela notícia.  Ele havia prometido lá na entrada da Rua Um que mandaria me buscar e, naqueles dias era só isso que eu esperava ouvir a qualquer toque.  E agora o Luiz estava bem ali, na minha frente!

  Era sexta-feira, dia de faxina.  Eu tentava tocar a vida da melhor forma.   Em nossas casas tudo foi tomado e  destruído pela polícia. Dois dias depois da invasão tentei chegar até a Rua Um e, estive disfarçadamente, próxima a uma das casas. Maresia me acompanhou.  No meio do caminho um cachorro me atacou.  Acho que reconheceu meu cheiro. Corri muito, Rua Dois abaixo, por dentro dos becos, com os gritos de “pare” atrás de mim.  Não podia mais procurar nada e arriscar ser reconhecida por algum “secreta”.  Todas as lembranças, as fotos, as jóias, as roupas, tudo perdido. 

Passei dias de cama, deprimida.  Os amigos vinham me procurar e foi difícil sair dessa. Tomei uma dose maciça de Diazepan  e dormi cinco dias.   Quando acordei, ainda muito doida,  Cristiano estava ao meu lado e me dizia que eu tinha que esperar, que ele viria me buscar e que ainda estavam no morro.  Assim o fiz e, ali estava Luiz, quarenta e cinco dias depois. Tinha vindo me buscar. 

Um misto de tristeza, alívio e alegria tomou conta de mim.  Queria saber de tudo. Como estavam e onde. Luiz Pedro pediu comida, sentou-se.  Servi um café e fui esquentar o que tinha sobrado do almoço. Os meninos estavam na escola então, sozinhos, podíamos conversar livremente.  Comeu em silêncio, gostava muito da minha comida que era famosa no meio deles.  Então, contou tudo o que tinha acontecido até ali.  Haviam saído tranquilamente do morro e o lugar onde estavam era sob qualquer suspeita dizia ele.  Estava tudo preparado para que viajássemos; os recursos, os documentos, os carros.  Tudo certinho.  Que eu podia ficar confiante, ia dar tudo certo e iríamos ficar bem.

  Enquanto ele falava ia sentindo alívio e uma grande esperança nascer no meu coração mas, um pulsar gelado, um medo dentro de mim aguçava meu “instinto de aranha”, sentindo que o perigo estava lá, aguardando os nossos passos.

 Tirou um saquinho de seda vermelha do bolso e estendeu-o para mim.

- É o  presente de dia dos namorados. Ele mandou.  Tem muita saudade. Nunca vi um amor desses.

Por um minuto quase esqueci a dor de toda aquela situação maldita que estávamos vivendo e, ri do que ele tinha acabado de falar.

- Você é um galinha!  Disse me rindo toda.  Apanha todo dia e não aprende.

Luiz também vivia um grande amor.  Yolanda, sua mulher, era barraqueira profissional e ele um galinhão!  Eles eram casados há muitos anos. Desde a adolescência e viviam uma história de amor e ódio muito louca.  Cheia de brigas, de idas e vindas. Como romance mexicano.  Eu agora sorria com as lembranças na montanha russa desgraçada que virou meu emocional.  Ia do riso ao choro, assim num repente.

E, ao pegar aquele presente não consegui mais evitar as lágrimas que rolaram silenciosas, enquanto eu abria o saquinho de seda vermelha.  Era o cordão que ele havia mandado fazer para nós.  Escolhemos juntos  o modelo, com as nossas iniciais como pingente.  Lindo!  E, junto a aliança. Eu havia esquecido.  Tínhamos  trocado alianças no meu último aniversário. Ele não gostou delas.  Queria-as mais grossas. Mandou fazer novas  junto com os cordões e nossas letras.  Um “P”. Um “B”, com correntes iguais, tinham mais de cem gramas cada uma e quarenta centímetros de comprimento de puro ouro dezoito. Tudo tão perfeito.  Triste olhar para aquelas peças.  Usá-las, mais triste ainda.  Retratavam um tempo que eu sabia perdido mas, a esperança de estarmos juntos novamente  não podia perder, era tudo que eu tinha.

- Amanhã bem cedinho venho te buscar. Se   prepara para viajar.   Disse  Luiz Pedro me olhando por cima do prato de comida.

- Sim, estarei pronta.  Respondi.

O dia nem tinha amanhecido ainda e eu já estava pronta e de pé.  Depois que Luiz foi embora, na tarde anterior, preparei uma mochila com roupas e objetos pessoais. Procurei a   Maria.  Acertei para que ficasse em horário integral cuidando dos meninos.  Disse que ia viajar e, que minha mãe dormiria em casa, coisa que ela relutou mas, no fim cedeu pois viu que eu estava decidida.

  Todos  dormiam quando ele buzinou no portão.  Beijei as crianças, acordei e dei adeus a minha mãe que, ficou chorando. Estava escuro ainda.    Minha afilhada, Ana Lúcia, dormia no banco de trás da Kombi.  Surpresa feliz! Olhei Luiz  que me sorriu.  A menina vinha conosco. Isso só confirmava a generosidade desse amigo.  Entrei no carro e abracei-o com carinho. Quase não conseguia respirar, ofegante de ansiedade. Finalmente! O sábado prometia.

  A viagem transcorreu normalmente.  O trânsito leve me permitiu curtir um pouco a paisagem.  Minha neguinha acordou com fome, pedindo a “dedeira” que, estava na maleta térmica. Luiz havia pensado em tudo.   Agora, atravessávamos  a ponte  Rio-Niteroi, amanhecia.  Manhã de sábado.   Eu não tinha nenhuma vontade de falar. Silêncio total.  Parecia que as palavras não cabiam ali e, ele entendia isso, pois não fazia menção de qualquer comentário. Meus pensamentos acelerados, viajavam nos últimos acontecimentos.  Em verdade, lembrava-me da última despedida na Rua Um.  Não via a hora de reencontrá-lo. O dia clareava quando chegamos em Niterói e dali ainda seria  um longo  percurso.  Íamos para São Gonçalo, um lugar chamado  Engenho Pequeno. Lá ficava a casa, num condomínio que a irmã do Cara Murcha tinha comprado a algum tempo atrás. Era para lá que estávamos indo e de lá rumo à liberdade definitiva. 

- Estamos chegando.  Esse é o Engenho Pequeno.   A voz de Luiz me trouxe de volta a realidade. 

  A placa dizia Estrada Antônio Felix da Silva e a primeira impressão foi boa. Muito verde, parecia um lugar bem legal.   Mas, ao final da estrada, a paisagem mudava drasticamente. A vegetação tão vasta, que embelezava a vista, ia dando lugar a um barro vermelho e à devastação ambiental.  O carro chegou a uma porteira que anunciava o nome Condomínio Engenho Pequeno. Tudo era separado em lotes vazios e cercas que protegiam o nada.  Alguns esqueletos de casas ornavam esses lotes e pouquíssimas já construídas mostravam-se sem acabamento, portas ou janelas.  Era um loteamento sem moradores.  Em construção.  Parecia uma construção fantasma.  Era tudo muito feio e, a poeira vermelha que subia me dava essa impressão de abandono.  A nuvem de pó que a Kombi levantava não deixava ver nada no retrovisor e isso me deixava nervosa.  Parecia que nós viajávamos rumo ao nada ou estávamos entrando em uma nebulosa rumo ao desconhecido.  Minha mente divagava!  Sabia que era minha imaginação, sempre muito fértil, e a minha resistência a tudo que era novo.  Tinha aversão às novidades.  Gostava de conservar tudo sempre do mesmo jeito, assim podia sentir segurança e em time que está ganhando não se mexe  Mas o que incomodava mesmo, desde sempre, era aquela sensação de perigo iminente que não passava.  Alguma coisa continuava me tirando a paz e me deixando desconfiada e pouco à vontade.

