Infância - Parte 1: O pedido

          (Uma aventura pirata completa em 3 capítulos. Este e os dois seguintes!)

                                                           *

                                                     Prelúdio

                                                 - A pergunta -

       Minha arte se tornou parte da minha vida e minha vida se tornou parte da minha arte. Escrevi um livro sobre um pirata e o interpreto em peças teatrais adaptadas. O interpreto por tantos anos que meu visual cotidiano remete a ele.

       Certa vez estava num evento, ao lado de um palco, aguardando o momento de entrar para mais uma apresentação teatral e um garoto veio até mim. Meu visual pirata ia além da bandana do dia a dia. Trajava o figurino completo, incluindo as espadas. O garoto parou ao meu lado e perguntou:

       – Você é um pirata de verdade?

       – Sim – respondi, depois de alguns segundos. Percebendo a dúvida no olhar do menino, completei: – Se a verdade for o que eu quiser que ela seja.

       – Ah! Assim não vale. Isso é trapaça! – a criança falou, um pouco indignada.

       – É o que nós, piratas, fazemos – falei, sorrindo.

        A criança sorriu também.

                                                          *

        A curiosa criança assistiu a apresentação. Pude ver sua admiração, em diversos momentos, estampada no rosto. Imaginei que ele viria me cumprimentar no final e dizer que queria saber mais sobre o pirata. Não veio, no entanto.

       Para o garoto tinha bastado, provavelmente, e havia sido apenas uma apresentação teatral; fantástica, mas irreal, de um personagem de um livro. Uma mente tão jovem não poderia compreender a verdade.

       Aprendi a olhar através do tempo para possíveis futuros. Um deles me chamou a atenção, por ser fascinante.

       Certamente é apenas um futuro de muitos, mas nem por isso é menos real. Independentemente disso, o importante é o que a aventura nos conta. Como diria o pirata Ônix: “O bom da mentira é nos fazer sentir algo de verdade”.

       Se você estiver disposto apenas a considerar a possibilidade, lhe convido a embarcar neste navio e tirar as próprias conclusões.

                                                        Lúdio

                                                   - O pedido -

       Eu poderia dizer que todos os dias que se tornam dias incomuns, começam de forma comum; e geralmente é verdade, mas aquele já não era um dia comum e por isso o pirata foi surpreendido.

       Para quem conseguia saltar de alturas absurdas e executar piruetas no ar a partir de impulso próprio, o esforço para simplesmente andar, ia além do físico. Era angustiante.

       O pirata Ônix Pedra-Negra estava enfiado debaixo de uma capa com capuz de couro velho. A razão disso não era a chuva fina que caía. Ele andava com dificuldade, disfarçada na lentidão. Havia levado um tiro na coxa esquerda, fazia semanas. A bala feriu a carne e resvalou num dos lados do fêmur. O capuz ajudava a mantê-lo escondido e fora de lutas que não poderia vencer naquele estado. Se conseguisse passar despercebido por pelo menos mais uma semana, teria mais chances de sobreviver para realizar o seu grande plano, bolado com extrema ousadia. É sempre um “se” a fazer toda diferença.

       Ônix olhou ao redor e viu uma movimentação típica daquela época do ano na região. Pouca gente. Lojas sem muitos produtos. Era o terceiro mês do ano 522 do Novo Tempo.

       Mirou uma construção destruída e foi naquela direção. Sentia cada passo. O esforço fazia a perna ferida parecer em chamas. O corpo todo esquentou. Entre as paredes destruídas, repletas de buracos, em meio ao mato crescendo onde antes havia sido uma casa enorme, ele jogou o capuz para trás e mirou o céu nublado. O telhado não estava destruído. Simplesmente não havia mais telhado.

       A chuva fina molhou seu rosto. O calor do esforço foi aplacado. Sentiu o vento frio. Adorava água fria. Despertava seus sentidos. Sorriu. Escutava as gotas que se formavam no mato pingando na terra. O sorriso desapareceu, no entanto, ao ouvir passos atrás dele.

       Estivera sendo seguido e não percebera. O ferimento era uma praga maior do que imaginou. Manter o movimento da forma mais natural possível, para não evidenciar estar ferido, lhe exigia toda a sua atenção. Essa era sua única vantagem e teria de bastar naquela situação.

       Se alguém o procurava, sabia de suas perícias elevadas de combate. A reputação era sua única defesa. Muitas vezes venceu lutas sem precisar lutar. Embora, nessas vezes, ele poderia ter lutado, se preciso fosse. Não era, definitivamente, o caso naquele momento.

       – Olá – a agradável voz feminina saudou atrás dele.

