O som da chuva é alto e claro em seus ouvidos, mas, mesmo assim, todo o seu corpo se sente quente e confortável; um forte contraste com o frio e a dureza da noite anterior. Ela tentou abrir os olhos, mas uma forte pontada na cabeça e no peito se fez presente no momento em que a luz tocou a leve abertura de seus olhos, então ela os fechou novamente.
— Descanse um pouco mais — diz suavemente uma voz profunda —, o médico disse que você esteve perto da morte.
Aquela voz não era a de seu pai nem a de alguém que ela conhecesse. O médico disse? Então, ela tinha conseguido escapar daquele lobo, a encontraram, e agora ela estava em um hospital, certo?
— Você não tem ideia do quanto eu fiquei assustado, minha lua.
"Lua"? Essa era a palavra que ressoara em sua cabeça durante a noite enquanto o lobo a rondava, e aquela voz era a mesma que as havia pronunciado. Seu corpo implorava para poder dormir um pouco mais, mas seu instinto, bem, ele estava dividido ao meio. Uma parte dizia que ela deveria sair dali o mais rápido possível, enquanto a outra a fazia sentir que estava segura, que não havia razões para temer ou correr, mas ela preferiu silenciar essa última. Abrir os olhos subitamente, ignorando, ou pelo menos tentando ignorar aquela pontada constante, sua cabeça latejava horrivelmente, enquanto seu coração parecia se partir aos poucos.
— Vejo que você é teimosa. — O som dos passos acompanhou as novas palavras. — Mas também é tola o suficiente para não ouvir seu corpo, mesmo quando ele pede para descansar.
Quando seu olhar finalmente pôde se concentrar no entorno, ela percebeu o quarto em que estava. A cabana é pequena, mas mesmo assim aconchegante; a cama em que ela estava fica em um canto do quarto ao lado da janela. A lareira está centrada no lado direito do quarto, e o calor que vem dela mantém o lugar aconchegante. Um sofá de três lugares, outro individual e uma mesa para seis preenchem o espaço. Mas algo estava faltando; alguém tinha falado, ela tinha ouvido passos; então...
— Onde...? — murmura levemente, suas palavras completando seus pensamentos, pensamentos que são interrompidos pela resposta obtida.
— Pensei que você pudesse estar com fome ao acordar — aquela voz profunda ressoa novamente no quarto, mas desta vez acompanhada pelo som de uma porta se abrindo. — Preparei um pouco de carne para você — aquele estranho enfatiza suas palavras levantando um pouco a bandeja de comida que trazia nas mãos.
Ao olhar para o dono daquela voz, ela sente o ar sendo aprisionado em seus pulmões mais uma vez. Aquele homem devia ter cerca de trinta anos, ou talvez passasse apenas por mais alguns anos, próximo dos dois metros e com musculatura marcada; alguns fios leves de cabelo vermelho contornam seu rosto, que é decorado por dois olhos cinzas profundos; uma cor tão pálida que por um momento ela poderia jurar que é como se visse a lua neles.
— Está tudo bem? — ele pergunta enquanto se aproxima um pouco mais dela. — Você parece que vai desmaiar de novo.
— Não se aproxime! — seu corpo vibra envolto em medo; ela não sabe onde está, quem é aquele homem, e muito menos entende o que está acontecendo, ela só sabe que quer sair dali e ir para casa.
— Está bem — ele diz, interrompendo seus passos. — Não vou me aproximar se é isso que você quer, mas você precisa se acalmar e comer um pouco.
— Onde estou? — pergunta enquanto recua na cama.
— Você está segura, na matilha do Sul — ele responde calmamente enquanto coloca a bandeja na mesa de jantar. — Eu te trouxe comigo há alguns dias. Eu pensava em respeitar sua decisão de ainda não se mostrar para mim, mas quando começou a chover e você ainda não se mexia daquele lugar. Fiquei preocupado que os batimentos do seu coração estivessem tão baixos, então atravessei o rio; foi aí que notei que você tinha desmaiado, então não podia simplesmente te deixar lá.
"Matilha"? "Alguns dias"? Não, simplesmente aquilo é absurdo. Primeiro porque matilhas são coisas de animais e... Não! Ela se repreende por pensar naquelas antigas histórias que sua mãe costumava contar. Segundo, foi apenas na noite anterior que ela se escondeu entre as pedras na margem do rio para escapar do lobo que a seguia.
— Você me deu um grande susto, estava tão pálida e fria — diz aquele estranho, cortando sua linha de pensamento. — O médico disse que você
esteve perto da morte, mas graças à Mãe Lua, seus sinais vitais se acalmavam quando eu me aproximava, então fiquei ao pé da sua cama nos últimos cinco dias. Você não faz ideia da paz que senti ao te ver recuperar sua cor; suas bochechas são ainda mais bonitas se estiverem banhadas pelo rubor suave natural que têm.
Mas que diabos esse cara está falando? Ela não sabe, mas também não planeja ficar para descobrir.
