Capítulo 3

Capítulo 3.

Verdadeiros laços.

12 de março, 2018.

— Bom dia, Aninha! — Maria Alice desejou, animada, ao entrar na cozinha. — Caiu da cama? — Brincou para a irmã mais velha, que estava debruçada sobre o balcão de granito enquanto lia o jornal com atenção.

— Bom dia, Ali. — Trocou a página. — Valentina me pediu para chegar mais cedo, pois tem um assunto importante para tratar comigo. — Júlia comentou, distraída sem tirar os olhos das pequenas letras, e bebericou seu chocolate quente devagar. — E por que você acordou tão cedo em plena segunda-feira? Caiu da cama? — Brincou e ergueu os olhos do jornal, fitando-a com um sorriso. — O que é essa mancha roxa no seu pescoço, Maria Alice? — Indagou, com a sua atenção pregada no pescoço da sua irmã mais nova, levantando-se da cadeira e aproximando-se em seguida.

Alice arregalou os olhos e, automaticamente, a sua mão cobriu o local marcado, soltando um xingamento baixo no mesmo instante.

— Deve ter sido algum mosquito, Ana Júlia. — Desconversou, séria, porém por dentro se sentia nervosa e com receio do interrogatório da irmã.

Júlia arqueou as sobrancelhas, com um sorriso debochado.

— Hm, sei. — O seu sorriso tornou-se maior. — E desde quando, os mosquitos aprenderam a dar chupão? — Ela indagou e puxou a mão da irmã de surpresa. — Quem é o cara que fez isso, Alice? Ele parecia estar muito faminto. — Zombou, indo se sentar novamente.

Naquela altura do campeonato, Alice já se encontrava bastante corada e sem saber como contar quem era o cara. Ou melhor dizendo quem não era o cara.

— Ca-a-a-ra? — Ela gaguejou, piscando algumas vezes. — Que cara? — Engoliu seco, tomando coragem para encarar a irmã.

Júlia franziu as sobrancelhas, ficando séria e curiosa pelo rumo inesperado que a conversa estava tomando.

— Se não foi um cara que fez isso... — Repetiu, processando a informação. — Então, Alice, quem foi? — Inquiriu, ficando ainda mais curiosa.

— Foi... — Alice interrompeu-se e sentou-se para ficar de frente para a irmã. — ... a Renata. — Sussurrou a última parte em um tom tão baixo que quase fora impossível de compreender o nome.

Júlia arregalou tanto os olhos quanto a sua boca, chocada demais. Elas se encaram em silêncio, pois nenhuma sabia o que realmente deveria dizer uma para outra. Alice estava bastante nervosa e já arrependida de ter aberto a boca, todavia, Júlia teve uma reação inesperada.

Ela gargalhou.

— Meu Deus! — Ela exclamou, ainda rindo alto e escandalosamente. — Diana devia trocar de profissão. — Comentou, divertida, ao fitar a irmã mais nova.

Alice franziu a testa, perdida.

— Como assim? Por que a sapa mestra deveria trocar de profissão?

Júlia encarou-a com um sorriso malicioso.

— Porque ela disse que você e Renata acabariam ficando em algum momento. — Revelou, divertida. — Ela vai pirar quando souber. — Riu, mais uma vez.

Alice bufou e rolou os olhos.

— Vocês são um bando de sapatonas fofoqueiras, isso sim. — Ela rebateu com desdém, apontando um dedo na direção da outra.

— Seja bem-vinda ao clube como mais nova membra do bando de adoradoras de xota, irmãzinha. — A mais velha zombou. — E como foi que isso aconteceu, Ali? — Questionou, curiosa.

Alice voltou a corar, outra vez.

— Ontem, eu fui com o pessoal da faculdade no cinema, e aquela abusada estava no meio... — Interrompeu-se, enquanto rolava uma mecha loira no dedo, distraidamente. — Estávamos no meio da sessão quando me provocou e briguei de novo com ela. — Enrugou a testa. — E por culpa dela, fomos expulsas da sala, e ainda perdi o restante da porcaria do filme, Jú. — Choramingou.

Ela riu mais.

— Vocês se beijaram no meio do corredor?

— Não. — Alice negou, com olhos azuis desfocados. — Eu fiquei possessa de raiva e fui para o banheiro para me acalmar um pouco. Mas, ela foi atrás de mim e o lugar estava vazio... — Calou-se, corando mais ainda.

Ainda estava vivido na memória de Maria Alice, a sensação dos lábios de Renata esmagados contra os seus e as mãos pequenas grudadas na sua cintura. Se ela fechasse os olhos e se concentrasse um pouco mais, poderia reviver cada mínimo detalhe com tanta exatidão.