Ônix se virou, lentamente. Sentia dor, mas colocou um sorriso jovial no rosto. Se fosse uma oponente, não devia notar nele qualquer sinal de insegurança. Se não fosse uma, também.

       – Olá – Ônix respondeu.

       – Não se lembra de mim, não é? – Ela apertou os lábios, esticando o sorriso, enquanto erguia as sobrancelhas. Era uma mulher de cabelos escuros, debaixo de uma touca de pano, feito as de empregadas. O vestido era simples, mas limpo. As mãos dela estavam para trás. Ônix não se lembrava dela.

       – Claro que lembro – ele disse.

       – Sou a Éfyn – ela, evidentemente, notara a mentira descarada do pirata. O nome não ajudou. 

       – Claro que é – ele insistiu, sem ter ideia de quem poderia ser.

       – Daquela noite na tenda escura – ela foi mais específica.

       – Ah! – o rosto do pirata se iluminou com a lembrança e a surpresa. Finalmente sabia quem era. – Isso foi há bastante tempo!

       – Quase oito anos – ela confirmou. Colocou uma mecha fugitiva de cabelo atrás da orelha e sorriu. Tinha charme e o pirata notou.

       – Bem, tenho os próximos dias livres por causa de umas férias forçadas; veja quanta sorte. – Ônix deu um passo lento na direção dela. A velocidade reduzida era tanto para não demonstrar anseio em estar perto dela, o que sempre mantinha a coisa interessante, quanto para ela não notar seu ferimento. – Somos crescidos agora. Não precisamos mais de tendas escondidas nas sombras.

       – Não posso – ela falou. Havia algumas notas de pesar em sua voz. De trás dela saiu um menino, magrinho, de cabelos negros e encaracolados, na falta de um corte recente. A criança pegou a mão da mulher e olhou para o pirata por um breve instante, antes de mirar o chão.

       – Ó, entendo – disse Ônix, ao se abaixar, ajoelhando e apoiando na perna boa. Certamente se arrependeu da ousadia. O mero dobrar da perna machucada o fez sentir novamente o fogo interno na ferida. Para disfarçar o desconforto, perguntou: – É seu filho?

       – Sim.

       – E quantos anos ele tem? – perguntou o pirata, sorrindo.

– Quase oito – ela respondeu, soerguendo as sobrancelhas e esticando os lábios num sorriso um tanto desconcertante. O pirata se levantou. A expressão era séria. Dor e suspeita. A chuva fina deixou de cair, como se o céu parasse para observar aquela cena com mais atenção. Ônix mirou Éfyn nos olhos e balançou a cabeça em negativa. A mulher balançou a cabeça em afirmação, de forma bem discreta. O pirata fez uma careta.

       – Preciso que cuide dele por mim, por uns dias – Éfyn foi objetiva.

       – É que estarei muito ocupado nos dias seguintes, veja quanta falta de sorte – Ônix falou, recuando ante o impacto das palavras da mulher. A criança apertou a mão da mãe, olhando para o lado oposto. Éfyn colocou a mão livre na cintura e esboçou uma cara de fúria. Ônix entendeu o recado e coçou a barba de seu cavanhaque, pensativo. Voltou a se aproximar. Mantendo a careta, disse diretamente para a criança: – Mas, talvez, eu possa ficar de olho em você um tempinho... dias... apenas... e como amigo, tudo bem?

       – Tudo bem. Só namoro meninas mesmo – o menino falou, sacudindo os ombros e segurando um riso.

       – Dinho! – a mãe levou a mão esquerda para tampar o rosto.

       – Que foi? Papo estranho do moço. Eu hein! – ele riu para a mãe e depois olhou, sério, para o pirata.

       – Ah! Ele tem senso de humor... – Ônix disse. Não podia deixar de admirar a ousadia da criança.

       – Ele puxou o pai – disse Éfyn, categórica. Antes de Ônix conseguir dizer algo, porém, o menino perguntou para a mãe, embora olhasse para o pirata:

       – É ele, não é? Ele vai brincar de faz de conta comigo, não vai?

– Não, não é – Ônix disse. – Não, não vai.

       – Vai sim, querido – Éfyn se ajoelhou diante do filho, segurando seu rosto com as duas mãos. – Seu pai só está assustado agora. Ele adora fazer de conta. Olha bem pra ele. Está fazendo de conta ser um pirata, como se fosse o outro de verdade, daquela história que ele me contou, e que eu te contei, lembra? Ele faz isso para realizar algo no qual acredita muito...

       – Algo bem distante de um faz de conta – Ônix falou ao menino. – E é muito perigoso para você saber mais do que já sabe...