— Quero sair daqui, por favor — diz com a voz trêmula.
— Bem, ainda está chovendo um pouco e não é bom para você sair com esse tempo — ele responde calmamente. — Como eu disse, o médico...
— Quero ir para casa! — ela grita, cedendo ao medo. — Quero sair agora!
— Se acalme, se me deixar, vou te explicar.
— Não quero uma explicação! — ela diz, elevando ainda mais o tom de voz. — Quero sair daqui; não sei quem você é nem onde estou, só quero ir para casa.
— Agora, este é o seu lar — ele replica em tom calmo.
— Você está louco! — ela não pode dizer de onde vem sua coragem, mas faz menção de se levantar da cama — Você...
Ela não sabe exatamente em que momento aquela figura imponente atravessou o cômodo; o que ela sabe é que, num abrir e fechar de olhos, estava encurralada na cama. Em outros momentos, ela teria se preocupado com aquela mão que segura firmemente sua cintura ou a que envolve seus pulsos, mas isso é o de menos; naquele momento, o que ela deseja entender é como foi possível que o olhar daquele desconhecido mudasse de maneira tão desumana. Seus olhos, agora banhados por uma cor vermelha profunda, são como os de uma besta, uma besta que, por alguma razão, está ferida. No meio de sua negação e horror, sua memória a deixa ver de onde reconhece aquele olhar.
— O lobo...
— Durma, minha lua rebelde, agora.
Depois daquelas palavras pronunciadas em um tom grave, Lían observou como os olhos da outra começaram a se fechar lentamente.
— É muito bonita, não é, mamãe? — diz uma voz pequena e doce. — É tão bonita quanto ver a lua cheia.O toque suave daquela mão pequena em sua bochecha a tira da sonolência, abrindo os olhos suavemente. A forte luz no quarto é a primeira coisa que percebe, e depois de um momento, consegue focar sua visão, vendo uma pequena menina sorridente.— Oi! — ela cumprimenta animada. — Mamãe, venha rápido, ela acordou! — chama enquanto mantém a mesma emoção. — Eu sou Ellen, e mamãe diz que você é minha nova tia.— Ellen! — ouve uma segunda voz chamando. — Venha aqui, deixe-a descansar tranquilamente.Sentando-se na cama, Anne observa o espaço, e a pequena esperança de que todas as suas memórias recentes fossem apenas um pesadelo enquanto está sob os cuidados de um médico desaparece quando ela reconhece aquele espaço como a cabana onde acordou da última vez. Em um rápido escaneamento do ambiente com seu olhar, percebe que, desta vez, as únicas pessoas presentes são a pequena menina e uma mulher.
Quando Lían se deparou com a imagem da pequena Ellen chorando no pórtico da casa, a primeira coisa que pensou foi que sua irmã o repreendera por sua efusividade e isso causara o choro da pequena menina. No entanto, ao ver Alice emergir da espessura ao lado da casa com sua pele de lobo, a agitação e a preocupação que emanam dela fazem-no entender que a situação é outra. — Há quanto tempo? — pergunta enquanto se aproxima dela. — Duas horas. — é a resposta que ela dá ao mudar para sua aparência humana. Mas isso é tudo o que consegue dizer. Em um movimento ágil, Lían adentra a floresta ao mesmo tempo em que deixa seu lobo sair; se ele se apressar, pode encontrar o rastro de sua parceira. Sua parte humana não pode evitar praguejar baixinho; esse não é o melhor momento para brincar de caçador e presa com sua Lua. Na verdade, Lían esperava chegar em casa e poder conversar calmamente com ela, explicar o que está acontecendo e as mudanças que sua vida sofrerá a partir desse momento, mas ago
Diante da presença de sua pequena Lua, a parte humana de Lían tomou consciência de sua nudez, razão pela qual, sem hesitar, moveu-se para um canto do cômodo, cobrindo a parte inferior de seu corpo com um móvel de três lugares. Enquanto isso, Anne estava tão aterrorizada pelas palavras que ouvira que mal se importava com a nudez de Lían; aos seus olhos, ele era simplesmente um monstro disposto a destruir tudo para conseguir o que desejava, e infelizmente, esse troféu era ela.— Eu irei com você. — diz com voz vacilante. Apesar do medo evidente em seu corpo, dá passos hesitantes em direção aos homens. Quando os lobos pensaram que ela cairia pela fraqueza de seus passos, ela parou e olhou para Lían —. Mas você deve prometer que não fará mal à minha aldeia.— Pequena. — Chama o Alfa. Se não fosse por sua nudez, ele teria ido até ela.— Jure! — Exige com força, sem se importar de onde tira essa coragem —. Se você não o fizer, eu juro que escaparei de você sempre que tiver oportunidade.A s
