– Cheguei! – gritei para que Kevin ouvisse. Mas ele não respondeu, e eu imaginei que estivesse na biblioteca, já que tinha começado a chover há pouco e livros são propícios a esse clima, como diz Djavan:“Um dia frio, um bom lugar pra ler um livro.”Subi as escadas e abri a porta ao chegar ao terceiro andar. Ouvi um tilintar vindo do fundo do cômodo e, após dar alguns passos, percebi que esse som vinha dos dedos de Kevin na máquina de escrever.Ele estava tão concentrado que não notou minha presença por alguns segundos, até que eu, com pena de despertá-lo de sua criatividade (ele ficava tão lindo concentrado), pigarreei. – Você chegou – constatou ao me ver.– Está escrevendo o quê? – perguntei curiosa.– Nada demais! Só umas bobagens. – Duvido que seja. Não botei fé quando você disse que só escreveu alguns poemas no tempo em que era mais novo. Acho que existe um escritor guardado aí dentro.Eu me sentei em seu colo para tentar descobrir do que se tratava, e assim avistei uma pilha
A sexta-feira tinha chegado. “Thank God it’s friday”, como diriam os cidadãos californianos.Kevin deu uma saída misteriosa após o expediente, e eu supus que estivesse no Mustang escrevendo, estacionado em algum canto da cidade. Eu não podia reclamar, afinal também havia dado minha saidinha no dia anterior para encontrar o delegado. Era engraçado como, embora eu me sentisse insegura, acreditava confiar em Kevin e não queria decepcioná-lo.Ah, como eu queria ter um aparelho celular igual ao de Lena. Achava o máximo um telefone portátil que podia ser usado a qualquer hora. Mas isso era só para os mais ricos. Me perguntei se algum dia as pessoas menos abastadas, como eu, também teriam esses objetos tão tecnológicos. Caso tivesse um, ligaria toda hora pra minha irmã. Eu poderia fazer isso do telefone da casa, mas não estava a fim de descer até a sala. Constatei que, se isso acontecesse e esses telefones se tornassem populares, as pessoas nunca mais olhariam nos olhos umas das outras. Seri
– Lena! – exclamei ao telefone.Kevin estava na biblioteca escrevendo, e eu tinha ficado na sala assistindo ao programa da Oprah. Sentiria falta disso quando voltasse pra casa, assim como sentia das novelas estando longe do meu país. O único canal brasileiro ali na casa era o de futebol, que João assistia com frequência para acompanhar o campeonato brasileiro, e eu já estava acostumada à programação americana.A Copa do Mundo do ano anterior tinha sido ali nos EUA, e o vencedor fora o Brasil, coisa que deixara meu chefe extasiado conforme ele me contara certa tarde enquanto Lena me ajudava a treinar a pronúncia de algumas palavras. João era um bom homem, e eu sabia que Kevin herdara isso dele.A voz de Lena parecia animada do outro lado da linha.– Como vocês estão? Fiz essa pergunta por educação, pois imaginei que a ligação fosse pra falar com seu filho e pra saber a quantas andava o trabalho dele no restaurante. Kevin estava indo bem, a propósito. Aquela semana que tinha terminado
Com o aprendizado que eu tivera nos últimos meses sobre sanduíches americanos, sabia que Tuna Melt era atum com queijo. Meus preferidos eram o de queijo quente, que eles chamavam de Grilled Cheese e também o Submarine Sandwish, que consistia em duas fatias de pão longo, bem diferente do francês que eu estava acostumada, recheado com carne fatiada, queijo e tomate. Nós servíamos todos eles na Milk Shakespeare, entretanto a comida brasileira ainda era recorde de vendas durante o almoço.– Menos mal.As músicas começaram a tocar: 2Pac, Mc Hammer, mais um pouco de The Fugees. Meus pés balançaram em todas elas.– Vou ao banheiro – Kevin avisou. – Volto já! Assenti com a cabeça e me sentei no sofá dourado."Qual é o problema dela?", pensei em relação a Summer. Sua simples presença me causava incômodo. Eu deveria fazer como as celebridades e procurar um psicólogo para resolver meus problemas existenciais e de autoconfiança. O fato de Summer estar ali mexia com meus brios, mas respirei fun