       – Aquela história do Passado Esquecido, das moedas amaldiçoadas? – Dinho perguntou, mais para mostrar saber do segredo do pirata do que para confirmar.

       – Que pelo visto é mais do que deveria – Ônix completou, torcendo um dos cantos dos lábios e olhando com evidente descontentamento para Éfyn. A mulher deu de ombros e olhou novamente para o filho diante dela.

       – Sim, querido. Aquela história secreta – falou.

       – Não devia ter contado a ele – o pirata insistiu, quando a mulher se levantou e o encarou.

       – E você não devia ter me contado, pelo que sei – ela se defendeu, sorrindo. – Mas não podia deixar de se gabar por ser, nesse Novo Tempo, um dos poucos a saber sobre fatos do Passado Esquecido; não é mesmo? – Ônix mal conseguiu esboçar uma resposta e a mulher já emendou: – Só preciso que cuide dele por alguns dias. Sete dias. É tudo o que lhe peço.

       – É um bastante tudo – disse o pirata. Olhou para a mulher e viu o desespero escondido no semblante alegre, mantido por ela com esforço. Ela tinha suas razões e não o procuraria, com tanto empenho, nessa altura da vida, se não fosse vital. Por isso, falou: – Mas, tudo bem. Venha buscá-lo no final do sétimo dia e nenhum a mais.

       – Não preciso dele! Sei me virar! – Dinho falou, cruzando os braços, emburrado.

       – Não consigo imaginar alguém para protegê-lo melhor do que você – Éfyn disse com sinceridade. Ônix colocou a mão na perna ferida e abriu a boca para dizer algo, mas a mulher o interrompeu: – Só assim terei paz para fazer o que preciso e é algo muito importante para mim. Ninguém melhor do que você, também, para entender isso.

       O pirata pensou por um instante e entendeu o quanto Éfyn precisava não se preocupar com o menino para poder se preocupar, plenamente, com outro assunto e, muito a contragosto, respondeu:

       – Tudo bem. Vá logo, mulher, pois quanto antes for, antes voltará.

       – Ótimo – a criança soltou o ar dramaticamente, quando sua mãe o abraçou forte. – Agora estou preso a um pai que nunca se importou comigo até hoje.

       – E que continuaria a não se importar se fosse mesmo seu pai; o que não é o caso – Ônix não hesitou em dizer.

       – Agradeço de coração – falou a mulher.

       Éfyn se aproximou do pirata e o beijou de leve nos lábios. Antes de se afastar dos dois e disse: – Tenha paciência com ele.

       – Vou tentar – o pirata e a criança responderam em uníssono e se entreolharam com as testas franzidas. A mulher sorriu e se foi.

       – Por que beijou minha mãe? – a criança perguntou, ainda estática.

       – Ela me beijou – Ônix respondeu, igualmente parado. Pareciam dois adversários prestes a combater.

       – Foi assim que fui feito? – o menino perguntou.

       – Mais ou menos... é que... – o pirata piscou algumas vezes. Ergueu as mãos para demonstrar. Juntou as pontas dos cinco dedos de cada mão e fez os dez dedos se tocarem, numa tentativa de simular um beijo. – O casal se beija assim e... – Ele não teve coragem de falar mais nada. Apenas encenou com as mãos. Uma das mãos desceu até a base da palma da outra, próximo ao pulso, e as pontas dos dedos-boca roçaram ali antes de voltar para tocar as pontas dos dedos da mão oposta novamente. Essa mão, por sua vez, também desceu até a base da outra e repetiu os mesmos movimentos da parceira, em retribuição. A criança fez uma careta. O pirata inverteu as mãos, para as pontas dos dedos se tocarem as bases uma da outra, simulando beijos simultâneos nessas partes inferiores, por algum tempo, antes de voltarem à posição original, com todas as pontas dos dedos se tocando. Desta vez, porém, o pirata começou a bater as bases das mãos uma na outra, cada vez mais rápido. O menino ficou petrificado em sua posição de descontentamento. O pirata julgou melhor terminar sua aula. Colocou as mãos na cintura, e disse:

       – Acho que foi assim, provavelmente... Entendeu?

       – Estou brincando – o menino falou e riu, olhando para o lado, como se contemplasse décadas de experiências não vividas. – Sei como as crianças são feitas. Sorte minha.

       – Ótimo – o pirata disse. – Mas, isso é assunto de adultos.

       – Pra falar disso eu preciso ser adulterado?

       – Bem isso.

       – Eu vou ser parecido com você quando eu for adulto?

       – Não, não vai, porque não é meu filho.

       – Mas eu posso ter... como chama esses pelos ao redor da sua boca?

       – Cavanhaque.

       – Posso ter um cavanhaque quando eu crescer?