-  Logo agora que tudo está se ajeitando? O que há de errado?  Não gosto desse lugar. Pensava curiosa comigo mesma.

Ao longo daquela estrada de barro batido vermelho, algumas casas que pareciam sítios pequenos iam aparecendo conforme a Kombi avançava, tornando a imagem mais suportável.

- Chegamos!  É ali nessa próxima virada.  Olha a casa lá. Luiz Pedro disse nervosamente, mostrando uma rua de barro vermelho batido e uma única casa ao longo dela. Uma casa de laje.  Duas pessoas em cima dessa laje, um grande quintal e bananeiras e goiabeiras cercavam todo o terreno. Parecia um sítio.   Fechei os olhos e abracei com força Ana Lúcia que dormia agarrada no meu colo.  Um sorriso veio bem lá de dentro de mim e junto um suspiro de alívio.

-  Finalmente encontrar Pará era tudo de bom!  Finalmente.  Pensei feliz.

Estacionou, buzinando na porta.  Minha neguinha acordou chorosa se agarrando ao meu pescoço.

- Padim!  Padim  Ana Lúcia gritou.

  Ela abriu um sorriso ao ver os meninos mas, sem desgrudar  do meu pescoço.  Deixei-a assim, e descemos da Kombi com ela agarrada ao meu corpo.  Não queria que chorasse, nem se assustasse.

Os meninos vieram correndo para fora nos recepcionar.  Menor B  vinha na frente.  Pé no chão, só de short, sorrindo.  Pela primeira vez o vi como a criança que era.  Nos abraçou e foi logo pegando Ana Lúcia no meu colo e a jogando para cima numa saudação alegre e barulhenta.  Ela ria-se toda. Feliz em ver o titio.  Chamava-o titio e ria e me procurava com os olhos como se esperasse que eu confirmasse que aquele encontro era de verdade.  Que realmente estávamos ali todos reunidos novamente.  Pará veio por último.  Pé no chão, cara de sono, de short branco e camisa do Flamengo.  Pegou nossa menina nos braços e a apertou. Ela enlaçou seu pescoço num abraço que parecia eterno.  Eu já chorando abraçava Menor B, que pulando no meu pescoço gritava:

- Patroinha!  Patroinha!  Que saudade!  Que bom que você veio!

 E se aninhava no meu pescoço como uma criança que acabara de ganhar um presente muito desejado.  Eu deitada em seu ombro, olhando meu homem vindo e chorando silenciosamente.  As palavras afogadas, engasgadas por lágrimas de saudade dolorida.  Segurei seu rosto e o beijei nas bochechas gordas que eu adorava apertar e baguncei seu cabelo.  Ele odiava isso!  Mas, me abraçou e riu.  Riu muito!

 Pará com nossa afilhada pelo braço parou na nossa frente. Brasileiro deu lugar ao patrão que se atirou no meu abraço.  Um abraço sufocante, apertado, de olhos fechados e respiração difícil.  Minhas lágrimas desciam sem controle  misturadas ao riso delirante de alívio.  Ele me apertava mais e mais.  Luiz Pedro pegou Ana Lúcia do seu colo e, ele me pegou no colo.  Entramos na casa nos beijando, eu no colo, mãos no seu rosto, beijando-o todo.  Colocou-me no chão e, eu fiz igual quando pari meus meninos.  Igual a toda mãe que assim que tem o filho nos braços, saído de suas entranhas, olha e apalpa toda a criança para ver se está tudo no lugar. Tudo perfeito e saudável. Assim o fiz. Ele ficou parado, de olhos fechados apertados, só sentindo minhas mãos que tocavam todo seu corpo avidamente, preocupadas, querendo a paz da certeza de tê-lo ali, inteirinho, perfeito, sem faltar nem um pedacinho, nos meus braços!  Era meu costume. Ele gostava disso.

Nos  olhamos e rimos.  Rimos muito, pois até ali ainda não o tinha olhado nos olhos! Uma das minhas características mais fortes: olhar nos olhos.

 Ríamos!

-  Estou aqui minha linda! Que bom te ver meu amor.   Me abraçou.  Choramos juntos.  Ele era um homem que chorava.  Ali, abraçados e o tempo parou.  Naquele momento percebemos, ao mesmo tempo que, nada, nada poderia nos separar. Nem a morte.  Pois éramos um do outro. Éramos um no outro. Éramos um!

Foi me empurrando para atrás em direção a porta do que parecia ser de um quarto.  Me despindo sem pudor algum, faminto, respiração ofegante, pau duro, em meio a palavras e juras de amor eterno e de saudade mortal.  Beijos ardentes que quase sufocavam.  Mordia meu pescoço, meus seios.  Arrancava a minha roupa e eu quase desfalecendo de tanto tesão só gemia sem controle.  Nos amamos como nunca!  Fizemos um amor selvagem como sempre mas, com uma mistura de dor e prazer que nunca tínhamos experimentado.  Esquecidos do tempo ficamos ali nos braços um do outro e o sexo não parava de acontecer.   Simplesmente não conseguíamos nos separar.  Até que a exaustão nos ganhou e uma paz deu lugar a todo aquele tesão.  Um sentimento de posse nos deu serenidade para sairmos do quarto e tocar a vida que agora tínhamos certeza que existia de novo.  Tentei levantar da cama, estava morrendo de sede. Ele não deixou.

- Espera. Pego água pra você. Disse abrindo um frigobar aos pés da cama. Tem coca. Quer?

- Sim amor.  Nossas primeiras palavras.  Fiquei emocionada e o choro. Sempre o choro!

- Não é hora de chorar neguinha. Vamos brindar!  Uma nova vida.  Vamos dar uma festa. Não chora. Te amo.  Brindamos

Fizemos amor mais uma vez. .Ele me beijou e me amassou, depois de um gozar safado, molhado e intenso. Meu bandido estava pesado, do jeito que eu  adorava, forte, bem alimentado. Parecia livre da cocaína.  Coisa que eu temia!  Encontrá-lo acabado, por conta do pó.  Ele se preparou para mim. Podia sentir.  Estava exausta.  Precisávamos sair dali e ir ter com os outros. Éramos compulsivos e poderíamos ficar ali para sempre. Isso me lembrou de tantas vezes que ficávamos dois, três dias e, nosso recorde, uma semana, sem sair do quarto. Só fazendo amor e curtindo. Muito bom!  

Ia me levantando, ele ao meu lado deitado de bruços me olhava com aqueles olhões pretos que eu amava tanto, me segurava matreiro e brincalhão e, não me deixava levantar.  Rimos e nos reviramos na cama.

