Capítulo 4

             Ângulo. Tudo na vida é uma questão de ângulo, perspectiva. Há um mês eu estava chorando na minha cama, me perguntando como fui me envolver com um cara possessivo e acabar em um relacionamento tóxico. Logo eu, que sempre achei que isso nunca aconteceria comigo! Tive medo, fiquei ansiosa e estressada, mas o enfrentei e deu tudo certo no final. Consegui terminar com Victor, mesmo que não tenha sido lá muito fácil, mas a sensação de estar livre dele foi revigorante.

            Há um mês eu não imaginava o quanto a minha vida iria mudar em tão pouco tempo. Tive apoio da minha família e dos meus amigos, fui acolhida quando estava sofrendo por uma ausência que meu coração não compreendia. Mas me refiz, recebi uma oportunidade e a agarrei com unhas e dentes. Essa mudança não foi apenas geográfica, sinto que virei uma página do livro da minha vida.

            Hoje eu chorei de novo, mas foi na minha cama nova e de felicidade. A minha primeira reunião na redação da revista foi incrível, muito melhor do que eu poderia sequer imaginar. Nunca me senti tão encaixada em um lugar, tão pertencente a um ambiente profissional. Foi eletrizante, gente falando sem parar, ideias surgindo, decisões sendo tomadas em tempo real. E eu ali, participando de tudo, opinando e sendo ouvida. Parece que estou anestesiada.

— Toc, toc, posso entrar?

— Desde quando você precisa de convite?

            Zula entra no quarto e eu sorrio diante de seu rosto risonho emoldurado pelos cabelos cor de rosa. Ela se deita na cama ao meu lado e coloca as pernas na parede, assim como eu.

— Nossa, meus pés doem. Acho que andei essa cidade inteira hoje. Pelo menos valeu a pena, as fotos pro meu novo portfólio ficaram ótimas. Como foi lá na revista?

— Maravilhoso! O lugar transpira criatividade e a equipe é cem por cento feminina. Foi uma experiência inigualável.

— Uau, eu sinto uma energia boa nesse teu sorriso. É bom vê-lo novamente.

— Obrigada, por tudo. Você e o Will me ajudaram tanto. Eu não sei o que seria de mim sem vocês. Acho que eu não estaria aqui.

— Você seria louca de não aceitar essa oportunidade. Eu ia dar na sua cara! – Nós duas rimos. – Mas sério agora, nós estaremos sempre aqui por você. Melhores amigos são pra isso. – Ela me puxa e dá um beijo na minha testa. – Falando no Will, cadê ele?

— Ele me deixou em casa e saiu sem dizer nada. Agora que você perguntou, eu achei ele estranho o caminho todo. Perguntei se estava tudo bem e ele só assentiu. Eu devia ter insistido. – Digo, me arrependendo por não ter questionado mais sobre o motivo do baixo astral do meu amigo.

— Ele deve estar com saudades da Lu.

— Será que é só isso?

— Bem, a gente tenta tirar dele quando ele chegar.

— Ta bem, eu vou fazer o jantar.

                                                                @@@

— Oi, meninas.

            Will entra em casa com a gravata frouxa e o paletó jogado sobre o ombro. 

— Até que enfim! Quase desistimos de te esperar pra jantar e comemos tudo sozinhas. – Zula sai na frente brincando, mas para ao notar a expressão dele. – O que aconteceu, Will?

— Vocês podiam ter comido sem mim. Estou sem fome. – Ele diz, se jogando no sofá.

— Você sem fome? Tem algo muito errado. Fala logo o que aconteceu. – Eu digo, enxugando as mãos no pano de prato e me sentando no braço do sofá perto dele.

— A minha entrevista foi horrível. Eu entrei em uma sala enorme, gelada e cheia de pessoas mais frias ainda. As perguntas eram tendenciosas, eles queriam saber os colégios que estudamos na infância, a escolaridade e profissão dos nossos pais, se tínhamos experiências no exterior, o que não faz sentido, já que nada disso era relevante para a vaga de assistente.

— Parece mais que estavam querendo filtrar riquinhos filhinhos de papai.

— Pois é. E pra completar a maioria dos candidatos tinha feito algum estágio em empresas grandes, que com certeza foram arranjados por conhecimento. 

