Capítulo 2

Se tem uma coisa que amo é ser carioca. Como amo essa cidade. Adoro todo o ar boêmio e vívido que ela possui. Morar em Santa Tereza foi uma das minhas melhores escolhas. Eu tenho uma lista grande de porquês para ser feliz aqui. Aliás, eu tenho várias listas, para tudo, uma mania que acabei adquirindo na época da faculdade de Administração e que só piorou com minha segunda graduação em Secretariado Executivo.

Puxo uma mecha do meu cabelo, próxima da orelha, e a enrolo ao redor do restante, prendendo-o por completo em um rabo-de-cavalo improvisado. Amo os meus cabelos soltos, ele é escuro, crespo e volumoso. Seu comprimento vai abaixo dos meus ombros. Eu o mantenho preso o dia todo por causa do trabalho, mas quando chego em casa ou saio ele se torna livre, assim como eu. Acontece que está muito calor e a porcaria do ar-condicionado quebrou, não é como se eu não pudesse comprar outro, ainda mais com o extra que Marcelo me deu, porém, o preço está um absurdo porque o calor está insuportável.

— Ei, você voltou — falo, desviando o olhar da janela quando vejo minha gata, Cleópatra. Eu queria que ela tivesse uma personalidade mais calma, como a da mãe dela e quisesse viver dentro de uma casa, mas não. Cleópatra prefere ficar do lado de fora vivendo comigo, os vizinhos e o mundo.

— Você não me ama e isso me magoa, viu? Se você me amasse de verdade, viveria aqui dentro comigo. Se bem que tem estado tão calor aqui que nem eu quero estar — sorrio para ela e abro a janela.

A Cleópatra pisa no aparador próximo a janela e logo dá um salto ao chão e lá vou eu toda boba arrumar as vasilhas de água e ração para ela. Tudo do bom e do melhor para a Cléo.

— Que bom que você já está alimentada, Cléo, porque eu nem sei o que vou comer hoje! Acho que deveria ter aceitado o happy hour, mas Marcelo estava tão chato hoje e com certeza a notícia iria se espalhar e a insuportável da Larissa iria também... sei que não devia estar encucada com isso de signo, mas o que a minha irmã disse bateu direitinho!

Cléo se lambe inteira, e nem olha para mim enquanto eu falo sozinha dentro desse “apertamento” quente. Ainda bem que já revisei tudo que eu preciso para amanhã, e estou livre para dormir cedo. Quem precisa de happy hour, né?

***

Além de todo o trabalho direto com Marcelo, eu também coordeno a equipe com outros secretários executivos. Diga-se de passagem, eles não são tão preparados quanto eu, porém conseguem exercer um bom serviço na maior parte do tempo, e eu me orgulho disso, pois desde que assumi a coordenação dessa equipe, não houve demissões por parte de Marcelo e os demais diretores. Então, também tenho certo prestígio com esses funcionários.

Essa foi minha primeira promoção, entretanto não faço o meu melhor esperando por outra; meu maior sonho é ter meu próprio negócio e, para isso, junto dinheiro desde o tempo dos estágios na área de Administração.

Hoje marquei uma pequena reunião com esses secretários, antes do expediente de trabalho, para juntos ajustarmos alguns detalhes da viagem e da apresentação que os diretores irão fazer.

Juliana é o mais próximo de uma amiga que eu já tive dentro do ambiente de trabalho, curso ou estágio. Ela é alguém que me faz bem, com capacidade de me fazer rir à toa. Eu adoro o seu jeito, ela sempre executa seu trabalho perfeitamente. Juliana é paulistana e advogada da empresa, tenho certeza de que se eu me permitisse ter mais contato com ela, seríamos melhores amigas. É o mesmo que acontece com Brenda, mas ela está do lado errado, e com o lado errado quero dizer que ela trabalha diretamente com Felipe Camargo e Larissa, que sequer me dei o trabalho de decorar o sobrenome. Você já me conhece um pouco, não é? Então, posso dizer que sei que o nome dela completo é Larissa Baptista Carestiato, porém, eu prefiro esquecer e nem a chamar de nada, de preferência fingir que ela não existe. E por isso acho que Brenda não se encaixa com eles de jeito nenhum.