- Cama boa essa heim pai?  Disse ciumenta!  Cama king!  Que luxo!  O ciúme estampado no meu rosto fez ele tremer.  Jogou-se em cima de mim tão rápido que eu nem tive reação e me oprimiu com seu peso. Eu sempre tinha medo dessa reação dele e ele sempre tinha medo daquela cara de ciúme que eu fazia. Uma vez arrastei uma piranha pelos cabelos, da Estrada da Gávea até a boca, na Rua Dois e a joguei aos seus pés porque a vi comprando droga e tocando nele, se oferecendo. Ficou toda esfolada do cimento do chão da rua. Em carne viva. Eu era violenta e ciumenta. Assim como ele! Éramos iguais!  Exigi que ele confessasse que a “mina” estava dando em cima dele senão ia esfregar a cara dela no cimento e, exigi que ele a proibisse de voltar ali.  Ele fez tudo o que eu queria.  A garota nunca mais vi!  Depois saí  puta e fiquei vários dias sem falar. Três dias depois ele me pegou desprevenida e me amassou na parede, onde fizemos amor, isso depois de botar o bando pra fechar os becos, e voltamos as boas.  Era vaidoso e ficava todo bobo com minhas manifestações de ciúme.  Parece que se lembrou e teve a reação, pois não queria que nada atrapalhasse aquele reencontro.  O beijei com ternura.

- Te amo seu paraíba!  Quase me mata de tanta saudade cachorro!  Não vivo sem tu bandido.   Disse agarrada ao seu pescoço.

-Vem, vamos tomar um banho.  Me levantou puxando-me pelas mãos. O quarto era grande. Três mochilões no chão mostravam que estava preparado para viajar. Um completamente aberto mostrava as roupas reviradas. Numa outra, drogas: pasta de cocaína  e maconha, na outra dinheiro, munição e as armas.   Nunca teve paciência para se vestir. Pegava a primeira coisa que via pela frente. Foi me empurrando para um banheiro bem ajeitadinho, porta de espelho, todo no ladrilho e com chuveiro quente e box com porta de vidro.  Tomamos um banho cheio de carinho e amor.  Saudade de lavar aquela cabeleira preta cheia de cachos que eu adorava.  Lavou os meus cabelos.  Parecia que estávamos em casa e que o tempo tinha parado ali.  Explodi num choro violento que sacudia todo o meu corpo, ele me abraçou e, lavando-me o rosto me dizia preocupado:

- Calma mãe! Estamos juntos, vamos embora daqui juntos.  Nunca mais agente se separa. Vai dar tudo certo.  Fica calma!  Vai dar certo! 

Ficamos ali abraçados deixando a água rolar, um no colo do outro até eu me acalmar e mais uma vez engolir o choro e colocar um pouco de paz no coração.

- É eu que estou cismada. Não gosto desse lugar!   Falei olhando preocupada.   E a rota de fuga?  Perguntei.

- Fica sossegada,  amanhã à noite  a gente viaja. Me beijou, saiu do box e se secou rápido enquanto eu nem conseguia levantar as pernas.  Estava completamente abatida e sem forças.

- Vem minha linda deixa eu te secar. Toma, enrola o cabelo do jeito que tu gosta. Me estendeu uma toalha pequena e passou a me secar. As toalhas eram novinhas e macias.  Gostei de ver o jeito dele, seguro  e amável.  Estava mesmo muito feliz! 

- Deixa eu te vestir. Saudade.  Disse

Me colocou a calcinha depois de beijá-la, também o sutiã, fechou-o, me virando de costas.

- É novo né? Perguntou satisfeito me acariciando com doçura, se referindo ao conjunto de renda branca de acabara de me vestir.

- Sim amor. Comprei e guardei só para esse dia. Era sua cor preferida o branco Tem umas surpresas na mochila também viu?   Disse entre risos.

-  Adoro suas surpresas. Agora é pra sempre viu? Vai dar tudo certo.

- Deus o ouça!  Não me separo de você nunca mais! Nunca mais!  Gritei!

Me virou e me abraçou gostoso.  Me enfiou a camisa do Flamengo, que vestia, pelo pescoço.  Brinquei, me contorcendo toda, fingindo não querer aquela camisa.

- Flamengo não!  Nunca!  Seu doente!  Rimos!

 Meu time é o Fluminense, mas não sou fanática não.   Me vestiu com o short que  estava usando. O cheiro dele me apaziguava sempre.  Amava vestir suas roupas  e ele adorava isso.  Menino esperto, sempre querendo me dominar. 

- Te trouxe uma camisa de presente de dia dos namorados. Espera aí.  Peguei minha mochila que tinha ficado caída no chão, próxima à cama e tirei o embrulho de presente.  Ele rasgou o papel com aflição e sorriu ao ver a camisa polo Lacoste vermelha, era a sua segunda cor preferida.

- Do jacaré neguinha?  Muito bom disse.   E, vestiu-a satisfeito.  Uma  calça jeans verde da Dimpus  o fez ficar eufórico. Vestiu-a logo todo vaidoso.

- Puxa Kelzinha você se superou dessa vez!   Muito bom!  Apreciei!  E se olhava no espelho todo proza e feliz.

- Meu homem era mesmo um broto!  Pensei

Tirei meu cordão  da mochila. Ele sorrindo o colocou em mim, assim como a aliança. O presente de dia dos namorados que ele mandou preparar para nós.  Tinham as nossas iniciais, de ouro maciço.  Muito lindos... Ele já os usava o que me deixou muito feliz.

 Nos beijamos intensamente e saímos do quarto.  Os outros nos esperavam famintos.  Passava do meio dia. Estavam todos reunidos na cozinha em volta de uma mesa de café da manhã.  Ana Lúcia que estava no colo do pai se jogou para os braços do padrinho.  Pará a levantou bem alto e olhou-a e a sacudiu no ar.  Riam muito disso.  Todos estávamos rindo agora. Abracei Cara Murcha. Abracei o Nel.  Luiz gritou:

- Um abraçãoooooo!!!!

Nos entrelaçamos ali no meio daquela cozinha e pulamos muito.  Minha neguinha gritava rindo amassada no meio da gente.  Que felicidade!  Afinal estávamos juntos novamente. Finalmente!

Sentamos todos à mesa que estava sortida e apetitosa com um farto café da manhã.  Tinha de tudo: queijos, pães, frutas, suco... Muito bom!Meu amor tinha preparado tudo para nossa chegada. Me senti acarinhada.  Conversamos sobre tudo.  Os meninos queriam saber como estava a Rocinha e tudo que aconteceu depois que a deixaram. Pouco pude informar mas, falei do meu sofrimento em ver tudo o que era nosso perdido na mão dos “homens” e de como foi difícil suportar a saudade até ali. Rimos e brincamos como sempre. Meu amor me beijava toda hora e com nossa filhinha no colo a alimentava com todo carinho.  E, eu ali, mal conseguia acreditar!

Fui cuidar de Ana Lúcia.  Banhá-la  e colocá-la para dormir.  Meu bebê pegou logo no sono. Parecia que estar ali deu paz àquela criança que vinha tendo problemas para comer e dormir.  Estava vivendo com o pai nesses dias.  Luiz contou que ela chamava por mim e procurava o padrinho pela casa e, chorava horas a fio, desconsolada.

