"A ilusão de liberdade destruiu o mundo dos arcanjos e com a grande queda seus resquícios de orgulho corromperam o mundo dos homens."
Nova Iorque
Dias atuais
As ruas da grande cidade estavam repletas de pessoas, turistas circulavam pelas vitrines com câmeras documentando tudo. Sejam roupas de grife ou a sombra de um arranha-céu iluminado pela luz do sol. Todos estavam encantados pela selva de pedra, a gloriosa cidade de Nova Iorque.
Para Alice Smith a cidade estava cheia demais e o fato de ter que trombar nas pessoas ao andar na calçada era terrivelmente irritante. Aquele era um dos dias mais frios que ela já viveu, apesar do festival de casacos nas ruas da cidade o turismo nunca esteve tão forte.
Sentindo a friagem congelar o seu rosto ela entrou às pressas através das portas de vidro de uma delicatessen. O cheiro de café fresco e pãezinhos quentes deixou seu espírito mais quente, ela não podia esperar por um gole daquela maravilha numa caneca fumegante.
Sentando sobre o balcão Alice largou o sobretudo vermelho e a bolsa de lado no encosto do banco se sentindo mais à vontade com a temperatura. A jovem atendente surge diante de si com um bloco de notas pardo e um sorriso jovial, em alguns segundo ela retorna para o balcão com um café preto e alguns pães doces.
- Sabe quanto tempo demorei para te achar? Deve ter umas dez cafeterias só nessa avenida. - Ao ter sua atenção tomada pela ruiva estridente que se sentou ao seu lado Alice sorriu com o estado da garota.
Nathalie Green era sua prima adotiva e curiosamente sua melhor amiga. A ruiva de olhos esmeraldinos planejou aquela viagem durante um mês inteiro, todas as semanas até o tão famigerado dia foram um caos de roupas de viagem, sapatos novos e um plano secreto de visitar todos os pontos turísticos da cidade a tempo de voltarem a Atlanta.
Na verdade elas estavam ali com um objetivo mais sério, era o dia da orientação para a faculdade. Um tour para os novos alunos antes do primeiro dia da longa jornada até a graduação. Um bônus gentil de uma instituição que pretendia sugar suas almas e o seu dinheiro até o fim de cada ano letivo.
O plano era se instalar em algum alojamento na cidade e sobreviver com algum trabalho em meio período para ajudar com as contas. Enquanto Nathalie via uma oportunidade de negócios, Alice só conseguia imaginar a tonelada de responsabilidade que cairia em cima delas a partir dali.
- Bom, você já me achou então pare de reclamar. - Nathalie pede um café e um cupcake de nozes antes de se voltar para Alice com um envelope pardo repleto de papéis.
- Consegui um emprego! - Ela ajeita o rabo de cavalo ruivo e exibe um enorme sorriso. - Vou trabalhar numa loja de eletrônicos, com o salário posso financiar o apartamento sem a ajuda do seu pai.
- Como conseguiu esse milagre? - Alice encara os papéis do contrato boquiaberta. Era uma oferta simples para trabalhar no setor de RH, o salário base era convencional e havia um plano de saúde incluso. Isto era mais do que ela via para si mesma no futuro. - Vendeu sua alma para algum feiticeiro voodoo quando estivemos em Nova Orleans?
- Desculpe se eu já sou naturalmente sortuda. Não precisa ficar com inveja. - Alice sabia a facilidade com que a ruiva se irritava, apesar de usar sempre o deboche como arma de defesa, ela não se importou daquela vez. Estava orgulhosa.
- Não está mais aqui quem falou. - Erguendo as mãos em derrota as duas sorriram como sempre faziam. Este era mais um dia tradicional da família e nada poderia estragá-lo.
O som do sino na porta de entrada ecoou alertando a todos da chegada de mais um cliente. O homem alto de porte atlético entrou na delicatessen vestindo jeans e jaqueta de couro, os olhos de qualquer pessoa no recinto foram atraídos para a figura masculina quando o mesmo retirou o capuz exibindo os sedosos cabelos negros que reluziam contra a luz artificial.
Quando a atendente retorna com o pedido da ruiva, parece visivelmente abalada com a presença masculina posicionada ao lado das garotas. Ao senti-lo se aproximar Alice pode notar um arrepio surreal na espinha, quase como uma premonição de algo ruim.
- Já escolheu o que vai pedir? - A atendente pergunta erguendo seu bloquinho com as mãos trêmulas.