— E como você se sente em relação a isso, agora? — Júlia perguntou, trazendo-a a realidade. — Está arrependida?

— Muito confusa, na realidade. — Ela suspirou, cansada. — Estranhamente, não me sinto nenhum pouco arrependida ou sei lá o que. Para falar a verdade, esse foi o melhor beijo de toda a minha vida. — Confessou, bufando desgostosa consigo mesma. — Sempre me relacionei com garotos, contudo nenhum cara nunca me deixou de pernas bambas como aquela abusada conseguiu, Júlia. — Reclamou, enquanto fazia uma careta.

Júlia sorriu, compreensiva, e apertou a mão da irmã sobre o balcão.

— Sei como se sente, Alice. — Murmurou de forma reconfortadora. — Eu me sentia muito confusa antes de me descobrir, aceitar e me assumir como lésbica. Por muitas vezes, questionava a mim mesma o motivo que me levava a querer tanto beijar as garotas, mas nunca os garotos como as minhas amigas — Sorriu, nostálgica. — Quando tive o meu primeiro beijo com uma menina, foi como se todas as minhas perguntas sobre a minha orientação sexual fossem esclarecidas.

— Você acha... que sou lésbica também? — Alice enrugou mais a testa, confusa.

Júlia levantou-se e pegou a sua bolsa, pendurando-a no seu ombro.

— Ou bissexual, pan. Porém, não posso te rotular. — Ela sussurrou, sendo sincera. — Alice, tenha calma e deixe as coisas acontecerem com naturalidade. — Sorriu, carinhosa. — Seja qual for a sua orientação sexual, nossa família e eu sempre estaremos aqui com você e por você. — Beijou a testa da mais nova. — Boa faculdade. — Desejou enquanto ia para a porta do apartamento.

— Obrigada! — Alice murmurou, pensativa. — Bom trabalho. — Completou para o vazio do apartamento.

~

Ela respirou fundo e bateu na madeira branca, suavemente. Após poucos segundos de espera, uma voz rouca e calma pediu para que entrasse. Júlia abriu a porta e fora impossível reprimir o suspiro encantado que escapou sem sua permissão.

Como ela era linda!

— Bom dia, Valentina! — Desejou, ainda perdida e mergulhada na beleza da morena. — Você disse que queria conversar comigo. — Murmurou, ao mesmo tempo em que forçava a si mesma a voltar ao normal e ser inteiramente profissional na frente da sua chefe.

Todavia, era quase impossível para Ana Júlia manter os seus pensamentos coerentes e reprimir os inúmeros suspiros sempre que via Valentina.

— Bom dia, Júlia! — Valentina cumprimentou-a, entusiasmada – Sente-se, por favor! — Pediu, apontando para uma das cadeiras vagas na frente da sua mesa. — Está tudo bem? Dormiu bem? — Perguntou com certo carinho na voz, sem nunca tirar os olhos da loira ou o sorriso largo do rosto.

Tão diferente de Marina, pensou Júlia enquanto se sentava.

— Estou bem, sim. — Sorriu fraco. — E tive uma ótima noite. E você, Valentina?

— Melhor impossível. — A morena respondeu com um sorriso.

Deve ter passado a noite com alguma mulher.

Porém, Ana Júlia foi arregalando os olhos aos poucos quando se deu conta do que havia acabado de pensar.

Que tipo de pensamento havia sido esse? E por que ela sentiu uma pontada ruim no peito com a ideia de que sua chefe tivesse passado a noite com outra mulher? Ela estaria enfartando naquela hora da manhã?

— Está sentindo algo, Júlia? — Valentina indagou, preocupada.

— Não! — A loira apressou em negar. — Estou bem.

— De repente, você foi arregalando os olhos que achei que fossem saltar do seu rosto. — A morena brincou.

Júlia corou, constrangida.

— Foi algo que pensei. — Confessou, desconcertada. — Mas, o que você quer me falar? – Perguntou, mudando de assunto.

— Bom, você está trabalhando comigo como uma das minhas plantonistas há mais de um ano. — Começou. — Entrou aqui para fazer um estágio. — Valentina murmurou, ficando séria e assumindo uma postura profissional.

Nesse instante, todo o corpo de Ana Júlia congelou de medo. Ela estava aterrorizada com a ideia de perder a vaga como plantonista, pois ganhava uma boa quantia por cada plantão e era ótimo para sua vida independente. Só o que mais pesava no seu peito, assim como a deixava demasiadamente apavorada, era o pensamento de não ver Valentina três vezes por semana.