- Sim, era saudade mesmo.  Pensei.  Deixei-a dormindo e fui ter com os outros.  Pará me esperava na sala. Queria me mostrar a casa e, abraçados foi me mostrando os detalhes de tudo ali.  Era um terreno grande, doze por trinta.  A casa tinha três quartos, todos com banheiro, sala grande, a cozinha e mais um banheiro, uma varanda, até o portão, na frente da casa, um jardim estava sendo criado.  Algumas plantas cresciam ali.  Uma roseira, um pé de azaleia e uns arbustos quebravam a dureza daquele horizonte onde não se via viva alma ou alguma construção habitável em toda a volta, até onde os olhos alcançavam, um caminho de pedras conduzia até a varanda. Bem simpático mesmo!  O quintal, atrás da casa,com árvores frutíferas, algumas bananeiras, uma goiabeira, um pé de pitanga,uma mangueira,  uma área cimentada com varal e tanque e a escada de cimento que dava para  a laje com duas caixas d’água e uma piscina de plástico azul.  Muita boa a casa, mas em volta aquele vazio me incomodava.  Lugar de terra vermelha.   Não tinha muro e sim uma cerca baixa de madeira pintada de branco que cercava todo o terreno.  Tudo parecia recém-construído e na parte esquerda, ao longo do quintal, as bananeiras completavam essa cerca. Era um terreno acidentado que dava para a mata do Morro do Grotão.  Uma mata fechada e atraente.  Adorávamos andar no mato, fazíamos muito isso, na Rocinha e em outros lugares também.  Muitas vezes fugíamos de tudo e de todos e íamos  para a mata. Os trabalhos do terreiro duas vezes na semana eram feitos nas mata do Laboreaux e Portão Vermelho, também íamos ao Vidigal pela mata e ainda à Pedra da Gávea.  Adorávamos isso!  E ali não ia ser diferente!

- Depois do almoço agente dá um passeio nessa mata.  Quero te mostrar umas coisas. Disse ele parado em frente as bananeiras.

- Agora entendi porque você está tão satisfeito nesse lugar, bandido!  Deve ter passado todos esses dias nessa mata não é pai?  Falei sorrindo, olhando a beleza daquela natureza.

- Foi sim minha linda.  Ogum falou direto comigo e tem muita fruta e bicho dentro dessa mata e água também.  Só tu vendo!  Depois do almoço agente vai tá?

- Tá bom.  Me abracei a ele.  Naquele momento me senti desconfortável e aquela sensação de desconfiança de novo me incomodando me fez lembrar da rota de fuga.

- Então é isso que eu quero te mostrar. Continuou ele:   esse é o Morro do Grotão. Atrás dele fica a favela Engenho Pequeno do meu compadre Alemão. É um lugar pequeno.  Parece mais uma roça e é um lugar seguro caso haja algum problema. Lá no pico fica o barraco de “endolação” deles.  É esse caminho que eu quero te mostrar.  Só o caminho mesmo. Não faz essa cara que não vamos subir até lá não. Não temos tempo pra isso.  Amanhã à noite sairemos daqui. Venha cá. Disse me puxando pela mão.

Levou-me até a outra extremidade do quintal e mostrou-me um buraco debaixo do tanque.  Cavado recente e grande o suficiente para passar uma pessoa grande. Todo satisfeito me contou que cavou o buraco ele mesmo.  Era péssimo para essas coisas.  Tirou a terra e colocou-a no jardim, na frente da casa.  Contou que gostou de lidar com a terra. Senti que um novo homem estava nascendo ali. Me olhou com aquela cara de menino vaidoso, esperando meu olhar de aprovação.

- Era como se dissesse “olha sua rota de fuga aí bandida!” Pensei e sorri satisfeita.

Isso fez com que ele me abraçasse e me beijasse profundamente aliviado.

- Vamos para a Paraíba.  Vou comprar um sítio lá. . Disse ainda abraçado a mim. 

Eu nem conseguia falar.  Tudo parecia andar tão rápido que meu pensamento não estava conseguindo acompanhar,acostumado aos dias de paciência sem perder a esperança na espera desse reencontro. Balancei a cabeça afirmativamente e o beijei gostoso na boca. Deixei para fazer os comentários depois, quando estivéssemos lá.  E me apertei de encontro aquele corpo que era meu. Meu bandido!  Meu homem!  Meu Pará.  Ele pareceu ler meus pensamentos e me apertou no seu abraço numa entrega total e carinhosa.  O silêncio falava por nós. Parecia que uma nuvem negra pairava espreitando a nossa felicidade e naquele momento senti que ele também temeu por mais uma separação.  Não podíamos nem cogitar tal pensamento, muito menos comentá-lo. Doía e, o simples falar, poderia ser de mau agouro.  O silêncio nos protegia.

- Vamos fumar um?  Tem maconha da boa.  Luiz vai fazer uma comida Temos que combinar umas coisas da viagem. Vem vamos fumar. Saiu me puxando para a frente da casa onde Menor B, Cara Murcha e Nel brincavam com uma bola, se divertindo bastante numa brincadeira de bobinho ruidosa e meio atrapalhada. Na varanda, Luiz apertava um baseado enorme.  Eu ri muito diante de tamanho exagero.  Sentei num sofá de palha e o pai se jogou no meu colo.

- Saudade! E me olhou.  Beijei sua boca levemente.  Era como se dissesse: esse colo é seu e sempre será, bandido!  Nossos olhares se cruzavam e sempre, sempre se entendiam.  Isso era um privilégio que sempre marcou nossa união e até quando éramos bem jovens, lá no barracão de bicho. Ele ficava do lado de fora com aqueles olhões pretos pendurado pelo lado de fora da janela, uns cílios enormes e aquilo chamava muito minha atenção. Nós éramos adolescentes e eu sempre encarnava:

- Que foi moleque. Dá esses cílios pra mim?  Que olhão bonito você tem!  Dizia.

  Ele saia correndo. Era mais novo que eu um ano, era franzino e tímido. Bicho do mato. Às vezes o encontrava no Campo da Esperança, fumando maconha.   E, agora o seu olhar era todo meu. Coisas do destino.

  Fumamos a maconha e conversamos sobre a viagem. Soube que outras pessoas viriam no domingo pela manhã. Luiz Pedro ia buscar  o carro em que iríamos viajar.  Que tudo estava arranjado.  O Cara Murcha e o irmão com suas mulheres iriam para o Ceará e nós para Campina Grande, na Paraíba. Menor B viria conosco e o Rick iria com eles.

  O almoço transcorreu animado. Passava das três horas da tarde.  Todos estavam animados.  Luiz Pedro cozinhava muito bem, a carne assada estava maravilhosa.  Conversamos sobre tudo o que estava acontecendo e todos estavam muito animados com a viagem e com a mudança de vida. Cara Murcha ia ser pai e o Nele a Flávia estavam querendo muito um filho.  Elas chegariam pela manhã com o  Rick, que seria o motorista deles e o Luiz, o nosso.  As “Blazers” para a viagem também viriam pela manhã. A perfeição dos documentos me impressionaram e me animaram também. Tinha que acreditar que daria tudo certo.  Pará não parava de me observar.  Sei que sentia que a minha preocupação era real e estava roubando-me o prazer pleno de estar ali.  Sei que o que ele esperava ver estampado em mim era o alívio de estarmos juntos e seguros.  Me conhecia muito.  Muitas vezes parecia que éramos um só. Sentíamos as mesmas coisas, as mesmas emoções e pensamentos.  Olhando-o bem de frente podia ver lá no fundo daqueles olhos, que eram minha vida, uma névoa.  Ele também temia aquele futuro que estávamos prestes a realizar.  Chamou Menor B e pediu que tomasse conta da Ana Lúcia.  Luiz descansava. Partiria ao anoitecer e voltaria pela manhã com os carros e guiando o Rick com as meninas. Cara Murcha e Nel arrumaram a cozinha e fumavam maconha na varanda.

- Venha, vamos andar por aí.  Quero te mostrar o caminho na mata.  Disse me abraçando.

