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Capítulo dois - Apenas uma vida para salvar

Capítulo dois – Apenas uma vida para salvar

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“Mal posso esperar para ver aqueles rostos

Estou na estrada a caminho de casa para o Natal

Estou indo estrada abaixo

E já faz tanto tempo

Mas eu estarei lá

Para cantar essa música”

(Música: Driving Home For Christmas – Intérprete: Chris Rea)

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            — Algum problema? — ele me perguntou, arrancando-me subitamente dos meus devaneios.

            Só então, reparei que passara alguns segundos olhando-o fixamente, com a maior cara de babaca do universo. Meu Deus, o que ele estaria pensando de mim?

            — Não, nada. Não foi nada. Me desculpe. Eu apenas... reconheci você.

            Uma expressão confusa surgiu no rosto dele.

            — Sério? Já nos conhecemos?

            — É, você... salvou a minha vida uma vez.

            Ele voltou a sorrir, e sua resposta saiu com a naturalidade de quem já devia ter ouvido aquilo inúmeras vezes.

            — Bem, esse é exatamente o meu trabalho. Lamento muito que já tenha precisado dele, mas fico feliz por saber que fiz tudo certo.

            A frase “não tão certo assim” chegou a surgir na minha mente, mas logo percebi o quanto ela seria injusta e cruel. Meu bebê já estava morto quando cheguei ao hospital, ele tinha apenas uma vida para salvar, e a salvou. Ele não tinha como saber o quanto eu desejava ter morrido naquela noite. E, mesmo que soubesse, seu papel, como médico, era fazer o possível para que eu sobrevivesse.

            Ele se levantou, concluindo o recado:

            — A Tamires vai precisar passar a noite aqui em observação, só por precaução. Mas já conseguiu ligar para o marido dela e informou tudo. Pediu para que você deixasse o seu telefone, porque ela vai querer te ligar depois, para te agradecer por tudo.

            Eu não precisava de agradecimentos, mas pensei que seria bom ter notícias dela depois. Fiz um movimento inconsciente de mexer na bolsa, para pegar um cartão, mas logo percebi que não tinha levado nada comigo. Compreendendo o gesto, ele apanhou o celular e, lá, anotou o meu nome e número que eu passei, dizendo que repassaria para Tamires. Em seguida, nos despedimos cordialmente, com um aperto de mãos.

            Enquanto descia as rampas para o térreo, atentei-me ao fato de estar sem carro e sem dinheiro para pegar algum transporte público até em casa. Pensei na distância do hospital até a minha casa e deduzi que deveria dar uma hora de caminhada, talvez um pouco mais. Era o jeito, no fim das contas.

No entanto, ao chegar à porta, percebi que a coisa não seria tão simples assim. Uma forte chuva de verão caía, e eu, obviamente, não levava nenhum guarda-chuva comigo. Pensei que a escolha mais sensata seria aguardar um pouco, até que a chuva parasse ou, ao menos, diminuísse.

            Engraçado como a vida tem suas piadas de humor duvidoso. A mesma pessoa que queria se matar há algumas horas, agora temia andar na rua em meio a uma tempestade. Aquele bendito e contraditório instinto de sobrevivência parecia estar de volta.

            Sentei-me em uma das cadeiras da recepção, próxima à porta, e fiquei ali, perdida em pensamentos, aguardando que a chuva passarão menos diminuísse para que eu pudesse ir embora dali.

Alguns minutos depois, fui arrancada dos meus devaneios por uma voz masculina e já conhecida por mim:

            — Problemas para ir embora?

            Levantei o rosto e, quem diria, lá estava aquele médico mais uma vez. Agora, não usava mais o jaleco, mas uma camisa polo verde que realçava demais a cor de seus olhos.

            Tentei ser simpática, embora meu estado de espírito ainda não estivesse muito apto a sorrisos.

            — Esperando para ver se a chuva diminui. É um bom chão até em casa.

            — Está de ônibus?

            Quem me dera... Estaria mais tranquila se fosse aquele o caso.

            — Não. Estou a pé, na verdade. Estava em uma praça bem perto da minha casa, e não contava em pegar uma carona de ambulância até o hospital do outro lado da cidade. Saí sem bolsa, carteira, nada.

            Ele sorriu, compreensivo. Perguntei-me se ele seria sempre um cara tão zen.

            — Bem, estou largando meu turno agora. Vem comigo, eu te dou uma carona.

            Senti-me sem graça com o convite tão súbito. A gente mal se conhecia, ele era pouco mais do que um estranho para mim.

            — Não, imagina! Não me importo de andar, é sério.

            — Mas eu me importo em te deixar voltar para casa sozinha, de noite. Ainda mais com essa chuva, pode ser perigoso.

            Voltei os olhos para o relógio de parede, percebendo que já eram quase sete. Mesmo para uma cidade pequena, ainda era um horário de movimento nas ruas... porém, até que a chuva parasse para eu sair dali, e até que eu chegasse em casa, certamente já pegaria alguns trechos bem desertos.

            Uma outra sequela que o acidente tinha me deixado era um certo receio – para não dizer medo – de sair à noite. A ideia não me parecia nada animadora, e, de fato, uma carona ajudaria muito. Porém, não queria parecer abusada aceitando essa oferta de alguém que eu mal conhecia.

            Mesmo que esse alguém já tivesse salvado a minha vida.

            — Desculpa, doutor, mas eu não posso aceitar.

            — Desculpa, Vanessa, mas isso não está em negociação. Anda, vamos.

            Ele começou a caminhar lentamente até o elevador, e eu, hesitante, acabei por segui-lo. No caminho, perguntei-me como ele poderia saber o meu nome, mas me lembrei que eu mesma o tinha dito quando passei o meu telefone para que ele repassasse a Tamires.

            Descemos juntos pelo elevador, em silêncio, até a garagem no subsolo do hospital. Entrei no carro ainda um pouco receosa sobre estar sendo abusada demais. Por isso, tentei amenizar a situação:

            — Me diz para onde você está indo que te falo um ponto onde você possa me deixar que seja mais próximo para mim.

            — Já disse que vou te deixar em casa, Vanessa.

            — Mas você nem sabe onde eu moro. Talvez não seja caminho para você, ou mesmo seja super contramão. Não vou te fazer alterar toda a sua rota por minha causa.

            — Acha mesmo? Nenhum lugar nessa cidade é longe demais.

            Ele tinha razão, no fim das contas. Com isso, acabei concordando e passando o meu endereço.

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