Uma semana depois...– Chegamos! – disseram em coro duas vozes entusiasmadas.Kevin e eu levantamos do sofá, surpresos. Estávamos tomando o café da manhã ali ao invés de na cozinha, e eu torci para não ter derramado farelos de pão no tapete. Não esperávamos que a chegada de Lena e João fosse àquela hora, embora soubéssemos que seria naquele dia. Sabíamos que eles entrariam pela porta em algum momento, mas não enquanto desfrutávamos do nosso último café da manhã a sós. A “vida de casados” estava chegando ao fim, e eu lamentava isso.Isso não queria dizer que não queríamos que eles voltassem, mas ambos, se pudéssemos escolher, teríamos postergado essa data, prolongando a nossa temporada.Na noite anterior, tínhamos nos sentado em frente à piscina e ficado lá, de mãos dadas, sem dizer nada por algum tempo. Eu estava relendo meu exemplar de “A Hora da Estrela”. Quem rompera o silêncio fora Kevin.– Vou sentir falta desta piscina quando formos embora.Ele se levantara e se sentara com os p
E foi isso que ele fez.Pouco depois, naquele mesmo dia, que agora era noite...Kevin estava sentado na bicicleta da academia que ficava no jardim. Eu havia subido para ficar sozinha por alguns minutos, absorvendo tudo, e voltara para vê-lo. Nós precisávamos conversar e não era possível procrastinar isso.A lua era cheia, propícia para lobisomens. Entretanto, o que estava de frente para mim nada tinha de lobo, apenas de humano. Um belo humano. Por dentro e por fora.– Reflexivo?!Ele despertou de seus próprios pensamentos.– Bastante, embora já tenha me decidido lá no fundo.Me justifiquei:– Eu não pude recusar. Não tenho trabalho no Rio e... você sabe, eu amo este lugar apesar de tudo. De tudo não, das poucas coisas que me desanimam aqui. Beverly Hills é um sonho, é a minha chance. Espero que não fique chateado. Nós fizemos planos, eu sei, mas...– Sei disso também. Eu compartilho desse sentimento. Também amo essa cidade. E posso dizer a expressão “apesar de tudo” sem medo.– Kevin,
Lena estava ao telefone quando, no dia seguinte, eu me preparava para dar notícias à minha mãe. Não sabia qual seria a reação dela, ou melhor, sabia sim, mas preferia não saber. Ela enlouqueceria, mas depois aceitaria minha decisão. Com pesar, porém aceitaria.Eu só não tinha certeza de quanto tempo levaria para chegar a esse “depois”. Estava na hora de entender que eu havia crescido. Já Ester ficaria exultante. Eu queria propor que Peter e ela viessem me visitar em breve. Eu estava com saudades e a perspectiva de sabe-se lá quanto tempo mais sem vê-la aumentava isso. Nunca tinha ficado tanto tempo sem minha irmã, amiga e confidente, e era irônico que isso estivesse acontecendo logo agora que eu tinha tantas coisas para contar a ela.Apesar de a minha estadia só parecer ter prós, eu tinha consciência dos contras: teria que planejar toda uma vida ali, me reestruturar, pois meus planos anteriores só iam até o fim do verão, ou seja, eles estavam chegando ao fim do prazo de validade.Cont
O verão de 1995 se findou junto à vida de Kevin Fisher, o garoto, o rapaz, o homem (sim, a ele cabia-se usar todos esses termos), que me apresentou a uma parte inteira do mundo.Parece incoerente dizer “uma parte inteira”, mas garanto, com direito a um ponto de exclamação, que não é! Tampouco “o inteiro de uma parte”. Haja complexidade para compreendê-lo.Kevin era um universo e, naquela tarde, este universo não teve um fim dentro do Mustang. Ele estava eternizado dentro das páginas escritas, intituladas “A biografia de um verão”, que tinham ficado parte dentro da gaveta da escrivaninha de seu quarto, parte em seu infinito particular, que poderia ser chamado também de biblioteca.O amor a que ele me apresentara, não terminou também com a estação: ele perdurou. Perdurou e perdura. Há verbos que podem ser conjugados no passado e no presente sem que seu sentido se altere.Aquela ligação repentina mudou todos os meus planos, causando uma revolução. Me lembrei de ter constatado, certa vez,