  Espalhei os brinquedos no chão da sala e botei o vídeo da Branca de Neve, que era o que ela mais gostava.  Assim não sentiria nossa falta.

  Subimos, atravessando o bananal.  O terreno era íngreme e a vegetação densa. Mostrou-me o caminho e contou a história do Alemão e de como ficaram amigos.  Disse que esteve com ele várias vezes do outro lado do morro, trouxe pasta de coca para ele, que tinha um laboratório no alto daquela montanha. Contou o quanto ele, o Alemão, era grato à galera da Rocinha, que o abrigou quando saiu de fuga da cadeia e o ajudou a recuperar a sua área. Aquela que agora ele me apresentava. 

- Não acredito que você vai levar drogas nessa viagem!  A indignação estampada na voz e no meu rosto. Ele me olhou mas, sem surpresa no olhar.

- Não minha linda.  A pasta fica aqui.  Depois mando pegar.  Nós vamos limpos. Pode ficar fria! . Nunca vou desrespeitar nossos pactos.

  Tínhamos vários acordos.  Eu era neurótica com essa coisa de segurança e, quando estivéssemos com nossa afilhada ou alguma outra criança em qualquer lugar que fosse, as drogas não poderiam estar também. Era um dos nossos pactos.

 Ele me beijou apaixonadamente. Excitado, queria fazer amor. Cortei a onda dele lembrando de onde estávamos pois, como filhos de Ogum não podíamos desrespeitar a mata.  Era sacrilégio. Mostrou surpresa de como pôde esquecer do Pai.

-   Você me deixa doido sabia. Disse todo safado.

- Quero voltar, estou cansada bandido.   Muita coisa num dia só. Quero massagem. Disse fazendo cara de tarada.

 Ele riu e foi me conduzindo morro abaixo.  Subimos para a laje e a paisagem era fantástica.  Podia-se ver dali as casas que eram habitadas do lado oposto ao que viemos.  Havia alguns lotes ocupados. 

- Finalmente habitantes!  Pensei

  Desse lado era até suportável o lugar.  Havia um certo movimento de pessoas, luzes e comércios. Algumas casas pareciam pequenos sítios como essa em que estávamos, outras sem nenhuma vegetação, conservavam aquele aspecto singelo de casinha do interior.  Ao longe, na nossa frente podia-se ver as luzes de São Gonçalo.  Ficamos ali sentados na esteira, namorando, ele me fazendo massagem e a noite chegando.

  Luiz veio  se despedir.  Voltaria pela manhã com o carro e o resto da galera.

-  Vai na fé parceiro.  Faça uma ida e volta na paz.  Firmeza!

Se abraçaram e despediram-se com energia.  Abracei meu cunhado com amor.

-  Volta logo.  Tenha todo cuidado.  Presta atenção viu? Abracei-o apertado  já preocupada.

  Todos sabiam que eu era assim mesmo. Sempre preocupada.  E, ele foi. Ficamos por ali algum tempo até ver a Kombi sumir na poeira e na escuridão da noite.  O céu estrelado trouxe o frio do inverno que ainda regia o mês.  Nos aquecemos com nossos beijos e o tesão, agora  incontrolável,nos dominou.  Nada mais fazia qualquer diferença ou tinha alguma  importância.  Pará tinha retomado sua personalidade original que eu amava.  Amava-o de qualquer jeito mas, ter de volta meu guerreiro, assim tão firme e decidido, másculo e gostoso era tudo de bom.  E, eu quase esquecia que estávamos em fuga.  Que o meu instinto ainda gritava dentro de mim mandando um recado que parecia que estava em um idioma que eu desconhecia. 

- Que porra era aquela! Pensava...

 Não conseguia entender qual a  mensagem. Naquele momento decidi esquecer tudo e, focar no futuro que teríamos, acreditando.  Tendo fé que tudo iria dar certo no final. Relaxar e gozar era a regra agora!  E o resto era o resto. 

- Foda-se!.  Quero ser feliz! Pensei nervosa.

 Me entreguei naquele momento, ao amor selvagem que ele me oferecia e, que me deixava completamente refém daquele homem bruto, pesado, tão querido e desejado.  Ele sabia que o seu jeito bruto de me amar me fazia gozar loucamente. Então, caprichava nas mordidas, no chupão, na mão pesada nas minhas cochas e nos meus seios que, sua boca sugava com vontade. E aquela voz no meu ouvido.  Amava sua voz!.  Rouca e forte.  Me deixava louca.  Junto com a língua era fatal.  Aquilo me matava. Me fazia delirar e desfalecer.  Era muito bom!  Especial.  Éramos feitos um para o outro.  Na medida certinha!   Nunca um homem tinha me tocado daquele jeito e o gozo só conheci com ele.  Estive noiva, casada e nunca tinha conhecido aquele gozar tão pleno!

  Gozamos juntos e ficamos ali, embaixo das estrelas vendo o céu girar, nos braços um do outro, em silêncio.  As palavras seriam demais e desnecessárias.  Rolou sobre mim e muitos beijinhos vieram em seguida, me avisando que a noite seria de muito mais. 

-  Ai homem!  Assim morro de tanto gozar!  Você me deixa toda mole seu safado!  Gostoso!  Que saudade pai! Disse  bem no seu ouvido , enquanto me beijava por toda parte e sua língua me acariciava, estacionando entre as minhas pernas, subindo até minha vagina e me deixando desfalecida de tanto prazer.

- Fala nada não e me faz gozar gostoso como só você sabe fazer, bandida.

Ficamos ali até nos fartar de carinhos e carícias que me  faziam delirar e o deixavam completamente compulsivo e louco. Cansados e felizes juntamos nossos corpos moídos, as nossas roupas espalhadas e descemos para a casa.  Já se fazia tarde. Os meninos viam televisão na sala junto com nossa afilhada que entretida com os brinquedos estava quietinha.

- Vou cuidar da menina.  Disse pegando Ana Lúcia que já estendia os braços para mim.  Devia estar com fome.  Ela dormia cedo e já passava da hora. Pensei.

- Eu seguro enquanto você faz a mamadeira. E me beijou, pegando a menina.

Fui para cozinha com Menor B atrás, querendo falar.  Já conhecia a peça rara.  Abracei-o.  Ele saltitava e queria saber se eu estava feliz.  Baguncei sua cabeleira.  Eu sempre fazia isso e apertava sua bochecha,  também.   Ele se sentou à mesa enquanto eu me preparava para fazer a mamadeira. Tagarelava sem parar, falando dos presentes que o padrinho tinha dado a ele.  Ganhou a bicicleta de aro dez e a mobilete e andava por toda parte, azarando as gatinhas.  Rimos muito.   As coisas estavam arrumadas na bancada, ao lado do fogão.  Cozinha bacana aquela e, eu nem tinha prestado atenção ainda.  Conversamos e matamos a saudade.  Amava aquele menino como a um filho. 

 Coloquei Ana Lúcia para dormir no quarto ocupado por B.  A cama era grande ele estava sozinho no quarto.  Também não passaríamos outra noite ali, visto que  seguiríamos viagem no domingo à noite.  Viajaríamos durante a noite , para não chamar muita atenção .  Não via a hora de sair dali!