- Um café. Preto e sem açúcar. - Ao notar a expressão desconcertada no rosto da jovem garçonete Alice deixou escapar uma leve risada atraindo o olhar do homem sobre si.
A primeira vista a presença de ambos naquele lugar parecia insignificante, mas quando seus olhos tiveram o primeiro contato uma reação em cadeia ecoou em ambos. As pupilas dilataram, suas respirações chegaram a se descompassar suavemente conforme seus batimentos cardíacos pareciam em dúvida quanto a acelerar ou parar completamente.
Naquele momento uma fagulha ecoou na mente de Gabriel e ele não sabia explicar o porque aquela estranha o fascinava tanto.
Desfazendo o contato visual Alice tornou a olhar para o balcão tentando focar nos desenhos sobre seu café. O rubor tomava conta de suas bochechas e ela não sabia explicar a origem de tal sensação.
- Bela cicatriz. - As palavras saltaram da boca de Gabriel ao notar a formosa cicatriz no ombro direito da mesma. A forma se situava sobre a pele como um pequeno monte em formato de estrela, era delicado e desenhado quase que perfeitamente.
- É uma marca de nascença. - Naquele momento um aviso ecoou na sua mente como uma sombra de um passado distante e sem se importar com a imagem que deixaria de si próprio, ele fugiu daquele lugar o mais rápido que pode tentando se afastar daquela garota que em poucos minutos o fascinou tanto.
Quando a garçonete retornou com o café ela o procurou por toda extensão da loja mas se decepcionou ao não encontrá-lo. Vendo a frustração da jovem Nathalie a encarou com um sorriso.
- Ele já saiu. Não vai nos agraciar com sua beleza tão cedo. Pode enxugar a saliva e voltar ao trabalho querida.
A jovem deixou o local completamente chocada com a atitude da cliente e Nathalie encarou Alice com uma expressão no mínimo curiosa.
- Isso foi cruel. - Alice terminou o café largando a xícara cuidadosamente no balcão. - Estou até com pena dela. Você a massacrou.
- Ela é jovem, precisa cair na real e ficar longe desses deuses gregos, do contrário não sobraria nada para nós. - Nathalie sorriu de um jeito sórdido arrancando risos de Alice. As duas pagaram a conta e recolheram seus pertences se preparando para encarar a friagem das ruas de Nova Iorque.
Conforme seguiam pelas ruas Alice revisava o cronograma do tour estudantil. Apesar da distância de seus lares de infância, ela não pode se conter de ânimo quando a carta da Grove Hill chegou na sua porta. Um envelope azul com um emblema dourado com o que seria uma das melhores notícias da sua vida.
Apesar de não ser uma universidade de renome, o campus tinha um dos melhores programas de bolsa do condado, com boas notas e uma dedicação gigantesca a pós graduação em História ainda seria um sonho possível. Que sabe conseguir seu PHD em alguma universidade conceituada, a linha de opções era gigantesca, mas ela sabia que para isso precisava sair de casa e alçar voo sozinha.
- Você está me escutando? - Nathalie chama a sua atenção e Alice retira a cara dos papéis por alguns segundos.
Paradas diante dos portões, elas observavam o esplendor do campus, no momento que pousaram os olhos no prédio principal o amor por construções antigas de Alice se sobressaltou e ela não conseguia parar de observar.
Tendo crescido em diversas cidades diferentes ao longo da vida, ela não tinha uma base concreta de um lugar bom para viver. A família Smith já migrou de fazendas para cidades pequenas no velho Texas e em lugares mais florestais na Geórgia. Atlanta foi a última parada da família e apesar da cidade grande nada se comparava ao campo. Ela ainda podia se lembrar de sua mãe abrindo as janelas do seu quarto para que ela pudesse sentir o cheiro da floresta pela manhã.
Se alinhando na fila de espera, elas procuraram o stand da sua cidade em busca de seus crachás de identificação. Analisando a quantidade de pessoas por grupos divididas pelo tour, Alice ficou um pouco mais calma pela quantidade de calouros presentes. Não tantos para sufocá-la na multidão, mas também o suficiente para não ser o foco de ninguém.
- Novamente você não me escuta. Estou dizendo que o cara do café está aqui. - Observando a direção guiada por Nathalie, Alice avista o mesmo no fim da fila.