Anne não precisa ser uma caçadora ou exploradora para deduzir que o lugar onde aquele homem chamado Lían vive é bastante profundo na floresta e longe de qualquer oportunidade segura de fugir dali e voltar rapidamente para sua aldeia. Ela nunca havia acreditado no princípio de "quando se está assustado, não se repara em nada ao fugir", mas agora ela entende e concorda com isso. Enquanto corria para se afastar daquela cabana, ela não reparou na distância ou na irregularidade de algumas áreas do terreno.— Estamos quase lá — Lían informa enquanto se vira para olhar sua acompanhante. — Precisa de ajuda? — ele pergunta ao vê-la lutando com o comprimento do vestido, ao caminhar entre as raízes salientes.— Estou bem — é a resposta rápida dela. Ela nunca aceitaria qualquer tipo de ajuda que ele pudesse oferecer.Se qualquer outra pessoa desse essa resposta ao seu oferecimento, Lían jura que a deixaria para trás e não teria nenhum remorso em fazê-lo, mas sendo sua Lua quem lhe dá essa respost
— Quer um pouquinho de maçã? — pergunta a pequena Ellen enquanto tem as bochechas cheias de fruta — está muito doce — enfatiza comendo um pouco da maçã picada em sua tigela. — Tenho certeza de que está, pequena — responde com doçura, afinal, a criança não tem culpa de tudo isso — mas não posso comer maçãs. — Você não gosta? — pergunta com inocência, inclinando a cabeça suavemente. — Prometo que são gostosas. — Tenho certeza de que devem ser muito boas, embora na verdade eu não saiba qual é o gosto das maçãs. — acrescenta enquanto limpa as bochechas de Ellen, vendo a criança lembra um pouco o coelho que teve quando era apenas uma menina. — sou alérgica, então nunca me deixaram comer. — O que é ser alérgica? A voz que responde vem da porta da cabana, o que indica que elas não estão mais sozinhas. Lían entra na sala com passos calmos, sentando-se ao lado de sua pequena sobrinha, acariciando seus cabelos enquanto ela lhe dedica um sorriso doce e terno. — Sua mãe diz que é hora de ir.
Lían não é tolo, tanto ele quanto seu lobo sabem que Anne está mentindo, mas na noite anterior, ele jurou a si mesmo não fazer nada que pudesse incomodá-la ou deixá-la desconfortável, então ele simplesmente assente às suas palavras para depois dar alguns passos e se aproximar dela, mas sem invadir seu espaço pessoal. — São os lobos pertencentes à minha alcateia pessoal e mais alguns membros da matilha. — o tom com o qual o lobo responde sai calmo. — Eles souberam que finalmente encontrei minha Lua, então vieram aqui para te conhecer. "Lua", essa palavra continua se repetindo em sua cabeça, e embora ainda não entenda o que significa ou por que a chamam assim, tanto Lían quanto sua família a usam para se referir a ela. — Anne? — ouve Lían chamá-la novamente. — Você me ouviu? Saindo de seus pensamentos, Annette foca no homem diante dela, quando seus olhos encontram os dele, por alguma razão não consegue evitar corar, o que a faz desviar o olhar. — Não, — reconhece em tom baixo. — O q
O sol está no ponto mais alto do céu no momento em que todos os membros da Matilha do Sul ficaram sabendo que a Mãe Lua tinha dado a seu Alfa uma humana como companheira. Os lobos mais jovens e alguns dos mais velhos não tinham problemas em aceitar uma humana entre eles, mas outros, principalmente os lobos mais antigos, tinham sentimentos contraditórios. E embora cada lobo da matilha saiba que não devem julgar as decisões de sua Mãe, eles também sabem que nunca tinham ouvido falar de um Alfa que tivesse sido unido a uma humana; a repercussão desse detalhe é uma ideia que fica na mente de todos.— O que é uma Lua? — é a pergunta de Anne no momento em que fica sozinha com Lían. — Porque parece ser algo de grande importância. Digo, afinal, é a palavra que mais ouço ser usada por você e por todos.Lían a olhou por um momento enquanto pensava em como responder a essa pergunta. Na noite anterior, ele tentou explicar tudo o que estava acontecendo, mas Anne parecia tão assustada e cansada, e
— Qual é a história do seu pai?Anne pergunta enquanto caminha de volta para a cabana. Ellen corre à sua frente e Alice caminha ao seu lado.— O que te faz pensar que há uma história?— Bem, se não há, então por que ele vive sozinho e tão longe, se vocês vivem na matilha?Diante dessa nova pergunta, Alice guarda silêncio por um momento; seu rosto mostra como sua mente organiza suas ideias.— Ele foi desterrado. — responde finalmente. — Lobos desterrados não podem viver com a matilha, é por isso que ele vive aqui, na borda do território.Desterrado? Por que um lobo seria desterrado?— Ele não pode voltar? — Anne não sabe exatamente como funciona a dinâmica em uma matilha de lobos, mas se for semelhante, mesmo que um pouco, às aldeias, o líder da matilha teria que permitir o seu retorno, e isso só deixa uma opção. — Lían?— Não há nada que se possa fazer. — é a resposta pesarosa de Alice. — Ninguém desterrou o Papai, ele se autoexilou da matilha, então, só ele pode decidir se volta ou n