III
Todos sonham com anjos
(Runaway train - Soul Asylum)
A noite de segunda-feira chegou.
Despedi-me de Carolina e fui para casa. Já no carro me livrei do paletó incômodo. Liguei o som alto, dessa vez Soul Asylum, um clássico do hard rock. Sorri com a letra começando a cantar porém parei. Ao parar em um sinal vi dois casais atravessando a faixa de pedestres de mãos dadas, rindo. Bateu aquela certa inveja. Será que eu poderia me sentir feliz daquele jeito? Será que eu seria feliz como um casal? Eles pareciam felizes. Mas então vieram meus pais a minha mente. Em público tudo que mostravam era rosas e sorrisos, mas dentro de casa jarros arremessados, gritaria e confusão. Nunca sabemos o que se passa na vida dos outros. Encostei a boca nas mãos ao volante enquanto eles passaram pelo ângulo de visão. O sinal abriu, a realidade me chamou, assim como a música que tocava.
Você pode me ajudar a lembrar como sorrir?
Fazer tudo parecer valer a penaComo será que fiquei tão cansado?O mistério da vida parece tão desbotadoEu posso ir aonde ninguém mais pode
Eu sei o que ninguém mais sabeAqui estou eu apenas me encharcando na chuvaCom uma passagem para um trem de fuga(Runaway train - Soul Asylum)
Será que alguém poderia me ajudar a lembrar como sorrir? Enfim, cheguei em casa. Já era quase dezenove horas, a hora marcada para eu conhecer a cozinheira. Eu esperava que fosse como aquelas senhoras dos programas da tv, uma senhorinha simpática que sabe fazer comida saudável para um patrão que estava começando a malhar pesado na academia de novo. Eu me olhava no espelho e tinha orgulho de como estava ficando maior. Com muito esforço pois não tinha muito tempo. Fui até a geladeira e aquilo parecia a Sibéria, gelada e vazia. Senti o estômago roncar. Eu não podia continuar daquele jeito, me alimentando mal e trabalhando demais. O interfone tocou. Era o porteiro perguntando se uma tal de Júlia podia ir até minha casa. Ela dizia ser a cozinheira. Claro que deveria ir.
A salvação tinha chegado, a campainha tocou. Fui abrir a porta porém no mesmo instante tive vontade de fechar. Olhava para uma loira de cabelos compridos, magra, um pouco alta, bonita, de vestido longo até o pé. Parecia um anjo.
— Boa noite, senhor Vitor.
— Você é a cozinheira? Deve haver um engano.
Foi então que o estúpido CEO apressado lembrou que não dissera nada a Carolina sobre querer uma cozinheira idosa e cheia de netos.
— Porque o engano? — A expressão dela era de desespero.
— Eu não... — Não sabia como dizer que eu não queria contratar o biotipo e idade dela.
— Senhor, eu posso entregar minhas referências. — Ela abriu uma pasta e pegou um papel — Aqui tem o nome dos restaurantes onde trabalhei e o meu currículo, eu sou formada em gastronomia com apenas vinte e dois anos.
Peguei os papéis e olhei. Ela era bem qualificada mas... Eu não tinha um bom motivo para recusar um currículo daqueles. Le Cordon Bleu, um curso de alta culinária. Eu estava ferrado.
— É que, bem, eu esperava alguém mais velha, quer dizer mais experiente. — Consertei, desastrado.
— Ah senhor eu sou experiente, e a sua oferta é bem melhor que qualquer restaurante onde posso ser apenas ajudante, ouvindo gritos, com prazos apertados.
Pensei um pouco. Pronto. A piedade batia na minha porta novamente. Que fraco, eu tinha ainda empatia pelas pessoas trabalhadoras. E eu morreria sendo assim, muito diferente do meu pai. Ela continuou.
— Eu trabalho duro, faço todo tipo de cozinha, estou pagando minha faculdade. Se puder dar uma chance, senhor, não vai se arrepender.
Os grandes olhos castanhos me olhavam com o desespero característico de quem buscava exatamente um trabalho melhor e que já devia estar cansada do dia. Assim como eu.
— É, seu nome é Júlia? Pode entrar por favor.
Ela entrou e eu a indiquei o sofá para sentarmos.
— Muito obrigada. — Ela olhava tudo, a mesa de centro com poucas coisas, os sofás brancos, a lareira decorativa. — Sua casa é muito bonita.