— Eu já arrumei tudo para o Sr. Camargo — Brenda fala. — Houve um problema com as distribuições dos quartos e quase não consegui alugar a suíte presidencial, mas por fim deu tudo certo. Consegui alocá-lo no segundo hotel de sua lista.

— É no mesmo em que Marcelo e mais quatro diretores ficarão hospedados — digo após verificar a lista que Brenda me estende.

— É um hotel quatro estrelas, todos os diretores já estavam de acordo em se hospedar nele, pois estamos em alta temporada...

— Todos, menos o Felipe. — Alguém pontua e tenho que concordar. Ele sempre arruma confusão por pequenas coisas como essa.

— Você verificou cada hotel da lista? — Pergunto automaticamente. Brenda é super responsável, com certeza fez isso.

— Cinco vezes desde que soube da reunião — confirma com um sorriso meio nervoso.

— Não se preocupe, checaremos juntas mais uma vez hoje. Quem sabe não houve alguma desistência e consigamos uma vaga?! — Me volto para os demais presentes na sala. — Mais alguma coisa a ser discutida?

 As negativas me fazem encerrar a reunião temendo seriamente por Brenda. Nunca se sabe como Felipe reagirá por uma estrela a menos na qualidade de qualquer coisa.

— Ah, Brenda, você foi para o happy hour ontem?

Ela levantou uma das sobrancelhas.

— Não teve nenhum happy hour ontem. Está todo mundo ocupado com a ida dos chefes a São Paulo, mas se bem que eu amaria uma cervejinha só para descontrair, sabe? — Ela solta sua risadinha fofa que preenche o ambiente.

— Estranho — deixo escapar baixinho. Se ninguém iria a um happy hour, porque raios Marcelo havia me convidado?

***

Marcelo se manteve tranquilo durante o dia. Devido as suas diversas tarefas fora da empresa, só nos reunimos no fim da tarde em sua sala. Fiquei um tempo olhando para o quadro pendurado na parede. Uma obra de arte original e única que ele ganhou de presente de um amigo artista plástico. Combinava com uma empresa de publicidade.

O quadro não era uma obra simples de se entender à primeira vista. Toda a cidade retratada na imagem parece um caos: carros, ônibus, janelas, pessoas que parecem conversar, outras que parecem estar gritando, mas se você virasse um pouco a cabeça, todo aquele cenário faria sentido e, em alguns prédios, nas pessoas e até em animais, desse ângulo novo, era possível observar palavras grifadas quase que secretamente. Duas me lembravam muito o Rio: calor e gentileza.

A voz forte de Marcelo me traz de volta para a realidade daquela sala, que provavelmente é uma porção pequena do universo dentro daquela moldura. Tenho certeza que estamos localizados na parte do caos.

— Então, você conseguiu outro hotel para o Felipe?

— Ajudei Brenda a conseguir. Tivemos um pouco de sorte — informo e Marcelo sorri.

— Ok, que bom! Odiaria ficar no mesmo hotel que ele, já basta vê-lo todos os dias por aqui — admite Marcelo um pouco sério ao passar a mão pelos cabelos.

Deve ser difícil para ele não poder ter uma desculpa, mesmo que esfarrapada, para demitir Felipe. Apesar de tudo, Felipe faz o seu trabalho, certo?

— Aqui está o pen drive com o PowerPoint que o senhor solicitou contendo as alterações.

— Obrigado, Nalu — Marcelo agradece e me arrepio por inteira. Esse é o meu apelido, é como a minha família me chama e, não, meu chefe não deveria estar me chamando assim. — Não arregale os olhos dessa maneira, relaxe. Trabalhamos há tempos juntos, você já deveria ter parado de me chamar de Senhor.

— Por favor, não me chame de Nalu. Não faz sentido para mim perder todo o profissionalismo que eu estudei e lutei tanto para ter. É melhor mantermos a formalidade — falo de forma segura, sem demonstrar no meu tom de voz o quão abalada estou por dentro.

