Itália
14 de Julho de 1874
O vento era forte naquela noite. Depois do jantar e da péssima cantoria das primas naquela sala de estar, Sam decidiu se isolar dos parentes e admirar a paisagem. Apesar da comida tradicional italiana e da boa companhia dos vizinhos e amigos mais próximos da família, nada lhe satisfazia mais do que o ar gelado na noite e a doce visão do prado de sua família. Sentado nos degraus, o caçula dos Smith observava as estrelas, sonhando com o dia que seus pais finalmente retornariam à América.
- Parece cansado irmão - A jovem de beleza italiana se sentou ao seu lado, o doce farfalhar do vestido de seda branca podia ser ouvido conforme ela se movimentava graciosamente. As mãos finas e delicadas postas abaixo do queixo curvilíneo destacando o rosado de suas bochechas e os fios negros que dançavam sobre sua face. - Nossas primas dedicaram uma música a você.
- Que bom que não estava lá para ouvir. - Os irmãos gargalharam criando uma atmosfera leve ao seu redor, com um ar nostálgico eles observavam a fazenda na qual cresceram nos últimos anos.
Sam tinha apenas doze anos quando seus pais atravessaram o oceano para fugir de agiotas e a gigantesca dívida que destruiu as terras de seus avós. Os anos na casa de uma jovem família que os abrigou foram os melhores, os dias eram mais simples e consideravelmente mais quentes, o manto da humildade cobriu sua juventude de sonhos. Mas apesar do novo negócio com os vinhedos, Sam não via a hora de retornar às Américas e limpar o nome de sua família.
- Vou para o convento em dois dias. Nossa mãe já preparou tudo para minha partida. - A grande visão dos sonhos de Sam se viu nublada pela névoa de dias mais sombrios.
Desde que seus irmãos mais velhos viajaram para a capital em busca de ofertas de trabalho mais promissoras, seus dias têm sido moldados pela companhia de Elizabeth. Para um jovem de dezesseis anos, nada parecia tão empolgante quanto protegê-la dos abutres que cercavam a fazenda em busca de seus dotes mais femininos.
Elizabeth era uma dama, ele a protegeria de homens tão pérfidos e libertinos o máximo que pudesse. Sam se via numa missão heróica, o bravo guerreiro que protegeria a princesa até que um homem digno a levasse para seu destino de felicidade.
O que Sam não sabia era que para uma jovem como ela o seu destino não reservava nenhuma grande aventura e muito menos um príncipe num cavalo branco.
O convento lhe daria a melhor educação que uma moça de sua classe social poderia ter, no futuro ela poderia se casar com um homem mais velho e ter atividades mais condizentes com o seu sexo biológico, tais como bordar tecidos, gerenciar uma casa e ter todos os filhos que seu marido desejasse. Sem opinião e definitivamente sem escolha.
- Vou visitá-la quando puder. - Elizabeth sorriu em direção ao horizonte, um fantasma obscuro atravessando seus olhos brilhantes, como um presságio de algo terrível ou talvez o medo crepitante de seu destino. - Vou sentir sua falta pequena Lizzy.
- Não sou mais tão pequena assim. - Uma expressão infantil surge em seu rosto junto ao ato de bagunçar os fios dourados do cabelo de Sam o deixando com um ar mais jovem. A lembrança do garoto franzino que batia em sua porta nas noites tempestuosas lhe vem à memória e uma fina lágrima ameaça deslizar pelo rosto de Elizabeth.
- Para mim não cresceu nada - A garota ergue-se desferindo um pontapé contra a perna de Sam que a encara de um jeito ameaçador.- O que pensa que está fazendo?
Com um ar infantil Elizabeth corre em direção ao campo com um sorriso no rosto, o vento desalinha a delicada trança em seus cabelos e a jovem dama da sociedade se torna pela última vez a boa e velha Lizzy.
- Quem chegar por último ao riacho há de limpar os estábulos. - Com a aposta lançada, Sam corre atrás da garota, adentrando o vinhedo durante a noite mais fria do verão.