— Certo, seu currículo me parece excelente, minha secretária não escolheria qualquer pessoa para esse cargo. Eu sou Vitor Ferreira. Sou um homem muito ocupado, que gerencia uma empresa e não tenho tempo para cozinhar, embora eu goste.
— Sim, senhor.
Pensei bem em como ia dizer tudo que estava rolando pela minha mente sem parar.
— Eu vou te contratar porque estou com fome... — Sorri — Não quero mais pedir comida da rua como venho fazendo há anos, comendo mal. Agora estou me exercitando e preciso de uma alimentação saudável. Então eu só tenho mais uma empregada em casa. A faxineira vem uma vez por semana, não gosto de gente em casa tanto tempo e quando ela está eu geralmente fico em casa.
— Certo.
— Eu preciso que você faça o almoço a noite. Algo saudável e que seja para o dia seguinte, eu vou almoçar na empresa. A noite eu estarei aqui, como agora e preciso de um jantar fresco. A que horas pode chegar?
— A hora que o senhor quiser.
— Então um dos porteiros a trará até aqui, só ele tem a chave.
Ela sorriu abertamente.
— Estou contratada?
Fazer o que se eu tinha um coração de manteiga? Que infortúnio!
— Sim.
— Quando começo?
— Até que horas pode ficar?
— Não tenho horário, senhor, não sou casada.
Mas que informação valiosa! Eu me arrependia a cada segundo que aquela bonita mulher abria a boca. Porque meu pressentimento de que aquilo não ia prestar estava apitando tão forte?
— Perfeito. Perfeito que não tenha horário, não que não seja casada, foi o que quis dizer. — Quanto mais eu falasse, mais eu me enrolaria, eu era um desastre!
Ela sorria.
— Eu entendi, senhor Vitor. O que deseja jantar?
— O problema é esse, eu não tenho nada na geladeira.
— Eu posso ir ao mercado.
Comecei a ficar contente.
— Que excelente, eu tenho um cartão para essas coisas, o limite dele é baixo mas acho que consegue. O que acha de uma salada ceaser, frango grelhado e...?
Ela me olhava, esperando que eu terminasse.
— Uma pasta de berinjela?
— Sim, pode ser.
— Vou trazer especiarias deliciosas, senhor. Confie em mim.
— Perfeito, eu vou... éee...tomar um banho e estarei na sala vendo meus emails.
— Certo.
Busquei o cartão na minha carteira e entreguei a ela com a orientação sobre a senha. Estava selado. A cozinheira era gata e eu tinha que manter os olhos dela longe de mim o máximo de tempo ou o incorrigível clone com defeito de Don Juan em mim subiria à tona. Ela saiu e fui tomar meu banho.
Aquela noite seria um desastre.
IV Nascido para ser selvagem (Born to be wild - Steppenwolf) Eu não tinha mais o direito de chegar em casa e ficar nu. Esse era o único desconforto de ter uma mulher na minha cozinha. Além disso eu ficava incrivelmente incomodado de não poder ser eu mesmo em minha própria casa, mas isso era um problema contornável uma vez que ela não não podia demorar. Ouvi poucos barulhos vindos da cozinha mas o cheiro invadia toda a casa. Era bom. Sentei no sofá para ficar por ali me torturando com aqueles aromas enquanto bebia um cálice de vinho e lia os emails. Havia emails de acionistas, de clientes, do marketing, da área de vendas e até de revistas de Economia. Queriam entrevistas com o CEO que mais faturava no ramo da construção. Eu não faria aquilo de jeito nenh
VProblemas virão e eles passarão(Simple man - Lynyrd skynyrd)Subi na minha Own com sangue nos olhos e muita raiva no coração. Quando aqueles idiotas sem empatia me deixaram em Vila Velha, machucado, sem nenhuma explicação, além a de que eu era muito perigoso para o grupo, eu me magoei. Agora eu era um cara mais velho, eu não estava mais magoado porque fundaram outro motoclube, eu estava puto. Podiam fazer o que quisessem com suas vidas e terem ódio de mim mas não mexessem com o Bill. Eu sequer fui para os White Wolves, fui direto ao Black Panthers. Quando desci da moto e arremessei o capacete na cabeça de um moleque, ainda vi o jet na mão de um deles. Segurei o garoto pela camisa.—Chama teu lí