Fascinada pelo seu rosto ela toma um tempo para observá-lo. A pele clara tinha um leve tom de bronzeado e os olhos destacavam os traços elegantes do seu rosto. Cabelos escuros e desalinhados cortados num corte moderno realçando o ar rebelde de suas roupas. Sua postura tinha a imponência de um predador, ele observava o ambiente como se esperasse por alguma coisa. Exalando uma energia cativante e perigosa, do tipo que as mães avisam para manter distância, mas também os que te fazem querer se aproximar.
- Próximo. - A mulher no stand chama a atenção de Alice que se aproxima da mesa de plástico branca. - Nome, idade e sua cidade por favor.
A responsável pelo stand ostentava uma aparência curiosa, o terninho laranja na mulher de estatura diminuta era um item de vestuário curioso. Adicionando o delineado borrado e a expressão carrancuda ela poderia ser facilmente um duende ranzinza com um pote de ouro ou uma abóbora na TPM.
- Alice Katherine Smith, dezoito anos, Atlanta. - A mulher procurou o nome na pilha de papéis e logo em seguida adicionou um carimbo na folha do candidato entregando um crachá de visitante a Alice. Tudo isso sem sequer encará-la.
Se recostando contra o muro perto do grande portão Alice fechou os olhos e esperou em silêncio. Um suave comichão na sua nuca veio com a sensação de estar sendo observada. Ao olhar para a outra extremidade do portão, ela pode vê-lo olhando fixamente para si. Os olhos negros eram como a imensidão de um céu noturno sem estrelas, ela sabia que se pudesse passar a vida observando aqueles olhos ela seria sugada por eles até não mais se reconhecer.
Quase sempre que uma troca de olhares ocorre é comum virar o rosto em outra direção logo que percebido, naquele momento Gabriel não quis disfarçar ao ser pego no ato. Ele não sabia se era a expressão de desafio, a ideia de proibição ou a energia que emanava da aura dela em direção a ele. Seja quais forem os planos do universo, Gabriel sentia que jamais poderia se cansar de se afogar naqueles olhos castanhos.
- Ansiosa? - Nathalie perguntou surgindo na frente de Alice cortando o contato visual entre os dois.
- Claro. Será fantástico. - Observando o mesmo se juntar ao resto do grupo Alice se posicionou a uma distância considerável, seus pensamentos sobre o estranho sendo afastados pela voz estridente da mulher do stand que se posicionou diante de todos para um pronunciamento.
- Bom pessoal. Fui designada pelo campus para acompanhar vocês neste tour. Para os que já fizeram os exames de admissão será uma experiência incrível. Para os que não fizeram tem até o ano que vem para se lamentar. - Com um ar severo a mulher manteve todos no grupo em completo silêncio a cada frase pronunciada, apesar de todos os empecilhos em sua personalidade todos ali tinham o mesmo pensamento. Ela sabia como prender uma plateia. - Sou a senhorita Abigail Clarke, por favor não se separem do grupo ou atrapalhem a explicação, não tolero indisciplina. Quero todos quietos e em ordem nas próximas duas horas.
O silêncio permaneceu apesar de seu discurso ter sido concluído, neste ponto uma satisfação tomou Abigail e ela se dispôs a dar o primeiro, e talvez o único, sorriso do dia.
- Ótimo. Vamos começar.