— Ok, senhorita Ana — Marcelo por fim concorda, meio constrangido, e acabo me arrependendo um pouco por ser tão dura com ele.

   Após pegar o pen drive, Marcelo o encaixa em seu computador para verificar os slides. Ao passar as páginas rapidamente, diz que as alterações e as notas de rodapé que fiz ficaram boas.

Seu celular toca, tirando-nos do momento ainda constrangedor, ele olha para a tela do aparelho e sorri.

— Fala, linda — pausa. — Eu estive ocupado o dia todo. É, tem sido difícil e complicado arrumar um tempo para você — diz ele todo meloso, mas seu sorriso se fecha.

Fico com pena dessas meninas que ficam se iludindo com um tipo assim. Com o volume alto da ligação posso ouvir o que ela fala do outro lado da linha.

Marcelo continua com seu teatrinho:

— Assim que der, marcamos um encontro. Beijos. Também estou com saudades disso — ele me lança um olhar divertido quando do outro lado da linha a mulher solta um eu te amo. Marcelo responde com um básico “até breve” antes de desligar.

Sinto vontade de revirar os olhos de tão "aff" que isso tudo é.

— Você disse que está ocupado, mas pensei que fosse jantar hoje com outra mulher. Qual o nome dela mesmo? Márcia?

— Pensei que prezasse pelo profissionalismo, senhorita Ana Luísa. Ou estou enganado? — ele sorri de lado, atingindo-me em cheio. — Aquele discurso de agora pouco serve apenas quando a vida a ser comentada é a sua?

— Me desculpe, eu não deveria ter dito isso — digo, constrangida. — Mas também não é certo da sua parte pedir à sua secretária que marque jantares que não têm relação alguma com o trabalho. Não é esse o meu dever.

Seus olhos brilham perante minha afirmação enquanto seus dedos tamborilam sobre a mesa, antes de ele mudar de assunto.

— O almoço hoje foi muito produtivo. Consegui reverter a situação e o cliente prometeu que deixaria o assunto sobre as alterações de lado. Mostrei a ele o quanto o projeto original poderá proporcionar um resultado melhor do que com as alterações que o Felipe sugeriu. Só faltou você lá para que as coisas fossem mais rápidas, tenho certeza de que me auxiliaria melhor.

Sinto meu rosto queimar perante aquela afirmação. Assessorá-lo em algumas reuniões é apenas uma das minhas obrigações como sua secretária, entretanto é bom saber que ele pensa que minha presença faria alguma diferença por lá.

— Fico feliz por isso — tento não demonstrar muito minha alegria ao usar o tom neutro. — Seu pai já sabe? Terá que avisar Felipe sobre a mudança.

— Não. Ainda não conversei com meu pai, também não será hoje que direi algo sobre isso a Felipe — ergo levemente uma das sobrancelhas e Marcelo ri. — Você me conhece, quero prolongar o meu triunfo para a viagem.

Minha boca se abre em um “o”. Esse idiota quer mesmo estragar o evento que estou batalhando para organizar? Contudo, seria divertido ver Felipe arrasado na próxima reunião.

— O senhor promete que vai filmar para mim a cara de derrota de Felipe? — pergunto impacientemente, constatando a satisfação que seria assistir essa filmagem.

— Você parece uma criança pedindo um presente de natal aos pais — fala Marcelo com um dos dedos nos lábios. De repente, seu semblante torna-se sério e seu olhar distante como se analisasse algo. — Já tem um tempo que tenho notado que você também não gosta do Felipe. Por quê?

Engulo em seco. Marcelo nunca havia me perguntado sobre isso, não é a primeira vez que demonstro não gostar do Felipe na frente dele. Eu deixo isso claro para o mundo. Porém, não estou com vontade de abrir minha vida para o meu chefe.

— Lembra-se do profissionalismo? Então você não precisa gravar nada para mim e eu não preciso contar os meus motivos. Mas, você o conhece bem. Felipe é...  insuportável.

Marcelo fica mudo, encarando-me por longos segundos até que relaxa os ombros sentando-se mais à vontade em sua cadeira.

Este era um problema meu, só meu.

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