Dei boa noite a todos com beijos e abraços. Eles foram fumar maconha.  Eu estava cansada e doida para acabar logo com aquele dia.  Fui tomar um banho e colocar a camisola nova:  branca, de renda e seda e longa.  Ele adorava camisola longa.  Um conjunto de sutiã e calcinha vermelhos rendado. Tudo muito lindo e novinho.  E o perfume que ele adorava:  Azarro, não podia  faltar.  Liguei a TV e fiquei esperando.  Sabia que ele viria me amar e não via a hora de dormir em seu braços. A  saudade das coisas simples de casal tinha me consumido naqueles quarenta e cinco dias de ausência.  Chegou enrolado numa toalha.  Cheiroso e molhado ainda.  Tomava banho frio e não sentia tanto o frio como eu. Cria da Rua Um, estava acostumado com baixas temperaturas.  Se jogou na cama pelado, me molhando toda.   Eu gritava e ria rolando  na cama,  fugindo, quando ele percebeu a camisola.

- Caramba bonitona, você caprichou mesmo heim!  Bandida danada!   Disse admirado

- Desfila pra mim vai que hoje vou te pegar dum jeito que você nunca viu.

  Entre risos e gritinhos eu me defendia do corpo gelado e me debatia enquanto ele me prendia pelos pulsos e tentava subir em cima de mim.  Me soltou e ajoelhou  na beirada da cama,  rindo e implorando para que eu desfilasse . Com cara de safada fiquei em pé na cama, ele embaixo, sentou-se para admirar a cena. Brincávamos sempre assim e às vezes era ele quem fazia o streptease.  O que era sempre muito engraçado porque nunca vi uma pessoa tão ruim de dança como ele.  Não levava jeito mesmo e quando dançávamos na rua a galera ria de se acabar do jeito duro e atrapalhado.  Enquanto ele fazia a música com a boca e batia palmas eu ia dançando sensual e aos poucos tirando a camisola.  Quando ele viu o conjunto vermelho não resistiu e pulou em cima de mim excitado, de pau duro, muito doido.  O Leão estava de volta e eu maravilhada com toda aquela disposição  tão massacrada pelos últimos acontecimentos.  Fizemos de um tudo. A saudade é um poderoso afrodisíaco e caímos duros pegando no sono sem nem sentir.  Era madrugada alta. Acordei com o barulho de Menor B batendo na porta do quarto, com nossa neguinha no colo.  Ela chorava estranhando a cama.  Pará levantou para pegá-la pois eu estava nua e ele mantinha o respeito acima de tudo, me protegia até de mim mesma. A ninou e ajeitou-a no canto da cama coloquei a camisola e me aninhei em seus braços.  Dormimos assim agarradinhos como sempre.

Ainda estava escuro quando despertei novamente.  Meu homem e nossa menina dormiam pesado. Levantei e fui fumar na cozinha, preparar a madeira e também fazer o café.  Tinha trazido ingredientes para fazer uma canjica que ele adorava e a disposição para cozinhar estava boa.  Gostava muito de cozinhar e todos adoravam minha comida. Mas a escuridão e o frio me desanimaram.

- Mais tarde.  Pensei

  Voltei para cama e dei a mamadeira a Ana Lúcia que continuou dormindo.  O relógio de pulso do pai marcava cinco e meia.  Estava escuro ainda.  Ele me puxou para a cama e fui.  Adormeci novamente dentro do seu abraço. 

  A luz que entrava pela janela me despertou.   Nossa menina dormia ainda e estava enroscada em mim.  Pará, de bruços, nos olhava com aquela cara de moleque.  Sorriu...

- Minhas duas meninas preferidas. Fiz café.  Tem pão fresco.  Menor B  foi buscar de bicicleta.  O compadre  deve estar chegando com as meninas, com o  Rick e  os carros.  Vamos acordar? 

Me abraçou por trás. Pulei da cama antes que o inevitável nos atropelasse. Ele riu alto. Acordou nossa neguinha que sempre acordava de bom humor e, se jogou em cima dele.

-  Padim, padim!  Gritava toda contente e pulava na barriga dele que  gritava de dor.  Eu me acabando de rir levantei e fui tomar um banho, queria fazer a canjica que havia deixado de molho.  Quando sai do banheiro ele estava  vestindo nossa neguinha. Colocou um vestidinho jeans que a gente tinha comprado em Petrópolis.  Ela adorava aquela roupa.  A calçou e a levou para o banheiro para escovar os dentes e fazer xixi, enquanto eu me arrumava animada em lembrar que era nosso último dia ali e assim que a noite caísse sairíamos em uma viagem rumo a nossa nova vida. Ele tinha cinco filhas e gostava de cuidar de meninas. Adorava crianças.  Era um ótimo pai, carinhoso e atencioso.  Ajudava muito e sempre repartia os afazeres. Coloquei a canjica no fogo e tomamos café. O café dele era bom.

O barulho dos carros invadiu o lugar. Lá de fora Menor B gritou:

- Chegaram patrão.  Chegaram!

Pará se levantou da mesa e, levando Ana pelo braço, disse animado:

- Chegaram, mulher. Os carros chegaram. 

Me beijou  e saiu apressado.  Eu  não estava num pique bom.  Tinha preguiça e meu  corpo estava todo dolorido do sexo.  Levantei e fui  temperar a canjica. Quando acabei eles ainda estavam lá fora. Da janela podia ver as meninas abraçadas aos seus respectivos maridos.  Uma imagem boa aquela!  A barriga da Branquinha já aparecia e Cara Murcha, todo bobo, acariciava a cria.  Flávia, pendurada no pescoço do Nel ,também estava bem gordinha.   Éramos amigas. Elas eram meninas discretas e meigas.  Caladas e recatadas. Ríamos muito sempre que nos juntávamos para fofocar dos meninos .  Lembrei do chá de bebê da Branquinha.    Pará  deu um berço lindo.  Foi uma das últimas festas que fomos antes do caos se estabelecer na Rocinha.   Fui ter com todos lá fora.  As meninas vieram me abraçar e fizeram uma festa comigo, pulando no meu pescoço, me sacudindo e me beijando. Não consegui evitar as gargalhadas.  Eram duas criançonas.  Muito bom vê-las!

Os rapazes olhavam os carros.  Duas “Blazer” iguaizinhas.  Amimei-me ao ver os transportes mas não via a hora de sair dali.  Algumas pessoas passavam na rua e isso me agoniou. Passavam olhando. É claro que aquele movimento ia chamar a atenção das poucas pessoas que habitavam aquele lugar esquisito.  Rick veio me cumprimentar.  Não gostava dele e de mau humor gostava menos ainda.

Era o filho da juíza e se juntou ao bando no sábado.  Era ladrão de carros e foi chamado para providenciar as Blazer. A que ele veio dirigindo era sua e estava em nome de sua mãe e a outra era clonada.  Ele é que fez esse serviço e foi dele a ideia do maldito churrasco. Era muito doido.  Sua história na Rua Dois era muito doida, também.  Teve até uma vez que ele empenhou o carro depois de cheirar todas e foi embora.  A mãe dele é que veio pagar a dívida e resgatar o carro. Quando souberam que ela era juíza quase a mataram.  Sua sorte é que devido ao seu uso de drogas e sua vida de ladrão fazia com que sua mãe embora poderosa se omitia e sempre  pagava as contas e o  livrava das encrencas e mantinha a polícia de fora, pois tinha medo que os traficantes o matassem. Não gostava dele.  Era mentiroso e, aquela coisa do cara estar doidão e fazer papel de maluco para mim não “colava”. 

 Todos repararam que eu não estava bem e isso incomodou geral.  Pará se arreliou e me deu a menina, fazendo cara feia. Para quebrar o mal-estar gritei entrando na casa.