Nova Iorque Com os portões abertos para o primeiro horário de visitação, os calouros foram engolidos pela atenção de todos os estudantes, por todo o campus e nos corredores, nas janelas dos andares mais altos e nas pequenas praças. Todos estavam interessados na nova remessa de escravos guiados pela Senhorita Clarke. Era como um divertimento pessoal para eles ver o desconforto na cara dos jovens.Após alguns minutos de visitação e uma longa palestra sobre os fundadores da Grove Hill e sua grande façanha na Wall Street, Alice sentiu a doce brisa em seu rosto após tantos minutos tediosos e sufocantes.O contato com o vento gélido lhe causou uma sensação de prazer seguida de uma leve t
Nova IorqueJá era noite quando Lucy estacionou o carro numa das ruas menos movimentadas do Brooklyn. O céu estava escurecendo o que indicava um fim de tarde ainda mais frio. Depois de dirigir por algumas horas despistando qualquer rastro dos rastreadores, ela finalmente chegou ao esconderijo. Não era nada muito aconchegante, mas servia para dormir algumas noites.Observando o corpo deitado sobre o banco do carona Lucy se perguntou qual o motivo de os demônios se interessarem por uma nefilim tão comum. A primeira vista não havia nada de peculiar, era apenas uma garota de aparência simples numa cidade grande.Ao notar o fino rastro de sangue na testa da garota ela sorriu descontente com seus própri
Atlanta A cabeça de Alice latejou naquela manhã, os raios de sol cegavam seus olhos ainda dormentes pelo sono, as coisas ainda eram confusas e nada fazia sentido. Não sabia quanto tempo havia passado na enfermaria da Grove Hill, mas no momento que reconheceu o teto branco de seu antigo quarto as coisas ficaram mais assustadoras do que de fato eram.De imediato Alice não notou a presença peculiar sentada sobre sua cama, a mulher a observava a vários minutos, os cabelos loiros e ondulados emolduravam a face redonda e pálid
Nova IorqueApós algumas horas de arrumação e um belo café da manhã, ambas estavam circulando pelas ruas de Nova Iorque a pelo menos um metro de distância dos grandes portões da Grove Hill.- Você tem que pegar seus horários na reitoria. Eu vou para o meu prédio e tentar me achar naquele labirinto. - Nathalie seguiu para os prédios ao sul deixando Alice sozinha no meio da multidão. Como se a jovem já não odiasse o suficiente estar cercada de pessoas.O prédio principal era o mais fascinante de todos os prédios da universidade. A arquitetura antiga e os tons escuros o destacavam de todos os outros, estátuas ornamentavam os corredores e as jan
Nova IorqueHaviam muito poucas coisas que Alice considerava realmente satisfatórias em sua vida infeliz e frágil, mas quando foi arrastada para o shopping por Nathalie e Lucy naquela tarde de quarta feira, Alice sabia que aquela atividade jamais estaria na sua lista de satisfação. Não que detestasse fazer compras, às vezes em dias propícios ela gostava de circular pelas lojas e se imaginar dentro de vestidos caros, mas gostava de fazê-las sozinha, pois podia circular pelas lojas pelo tempo que precisasse sem que ninguém a apressasse.Fazer compras com as garotas não era tão ruim, mas poderia ter sido uma experiência melhor se Nathalie e Lucy não ostentassem caras feias cada vez que dirigiam a palavra uma à outra. Alice nã
Nova Iorque Do outro lado da cidade Scott se aproximava do esconderijo após uma longa corrida pelo bairro, a velha casa parecia muito melhor naquele fim de tarde, o jardim tinha um pouco mais de cor comparado a noite anterior, o que queria dizer que Simon havia finalmente dado seu toque mágico que ameaçou fazer a semanas. Ainda parecia uma casa vazia, mas não por completo, como se estivesse pronta para ser habitada seria o melhor jeito de definir.Ao entrar na casa Scott pode ver a figura de Simon sentado no sofá com uma lixa de unha rosa flutuando sobre suas mãos, uma luz amarela rodeava o objeto como um vagalume, um feitiço básico de rastreamento que iria requerer uma concentração gigantesca.- Onde est&atil
Nova IorqueQuando Alice morava na Geórgia, John costumava fazer trilha nas florestas do estado, unidos a Scott e Nathalie eles viajavam bastante para acampar sobre a natureza, numa dessas viagens a família foi parar em uma floresta perto da reserva dos índios. Alice tinha por volta dos seis anos quando acabou se perdendo na trilha e passou quase doze horas embaixo de uma árvore com uma garrafa de água e o canivete que havia pegado do pai, desde esse dia Alice não suporta florestas escuras.Naquela noite Alice sonhou com uma floresta densa e escura, usava roupas arcaicas e habitava um corpo estranho, não sabia exatamente quem era, mas aquele corpo sabia exatamente aonde a levar. Não tinha o menor controle de seus movimentos, era como estar pre
Nova IorqueApós a briga com Scott na entrada da velha casa, Lucinda se sentia mais cansada do que jamais se sentiu em toda sua vida, a fome corroia suas entranhas como um animal zangado, seus músculos estavam tensos e suas roupas cheiravam a pó e fumaça. Mas na sua mente conturbada tudo que podia pensar era em sua irmã Maia, não a via desde o incidente a cinco anos, quando após ser capturada por lobos foi deixada num hotel de beira de estrada com cinco dólares e uma bolsa de sangue.Não era justo ser lembrada de toda dor daquele momento e por isso sem pensar duas vezes Maia foi embora pela primeira vez em séculos, garantindo que Lucy ficaria bem sem a sua presença, ela voltou ao submundo em busca de distraçõ