A noite era escura e a falta de luminosidade pelas parreiras deixava o caminho ainda mais complicado de se seguir. A doce risada da jovem cessou conforme iam ainda mais longe no vinhedo e aos poucos Sam percebeu que a perdeu completamente de vista.
- Lizzy! Elizabeth! - Sam correu pelos corredores estreitos, ignorando completamente as manchas vermelhas recém adquiridas em sua camisa branca. Sua irmã agora era uma moça sozinha numa terra escura, o perigo podia estar à espreita em qualquer um daqueles corredores. Ele sabia que era uma péssima ideia desde o momento que se ergueu daquele degrau. - Onde você está Elizabeth?!
Por um minuto um silêncio gutural se instaurou e nada foi ouvido em toda extensão da fazenda, foi como se o tempo parasse e por aquele pequeno momento milhares de pensamentos obscuros passassem pela cabeça de Sam.
Sem mais se conter ele concentrou todas as forças que possuía e correu o máximo que podia, quando seus pensamentos passaram a assombrá-lo com a certeza de uma irmã desaparecida um grito femino cortou a noite como trovões no céu.
Elizabeth estava em perigo e ele era o único que podia ajudá-la.
O som de água corrente era o único som a ser ouvido nas proximidades do riacho. A mera existência daquele corpo de água era responsável pela fartura de sua família, era riqueza de uma terra fértil e a paisagem mais bonita da pradaria.
Mas não naquela noite. Pois ali na margem, em meio a vegetação rasteira e as nuances de flores mortas havia o corpo de Elizabeth, a bela jovem dera seu último suspiro naquela noite estrelada sem qualquer chance de proferir seu adeus.
Sam a pegou nos braços e com dificuldade a posicionou debaixo de uma macieira. Seus olhos lacrimejavam com a pressão do momento, ele parecia perdido, pois as ondas do desespero dançavam pelo seu corpo.
- O que houve Lizzy?! - Ao segurar parte do corpo sobre seu colo ele a observou.
Seu peito fora destruído pela lâmina de uma espada, o corte era limpo e profundo exibindo os ossos quebrados e as marcas de sangue que tomavam o tecido alvo transformando a suavidade do branco num pesadelo escarlate.
Sua pele bronzeada estava coberta por linhas escuras, como se suas veias explodissem debaixo de sua pele. A expressão de pânico foi marcada em seus olhos, como um sussurro lento de uma noite sem sonhos.
Na outra margem um espectador observava a cena sem expressar nenhum mísero sentimento.
A espada antes fria e reluzente agora estava úmida com o sangue fresco.
A escuridão noturna mantinha sua energia obscura oculta, num cofre de mentiras e sacrilégios ele mantinha a lembrança do rosto de suas vítimas.
Uma coleção fúnebre em torno da mais dolorosa. A memória de sua amada aos gritos antes de ser arrancada de seus braços o atormentava sempre que fechava os olhos.
Essas pequenas mortes eram apenas o peso extra, ele já não era mais capaz de sentir o pesar da gravidade de seus atos. Tudo era escuro em nuances de cinza e preto, não havia mais luz suficiente para ajudá-lo, apenas o vazio sussurrante e suas ordens cruéis.
- Tanta exposição por alguns nefilins mortos. - Acompanhada de uma névoa carregada de pura energia a mulher se projetou ao seu lado numa ilusão de sua forma original. Os olhos marcados e a face pálida eram seus traços principais munidos de sua herança asiática. Muriel era a verdadeira expressão da solenidade. - Pode perder suas asas por isso.
- Já perdi coisas demais para me importar. - O homem deixa o local do assassinato se esgueirando pela floresta, as árvores dificultam a passagem mas isto não parece ser um problema.
- O Conselho quer a sua cabeça. Aqueles anciãos estão loucos para te matar. - A mulher prossegue ao seu lado sem ser afetada pela dificuldade de locomoção, tentando a todo custo dissuadir aquele a quem chama de irmão.