-  Fiz canjica galera.  Com bastante coco e amendoim. Quem vai querer? 

Eles adoravam a minha canjica e foi uma gritaria. 

-  Madrinha!  Canjica!  Estou com desejo de canjica há um tempão,  Branquinha gritou feliz da vida.  Só me chamava de madrinha.  Pará era padrinho dela de batismo.

-  Então corre buchuda senão vou comer tudinho. E saí correndo com Aninha nos braços.  Antes de entrar olhei para trás e a cara do meu neguinho tinha melhorado. Agora ele ria da brincadeira.  Odiava quando eu estragava as coisas com meu mau humor que era terrível.  Ele ficava puto!   Eu preocupada ficava de mau humor.  Resolvi deixar a “encucação” de lado e curtir tudo o que estava vivendo.  Na cozinha comíamos quando reparei pela janela uma movimentação diferente dos homens. Pará entrou  e os meninos saíram de carro.

- Churrasco!  Vamos fazer um churrasco.  Luiz foi com os meninos comprar carne em Niterói. Todo animado.

Não gostei.  Fechei a cara na hora e saí correndo para o quarto.  Ele veio atrás

- Que foi que eu fiz Bonitona?  O que foi agora mulher?  Perguntava agoniado.

Me  joguei na cama chorando. Não podia suportar mais tanta pressão. Meu coração doía terrivelmente e eu me sentia sufocada.

- Não gosto desse lugar, disse.

Ele deitou-se ao meu lado e me abraçou. Me aninhei em seu braços. 

- Vai dar tudo certo. Não se preocupe.  Na madrugada a gente parte daqui.  Vai dar tudo certo.  Repetiu.  Adormeci.

Quando acordei o churrasco já estava rolando.  Podia sentir o cheiro da carne assando. No meu pescoço os dois cordões pesavam. Ele os colocou enquanto eu dormia.   Acendi um cigarro e fui ver como estava tudo.  Os casais tinham se recolhido para matar a saudade. No tapete da sala minha neguinha brincava, entretida com os brinquedos. Menor B via futebol na televisão, Luiz, na cozinha preparava os acompanhamentos do churrasco, salada de maionese e um arroz com brócolis e os pães de alho.  No quintal Rick e Pará, na churrasqueira, cuidavam da carne.  O almoço estava quase pronto.  Fui tomar um banho e me arrumar um pouco. Mas, devido ao calor que fazia preferi um short e a camisa de flamengo do pai.    Quando sai todos já estavam à mesa e me saudaram com alegria. Todos muito felizes e comemorando uma nova vida. Olhei-os. Amava-os mais que tudo.   E, ainda uma tristeza tomava conta da minha alma, me obrigando a um sorrir forçado que ele percebia de longe.  Sentando à mesa resolvi que iria curtir tudo ali até o final sem me preocupar com nada. Viver o momento e só.  O almoço transcorreu em grande animação. Pará deu banho em Aninha e levou-a para o quarto, pois ela dormiu no meu colo.  Na varanda Menor B apertou um baseado.  Fumamos e nos recolhemos. Assim que anoitecesse iríamos tocar em frente. Finalmente.  Fizemos amor.  Estranhei o jeito do meu homem.  Estava extremamente doce e carinhoso.  Acho que queria me acalmar. Colocou o seu cordão no meu pescoço e disse:

_   Leva pra mim e só me entrega na Paraíba.  E me beijou apaixonadamente.

Conforme as horas iam passando minha ansiedade saltava aos olhos e ele sempre se preocupava. Minha ansiedade o deixava nervoso e, depois de tantos momentos para lá de difíceis que passamos até aqui, prezava pela paz e de deixar as horas passarem amainadas até o momento de sairmos dali e todo aquele inferno ficaria definitivamente para trás. Por isso aquele gesto.

Eu não conseguia dormir. Agitada!  Ouvi o som dos helicópteros lá longe.  “Panquei” e levantei. A casa estava toda fechada.  Luiz Pedro e o Rick estavam checando os carros para a viagem.  Os helicópteros estavam se aproximando mais e mais. As sirenes cantaram lá longe.  O barulho de muitos carros parando na frente da casa. Daí, os tiros, muitos e gritos.  Entre eles podia distinguir os do Rick e do Luiz  sendo mortos  lá fora da casa.   Gritei!  Pará se levantou num pulo e o tiroteio começou.  Feroz.  Arrasador. A casa ia se desfazendo junto com nossos sonhos de paz e vida nova.. Estávamos de volta ao inferno.

Passei com minha afilhada pelo buraco e minha vida se acabou ali. Foi como passar num túnel do tempo.  Tudo o que eu amava ficou para trás, morto.  Quase tudo. Precisava pensar em Ana Lúcia. Era só um bebê e, o que tinha além de mim não prometia nada de bom para o seu futuro.

-  Graças. Ela é muito novinha e vai esquecer de tudo isso.  Pensei aliviando a mente enquanto descia o morro rumo à Comunidade do Engenho Pequeno. Alemão era o dono daquele lugar.  Eu tentava de todas as formas manter minha mente no presente, nas coisas que estavam acontecendo e de como eu deveria agir dali para frente. Afinal eu e minha neguinha éramos sobreviventes de um massacre.  A polícia ainda procurava drogas e armas na mata em volta da casa.  Não chegaram a subir o morro mas, enquanto estivessem rondando o barracão ficava vulnerável. E por dois dias plantaram na comunidade. A ameaça ao movimento interferia na renda daquele povo que, ruim de tudo, me acolheu.  Não gostava disso.  Atrapalhar os lucros do tráfico de drogas local não era uma ideia agradável.

A descida era difícil.  Minhas pernas ainda tremiam, passei dois dias inconsciente e  três me recuperando, na moral, para atravessar a mata e chegar na casa do Alemão, no alto da favela.  Ainda estava fraca e o choro rompia de repente, tornando a caminhada mais longa, bambeando ainda mais as pernas .  Os homens, fortemente armados, paravam comigo com  toda paciência. Alemão não estava e  Bamboinha, o líder daquele grupo de dez, me lembrava a cada parada que já ia amanhecer e tínhamos que aproveitar a escuridão. Engoli o choro e andei sem parar mais nem olhar para trás.   Não choraria mais, prometi a mim mesma.  Todas as fichas haviam caído!

A casa do Alemão era uma boa casa. Ficava no ponto mais alto do morro de onde podia-se avistar toda a comunidade que mais parecia um aglomerado de pequenos sítios, com hortas e pomares espalhados pelas pequenas propriedades:  era a comunidade do Engenho Pequeno.  A mulher dele me recebeu com gentileza e um sorriso animador. Todos dormiam.  Amanhecia. Manhã de domingo. Fazia, então, uma semana que meu marido e todos do nosso bando tinham sido mortos.

- Maldita lembrança! Pensei.

  O bando do Alemão se espalhou pela varanda, procurando  assento e descanso para a jornada pesada. Era um varandão feito de madeira muito amplo e agradável.   Eu estava muito cansada e com fome também. Imaginei que todos ali estavam.   No balcão, água gelada nos aguardava. Bebi da água e me joguei em uma das cadeiras ali dispostas. Eu precisava de um banho antes de qualquer coisa.

As armas foram sendo colocadas, pelos homens, cuidadosamente, nos cantos da varanda  e Bamboinha, o braço forte do Alemão lembrava:

 - Ninguém entra armado na casa do patrão.  O café vai ser servido, cambada. Podem chegar.