VIMas se você me der apenas um minuto, Eu vou me sentir bem...(Rough boy - ZZ Top)Quando cheguei em casa, o aroma era delicioso.Apresentei-me na cozinha para Júlia.—Oi, moça. Desculpa o atraso, eu tive um imprevisto.Ela me olhou e arregalou os olhos. Dessa vez estava de calça jeans e uma camisa branca, a touca nos cabelos e o avental.—Senhor Vitor, tem sangue na sua camisa.É, tinha sangue e que droga, a camisa era cinza claro e aquilo aparecia. O que ela ia pensar do chefe? Um brigão de rua.—É, eu vou tomar um banho.Já ia me virando de costas quando ela me seguiu e senti a mãozinha segurar meu braç
VIIO homem na caixa(Man in the box - Alice in chains)Sentamos na areia da praia para saborear o que ela tinha preparado.Eu já tinha trocado de roupa, estava de calça jeans, botas e apenas o colete dos White Wolves. Julia reparava no colete. Ou no que havia dentro do colete. Acendi outro cigarro.—O que trouxe?—Gostou tanto da salada que fiz uma outra, uma salada Húngara.—Húngara? Como é isso?—Ela tem repolho, cenoura, uvas passas, pimentões e maçã, mas o melhor é o molho. —Ela lambia os dedos abrindo os potes e nos servindo e eu sabia que em um restaurante ou em casa ela jamais faria aquilo, fique sorrindo. —O molho é feito no liquidifica
VIIISozinho(Alone - Heart)Soube que Vinícius cuidou bem de nossa mãe e o final de semana se aproximava. Eu queria sumir naquele fim de semana. E com todos os acontecimentos extremamente mais importantes do que o que tinha acontecido com a minha cozinheira, eu simplesmente tinha deixado para lá o fato de conquistar a garota por vingança. Somente não pensei mais nisso, tinha coisas mais importantes para pensar porém percebi que o comportamento dela tinha mudado. A minha rotina era café da manhã, escritório, academia três dias na semana e cama. Ela já conhecia minha rotina e na sexta-feira apareceu bem cedo, para o café-da-manhã, e eu não sabia como lidar com uma situação inusitada daquelas. Ela
IXFora de alcance, distante do toque(Belladonna - UFO)O escritório estava especialmente estressante naquele dia. O que era de estranhar pois as sextas-feiras eram bem mais calmas, normalmente todo mundo ficava animado com o final de semana. Não naquela sexta, tive telefonemas estressantes e o engenheiro reclamou de novo do material que não chegou a obra. Pedi que ele esperasse até segunda-feira e então iria resolver diretamente com o fornecedor. Julia levou meu almoço e nem ficou um pouco já que me viu estressado ao telefone com algumas pessoas. A hora da saída da escola chegou. Eram dezessete horas da sexta-feira. Carol entrou na sala, sorrindo.—Já vamos senhor Vitor?—Sim, vamos embora, vou esperar t
XTarde demais para amar(Too late for love - Def Leppard)Julia tomou um banho e vestiu a camiseta da minha irmã. Estava linda. Então pediu para ligar primeiro para avisar seus pais que sairia com um amigo. Eu virei um gole de vinho e busquei a carteira, celular e chaves de casa e moto para sair. Quando ela terminou, saímos e fomos para a garagem. Ela já sabia o que devia fazer. Segurar firme, era uma longa viagem até São Cristovão. Quando ouviu o nome do bairro, se espantou.—O senhor...você anda na zona norte?Eu sorri para ela.—Você tem muitos julgamentos de mim, sabia?—É que...Ela se arrependia toda hora. Era muito sincera.—Eu nã
XISeu amor(Your love - The Outfield)Sábado. Dez horas da manhã. A cozinheira teria que chegar para o almoço, porém devia estar com uma tremenda ressaca, eu não brigaria por faltar, afinal ela esteve comigo a noite passada e apesar de eu não ser responsável por sua bebedeira, me senti mal pelo seu estado. Olhei o celular me virando nu na cama. Tinha notificação de Vinícius. Um jantar em casa para apresentar a vagabunda da Bianca. Como ela ainda tinha coragem! Eu estaria lá só pela diversão de ver minha mãe acabando com ela em pleno jantar. Enviei mensagem para Julia.Não precisa aparecer para o almoço, eu não vou estar em casa.&n