- O próprio Conselho considera a união de anjos e humanos uma atrocidade. Me livrar deles é mais um favor do que um crime.
- Eles não vêem isso assim. Acham que matá-los é uma declaração de guerra.
- Se não queriam esse fardo deviam ter pensado nisso antes de tirarem ela de mim. - A menor se exalta e suas sombras ficam ameaçadoras, como garras afiadas gigantescas.
- Vai condenar mais mil anos de sua existência por uma humana?! Somos superiores! Pare de se torturar por nada. Ela morreu como um rato. Ela não merece que você condene a sua alma por ela. Não merece o seu sofrimento. - São curtos os segundos levados para que ele ergue-se sua espada contra o pescoço dela.
- Tem sorte de ser uma sombra. Do contrário pagaria tais ofensas com a sua vida. Sabe que não me custaria muito esforço arrancar a sua cabeça. - Muriel estremece em seu lugar sentindo o peso de tal ameaça.
Ela ergue os braços em sinal de rendição e a ilusão de sombras desaparece na relva numa névoa cinzenta. Tendo finalmente a desejada solidão o anjo segue seu caminho em busca de sua próxima vítima.
"Nem todas as mortes valerão a pena, mas por ela eu corromperei cada canto da minha alma, até que a escuridão me leve aos seus braços mais uma vez.""A ilusão de liberdade destruiu o mundo dos arcanjos e com a grande queda seus resquícios de orgulho corromperam o mundo dos homens."Nova IorqueDias atuaisAs ruas da grande cidade estavam repletas de pessoas, turistas circulavam pelas vitrines com câmeras documentando tudo. Sejam roupas de grife ou a sombra de um arranha-céu iluminado pela luz do sol. Todos estavam encantados pela selva de pedra, a gloriosa cidade de Nova Iorque.Para Alice Smith a cidade estava cheia demais e o fato de ter que trombar nas pessoas ao andar na calçada era terrivelmente irritante. Aquele era um dos dias mais frios que ela já viveu, apesar do festival de casacos nas ruas da c
Nova Iorque Com os portões abertos para o primeiro horário de visitação, os calouros foram engolidos pela atenção de todos os estudantes, por todo o campus e nos corredores, nas janelas dos andares mais altos e nas pequenas praças. Todos estavam interessados na nova remessa de escravos guiados pela Senhorita Clarke. Era como um divertimento pessoal para eles ver o desconforto na cara dos jovens.Após alguns minutos de visitação e uma longa palestra sobre os fundadores da Grove Hill e sua grande façanha na Wall Street, Alice sentiu a doce brisa em seu rosto após tantos minutos tediosos e sufocantes.O contato com o vento gélido lhe causou uma sensação de prazer seguida de uma leve t
Nova IorqueJá era noite quando Lucy estacionou o carro numa das ruas menos movimentadas do Brooklyn. O céu estava escurecendo o que indicava um fim de tarde ainda mais frio. Depois de dirigir por algumas horas despistando qualquer rastro dos rastreadores, ela finalmente chegou ao esconderijo. Não era nada muito aconchegante, mas servia para dormir algumas noites.Observando o corpo deitado sobre o banco do carona Lucy se perguntou qual o motivo de os demônios se interessarem por uma nefilim tão comum. A primeira vista não havia nada de peculiar, era apenas uma garota de aparência simples numa cidade grande.Ao notar o fino rastro de sangue na testa da garota ela sorriu descontente com seus própri
Atlanta A cabeça de Alice latejou naquela manhã, os raios de sol cegavam seus olhos ainda dormentes pelo sono, as coisas ainda eram confusas e nada fazia sentido. Não sabia quanto tempo havia passado na enfermaria da Grove Hill, mas no momento que reconheceu o teto branco de seu antigo quarto as coisas ficaram mais assustadoras do que de fato eram.De imediato Alice não notou a presença peculiar sentada sobre sua cama, a mulher a observava a vários minutos, os cabelos loiros e ondulados emolduravam a face redonda e pálid
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