       – Acho que sim.

       – Mas eu queria um agora.

       – Só se fosse feito com tinta.

       – Você faz um cavanhaque com tinta pra mim?

       – Vamos combinar uma coisa? – o pirata perguntou, apoiado na perna boa. – Você tenta me irritar o mínimo possível e, se for o suficiente, desenho um cavanhaque no último dia que passará comigo. Se eu estiver de bom humor, o que é bem provável, pois você estará indo embora. Precisa se esforçar para me obedecer. Não tente me ludibriar.

       – O que é ludibriar?

       – Sabe como as crianças são feitas e não sabe o que é ludibriar? – o pirata riu.

       – Ainda estou aprendendo muita coisa. Mas você é adulto com cavanhaque e não sabe o que é ser pai!

       – O que combinamos? – O pirata levantou o dedo indicador para o menino.

       – Cavanhaque... cavanhaque... – o menino disse pra si mesmo, passando a mão ao redor da boca.

       – Mui bien – Ônix falou. Voltou a ficar ereto e concluiu: – Talvez tenhamos uma chance de passar por isso sem muitos traumas. Para mim, é claro.

       Enquanto andavam, sem pressa, Ônix colocou o capuz novamente e perguntou ao menino:

        – Dinho é diminutivo de quê?

         – Não é diminutivo. É aumentativo. De muito carinho, minha mãe disse. Ela me chamava de “meu miudinho” e aí virou Dinho. Meu nome de verdade é...

          – Não importa. Não vou te dizer o meu e Dinho serve para mim.

          – William.

          – O quê? – o pirata perguntou, milésimos de segundos antes de deduzir, e a criança confirmou.

          – É o seu nome. Minha mãe contou.

          – E você não vai contar para ninguém.

          – Tá bom. Mas isso deve contar a meu favor no dia do cavanhaque.

          – O dia em que me livrarei de você.

          – E eu de você – o menino retrucou.

          – Um dia destinado a ser danado de bom, para nós dois.

           Dias depois, Ônix se arrependeria dessas palavras.

                                                              *

           A vida é feita de momentos alegres e tristes. Eles se alternam como lados de uma bandeira ao vento. Quando os momentos de alegria estão escorrendo entre nossos dedos, geralmente duvidamos se teremos forças para sobreviver aos momentos tristes...

           Dinho estava sob a guarda do pirata Pedra-Negra havia sete dias e o momento de despedida seria antes do esperado para ambos.

           A mão esquerda de Ônix estava pingando um tanto do sangue a escorrer entre seus dedos. Havia uma espada na destra. Ele lutava com um oponente envolto em panos negros, protegendo o assustado menino caído aos seus pés.

           Um dos marujos de Pedra-Negra, ao fundo, enfrentava outro oponente coberto por panos negros.

           O navio balançava naquele início de noite e era possível escutar as ondas se chocando contra rochedos ao longe, enquanto espadas se chocavam a bordo do Camaleão, o navio de Pedra-Negra.

           Ônix foi desarmado e chutou o adversário para longe. O esforço o fez cair ao lado da criança. Dinho tinha o rosto pintado com o cavanhaque tão desejado, iluminado pelas tochas ao redor. A criança olhou para o pirata e se levantou com uma espada de madeira em mãos. Ônix tentou segurá-lo. Não o alcançou em tempo. Colocou a mão na perna onde havia levado o tiro e fez uma careta.

           Dinho atacou o adversário adulto envolto em panos negros, vez após outra. O homem se esquivou de todas, sem dificuldades.

           Éfyn subiu a rampa de madeira com o coração apertado. Escutava gritos de combate e via fumaça subindo ao céu negro. Quando viu, da entrada do navio de Ônix, seu filho atacando, com uma pequena espada de madeira, um adulto com uma espada de metal, colocou a mão na boca para não gritar. O grito poderia ter distraído o pequeno e ser fatal; embora não fizesse diferença, no fim das contas.

           O adversário do menino finalmente atacou.

           Num instante, o metal da espada brilhou na direção de Dinho e ele posicionou sua espada de madeira para se defender. No instante seguinte, a falsa lâmina, partida em duas pela de metal, estava caindo e o menino também.

           A mulher não pôde conter o grito. Ônix olhou para ela. Dinho, jogado no convés, olhou para ela. O homem envolto em panos pretos não. Ele estava ocupado erguendo sua espada, para mergulhá-la de ponta sobre o menino.

           Uma nuvem avançou sobre a lua. O homem avançou sobre o menino.

           E, em alguns casos, a pergunta não é se vamos sobreviver aos momentos tristes. E sim se vamos querer...

(... continua no próximo capítulo)

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