.A mulher do Alemão, me levando para dentro, prontamente me ofereceu o banheiro e trouxe uma toalha, eu nem precisei pedir.  Quando saí do banho os homens já estavam à mesa, que posta na sala, tinha de tudo para um bom café da manhã.  Parecia de uma casa de fazenda aquela sala.  Muito ampla e com vários ambientes.  O silêncio reinava absoluto. Aos poucos os que se fartavam iam saindo e eu que comia devagar me sentia calma como há muito não sentia. Ela se sentou ao meu lado.  Disse que as crianças dormiam e que Aninha não parava de perguntar por mim.  Que dormia e comia com dificuldade. Pensei naqueles dias acamada e senti muito como minha neguinha devia estar confusa.  Ela disse que as suas crianças, seis, filhos,todos do Alemão, se deram muito bem com Ana Lúcia e brincavam o tempo todo.  O nome dela era Maria e seu sotaque pesado nordestino me dava aflição.  . Era uma mulher forte, branca baixinha e de corpo bem torneado, peitos grandes e um cabelo preto, denso que ia até a cintura.  Nem parecia que tivera seis filhos. Seus olhos eram pequenos, verdes clarinhos e olhar direto. Me agradava de pessoas assim: de olhar direto! Mostrou-me o quarto onde eu podia descansar. Tinha banheiro nele e tudo que eu pudesse precisar.  Algumas roupas estavam em cima da cama e ela disse que Alemão comprou para mim.  Sabia que fiquei sem nada.  Acenei com a cabeça consentindo. Nem podia falar; o cansaço, as lembranças  e a vontade de chorar sem fim me emudeciam.  Adormeci.

Acordei assustada sem saber onde estava. Aos poucos fui me dando conta da situação.  O cheiro bom de comida invadia o quarto e a algazarra de criança também.

- Minha neguinha.  Quanta saudade. Pensei.

Era hora do almoço. A roupa serviu direitinho. Me arrumei e fui.  Na sala, Alemão brincava com as crianças. Ana Lúcia quando me viu veio correndo, gritando:

- Dindinha!  Dindinha. E pulou no meu colo.

  Abracei minha neguinha com vontade, ninando aquele bebê tão amado.  Era um alívio vê-la bem, viva e feliz.  Maria entrou na sala, avisando que o almoço estava servido.  Eu não tinha fome e podia ver que Aninha estava emagrecida. Me animei pois sabia que isso ia animá-la a comer também.  Almoço farto. Minha menina comeu bem e isso me aliviou.  A conversa rolou solta e despretensiosa, com Alemão contando como tinha sido sua viagem ao Rio.  Tinha ido fazer novos contatos e procurar novos fornecedores já que a Rocinha continuava ocupada pela PM.  Escutava tudo lá longe, me esforçando para mostrar interesse, mas podia perceber que eles se esforçavam para que eu ficasse em paz ali.  As crianças foram brincar no quintal.   Alguns brinquedos faziam a alegria da garotada. Eram seis crianças, com Aninha sete, que se divertia agarrada a um Velotrol e sendo empurrada pelo menino mais velho, que ajudava a mãe a cuidar de tanta criança.

Eu me sentei na varanda.  Alemão se sentou ao meu lado e acendeu um baseado.

- Obrigada!  Lembrei que ainda não tinha agradecido a ele.

-Por nada não, patroinha!

- Obrigada por ter cuidado da menina. Era a única coisa que eu conseguia dizer.

Fumamos em silêncio, observando a criançada brincando no quintal.

Aqui, do alto da Comunidade do Engenho Pequeno, no pé do Morro do Grotão, em São Gonçalo, uma semana depois da tragédia, olho o sol se pôr no horizonte com muita vontade de ir com ele. 

 _ Os pássaros cantam e todas as manhãs despertam intactas. Lembrei desse pensamento e me ofendi! A vida seguia, implacável e em nada lembrava a terrível matança e o pesadelo que tinha sido isso para todos nós ali.

A noite veio mansa, apesar de tudo estávamos equilibrados. Maria, ajudada pela Mãe de Santo e uma menina que lhe servia como babá  recolheram as crianças para o banho e foi cuidar do jantar.  Novamente o cheiro de comida boa encheu o lugar.  As crianças foram servidas na cozinha e depois de passarem pelo banheiro, direto para cama.  Aninha dormiu logo. Cansada das brincadeiras meu bebê parecia em paz.  Havia muita paz naquele lugar.

Jantamos em silêncio e o café foi servido na varanda. Maria se despediu do marido com um beijo na boca, me deu um  tchau tímido.  Levantei-me e abracei-a. Aproveitei para agradecer por tudo até ali.  Ela foi-se.  Percebia-se o cansaço da lida doméstica em seu rosto.

Alemão, sentado a meu lado, me passa o baseado.

-  Vai quando?  Perguntou.

- Amanhã.  Disse pensando em tudo que tinha acontecido.

 Voltar para casa, finalmente.  Precisava voltar ao meu mundo, voltar para a minha favela e ressuscitar para encarar tudo o que me esperava lá.

Sem dizer nada, ele me estendeu um embrulho. Um pacote que eu peguei e abri devagar adivinhando que ia doer muito. O conteúdo do pacote me fez tremer.  Eram a minha pistola, dois pentes carregados e a granada que eu sempre levava e chamava de fruta de conde. 

-  Ele pediu para te entregar isso, caso desse alguma coisa errada. 

Não chorei. Coloquei a arma no cós e a granada dei a ele. Não ia atravessar de São Gonçalo  para a Rocinha com uma granada.  Tirei um dos cordões do pescoço, a letra “P” pendurei no meu e pedi que vendesse. Precisava de grana para comprar umas roupas para mim e para Aninha, além de mochilas, uma maleta térmica e mamadeiras e pagar o valor das passagens.  E ainda chegar com algum em casa.  Não sabia o que ia encontrar lá.   Aquela noite dormi pesado.  Queria que passasse logo, assim, eu poderia enterrar definitivamente os meus defuntos ali naquele lugar, carregar minha dor e tentar recomeçar.

Quando acordei já passava das nove e estava tudo pronto para partirmos. A mochila com as coisas que pedi me aguardava ao pé da cama.  Tudo de muito boa qualidade e bom gosto.  Tomei um belo banho. Maria cuidou de Ana Lúcia que já estava arrumadinha esperando por mim.

 Particularmente, odeio despedidas.  Maria fez um bolo para a viagem e Alemão me levou de Kombi até a rodoviária de Niterói. A Kombi do Luiz.  Foi ele quem o levou até a rodoviária e voltou trazendo a Kombi, pois Luiz voltaria dirigindo uma das Blaizer.        O cheiro dele ainda estava ali.  Nos olhamos e as palavras pareceram desnecessárias.  Aninha reconheceu o carro e chamou pelo pai.  Chamou pelo padrinho também.  Não respondi nada e apertei-a no colo, cumprindo a promessa que fiz a mim mesma: não choraria mais!

Nos despedimos, ele era um bom amigo e me desculpei por todo o trabalho que dei. Agradeci por tudo.   Ele sorriu, coisa rara naquele homem.  Nordestino arretado, parceiro do meu marido morto.  Da janela do ônibus um último aceno.  Àquela altura eu não sabia, mas, ainda, o veria e faríamos bons negócios juntos.  Dei adeus aquele lugar, para mim, maldito. Nunca mais voltaria por ali.

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