— Você me demitir? — A loira perguntou com desespero na voz, beirando ao choro. — Por quê? O que fiz de errado? — Insistiu com um bolo formando-se na sua garganta.

— Não! Não, Júlia! — Valentina apressou-se a negar ao ver o estado da outra. — Eu só quero te oferecer um cargo fixo na minha clínica. Então, você aceita? — Perguntou, com expectativa.

Júlia piscou, algumas vezes, para afugentar as lágrimas traiçoeiras e abriu um imenso sorriso, que fez o coração de Valentina bater mais rápido.

Ela parece um anjo, a morena pensou deslizando os olhos escuros pelo rosto de Júlia, perdendo-se no seu sorriso encantador.

— Você está falando sério?! Sério mesmo, Valentina?! — Ela perguntou com tanto entusiasmo que chegou a pular um pouco na cadeira. — É claro que eu aceito! Mil vezes, sim! — Murmurou, levantando-se. — Posso te dar um abraço, Valentina? — Pediu um pouco corada.

— S-sim. — A morena concordou surpresa e um tanto quanto ansiosa.

Sem pensar em mais nada, Júlia a puxou para um abraço apertado, causando inúmeras sensações em ambas. Uma se perdeu no perfume da outra, enquanto os seus corpos reagiam de forma inesperada. Mãos suadas, parecia que borboletas voavam nos seus estômagos e aquele ritmo mais acelerado no coração.

— Muito obrigada, Valentina! — Júlia agradeceu, sem graça, e a soltou com lentidão. — Muito obrigada mesmo!

A morena sorriu abertamente, o que fez os olhos verdes da loira cravarem-se na boca dela.

— Eu fico feliz por você ter aceitado a minha proposta. — Murmurou, afastando-se.

— Eu... eu... eu tenho que ir! — Júlia gaguejou, apontando para a porta atrás de si. — A gente se ver mais tarde? — Perguntou, tentando esconder a expectativa e ansiedade presentes na sua voz.

— Claro. — Valentina concordou, sorrindo. — Ainda temos que discutir alguns detalhes sobre o seu novo cargo.

A loira assentiu.

— Até mais tarde, então! — Ela murmurou, saindo da sala sem olhar para trás.

Até... — Valentina sussurrou para a sala vazia. — O cheiro dela ainda está em mim. — Abriu um sorriso bobo, porém um pensamento amargo desfez a sua alegria. — Ela tem uma noiva, Valentina. — Lembrou-se a si mesma, tirando o jaleco com o resquício do perfume de Júlia, e voltou-se para suas anotações sobre a cirurgia que faria mais tarde em um pastor alemão.

Do lado de fora da sala, Júlia ainda se sentia estranha e as suas pernas estavam moles. O que havia sido aquilo? Por que seu corpo reagiu tão estranhamente bem com apenas um abraço? Ela abraçava a sua irmã, as melhores amigas e a própria noiva, porém nunca sequer sentiu algo parecido. E aquela havia sido a primeira vez em que teve um contato mais íntimo e físico com Valentina.

— Esqueça isso, Ana Júlia. — Ordenou para si mesma, enquanto pegava o celular e ligava para a noiva. — Tenho uma ótima notícia, Marina! — Disse, feliz, quando a ligação foi atendida.

O que? Com quem estou falando? — Marina respondeu, secamente.

O sorriso da loira desfez na mesma hora.

— Sou eu, amor. — Sussurrou, sem graça.

Ah! É você, Júlia. — A ruiva murmurou, monótona. — Amor, agora eu não posso conversar com você. Estou muito ocupada, no momento. — Avisou, desligando em seguida.

Júlia encarou a tela do celular sem acreditar no que havia acabado de acontecer. Sua própria noiva tinha desligado na sua cara. Marina estava tão ocupada assim que não poderia parar minuto sequer para se despedir direito? Fora possível ouvir a voz de Roberta ao fundo.

— Isso não irá estragar a minha felicidade. — Prometeu para si mesma, caminhando na direção da cafeteria da clínica veterinária, e mandou uma mensagem no grupo do W******p, Sapa Delicadas & Cachaceiras.

‘’Júlia:  Valentina me contratou como a mais nova veterinária da clínica!’’

Alice: Obaaaa! Temos que comemorar, meninas!

Laura: Festa na minha casa hoje às 20:00. Também tenho uma ótima notícia.

Diana: A pizza e cerveja são por minha conta hoje.’’

Júlia sorriu, apesar de já saber qual era a notícia de Laura, mesmo sentindo-se um pouco decepcionada e magoada com a noiva.

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