— Mas você é muito inteligente, se formou com honras em uma faculdade federal, foi indicado direto para o mestrado, vendeu ótimos projetos e ainda foi aprovado pra fazer um doutorado na USP. – Eu digo, tentando amenizar a chateação dele.

— Você é cabeçudo, Will. Aposto que era o concorrente mais forte daquela sala. – Zula completa.

— Pode ser, se eu tivesse chegado a ser entrevistado individualmente, talvez eles tivessem lido o meu currículo.

— Como assim, Will? – Eu pergunto, sem entender.

— Morg, eu era o único cara negro numa sala com nove caras brancos. Fizemos uma dinâmica juntos, ouvimos uma palestra sobre a empresa e depois cada um foi sendo chamado para as entrevistas individuais. Um por um. Eles entravam no escritório do CEO e ficavam por cerca de quinze minutos cada. Eu fiquei por último. Na minha vez de entrar, a secretária me informou que ele não tinha mais tempo para entrevistar ninguém.

— Não acredito. – Zula deixa escapar e se levanta, transtornada.

— Eu perguntei se deveria voltar amanhã, mas ela me disse que já tinham candidatos suficientes, que se precisassem de mim, voltariam a entrar em contato.

— Eles nem te ouviram? Nem te deram uma chance? – Eu pergunto, indignada.

— Por que eles iriam querer o candidato preto tendo tantos brancos à disposição?

— Mas você foi indicado por uma pessoa influente na área, não foi?

— Sim, por um dos meus professores da faculdade. Ele é grande amigo de um dos diretores dessa empresa há muitos anos.

— Então deve haver algum engano.

— Não tem engano nenhum, Morg! Tá na cara que só me chamaram lá pra não fazer desfeita para o Professor Rainer.

— Desculpa, só é difícil demais de acreditar. – Eu me inclino na direção dele e o abraço.

— Isso é um absurdo. Você tem que denunciar essa empresa! – Zula anda pela casa bufando.

— E dizer o que, Zula? Que eles se recusaram a me entrevistar porque eu sou preto? Não tem nenhuma prova disso, eles não disseram nada insinuando isso. Eles não são idiotas de falar isso com todas as letras e correrem o risco de serem processados. Eles podem simplesmente dizer que já tinham selecionado o candidato para a vaga.

— Mas isso é tão errado. – Zula se senta no outro lado de Will e segura sua mão.

— É errado, horrível e, infelizmente, inevitável. E as pessoas ainda dizem que não existe mais preconceito racial nesse país. – Eu digo, engolindo a raiva e a tristeza pelo meu amigo.

— Essa porta se fechou, Will. Mas pode ter certeza de que muitas outras ainda vão se abrir pra você. Você é um cara incrível, talentoso e super profissional. Tenho certeza de que logo você vai estar trabalhando em um lugar muito melhor do que essa empresa preconceituosa. – Zula diz e eu torço para que Deus a ouça.

— É isso mesmo. Você merece estar em uma empresa que enxergue todo o seu potencial, muito além da cor da sua pele. E isso não vai demorar. – Eu digo e lhe dou um beijo na bochecha.

— Obrigada, garotas. Tudo o que eu quero é encontrar o meu lugar e poder dar uma vida melhor pra minha mãe e pra Lu.

— E você vai. Você já é o orgulho da sua mãe e logo vai poder recompensá-la pela educação maravilhosa que te deu. – Eu digo, me lembrando com carinho da Tia Monalisa. 

— E a Luciana vai se casar com o melhor partido desse Brasil! – Zula completa.

— Vocês são as melhores. – Ele sorri fraco.

— Estamos juntos nessa, enfrentando leões, engolindo sapos, comemorando vitórias... – Zula une as nossas mãos.

— Sempre, para o que der e vier. – Eu digo e trato de levantar e enxugar uma lágrima fujona.

— Então vamos jantar, pois meu estômago já acordou dando cambalhotas. – Will levanta e arregaça as mangas da camisa.

— Aí está o Will fominha que eu conheço. – Zula implica e eles seguem se empurrando como duas crianças até a pia do banheiro para lavar as mãos.

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