O Caveira Vermelha
O Caveira Vermelha
Por: ABDENAL CARVALHO
01 - Sobreviventes

Durante o inverno muito lixo flutuava pelo córrego que passava debaixo das palafitas construídas pelos ribeirinhos dentro das sacolas jogadas pelos moradores das partes mais altas da cidade, era uma quantidade tão grande que causava espanto em quem tinha a má sorte de ali viver.

No final das chuvas, quando finalmente cessavam os temporais dava um trabalho danado retirar toda aquela sujeira que ficava presa na maioria dos esteios que sustentavam as moradias construídas dentro da água no verão.

Numa daquelas construções de madeiras apodrecidas pelo passar do tempo se encontravam mãe e filho sobrevivendo como podiam por várias décadas. Eulália e Pedrinho habitavam num pequeno casebre, medindo cerca de oito metros quadrados.

 Cujo telhado coberto com telhas antigas de barro cru costumava gotejar sempre que o inverno chegava e as chuvas tornavam-se mais frequentes. Sua rotina diária era deixar o filho pequeno com a vizinha enquanto realizava trabalhos diversos nas residências dos grã-finos em troca de alguns trocados que mal dava para manter o sustento dos dois.

As coisas melhoraram depois que o prefeito mandou construir uma pequena creche nas imediações do lugar que permitia com que as mães deixassem ali suas crianças enquanto trabalhavam, dessa maneira elas estudavam e as mães ainda recebiam uma ajuda de custo do Governo para mantê-las em sala de aula. Foi incentivada por outras mães a matricular o menino.

— ...É sim, mulher, coloca teu filho lá que já é uma grande ajuda! — Advertiu uma das moradoras

— Com certeza, eu já matriculei meus três meninos! — Acrescentou a outra

— Tá certo, vou fazer como vocês estão me aconselhando, amanhã vou pedir licença a patroa e na quarta-feira eu falto o serviço pra resolver isso

— Boa ideia, minha vizinha, essas coisas a gente não abre mão!

A mulher ainda não tinha chegado aos trinta anos, mas parecia bem mais velha devido a vida desgastante que levava, não tinha quase descanso, alimentava-se mal e perdia muito.

Levava uma vida desgastante, perdendo sono ao ter que trabalhar o dia inteiro e ao retornar na parte da noite ainda cuidar do pequeno Pedro e da organização do barraco velho onde moravam juntos.

Havia engravidado do menino dez anos antes, período em que foi abandonada ainda durante os primeiros meses de gestação pelo marido que a trocou por outra. Desde então teve que assumir duplo papel na criação do filho, atuando como mãe e pai, duplicando dessa forma sua imensa responsabilidade. A inteligência da criança era notória e logo aprendeu a ler e escrever, era apaixonado pela leitura e se encantava com as histórias de seus livros.

Tudo ia bem, havia chegado o verão e as chuvas fortes se foram dando lugar às lindas manhãs de sol e logo cedo era possível ouvir o cantar dos pássaros nos galhos das árvores ao seguir de mãos dadas com sua mãe em direção a creche, local onde tia Raissa lhe ensinava a escrever novas palavras e fazer contas na aula de matemática.

Porém, o inesperado aconteceu naquele fim de tarde, quando um dos moradores embriagado causou o incêndio de um dos barracos. O fogo deu início debaixo de um forte soprar dos ventos que normalmente se manifestava por ali naquele horário e logo se espalhou por todos os outros casebres numa velocidade incrível, tão rápida foi a ação das chamas que mal deu tempo de alguns moradores conseguir salvar a própria vida.

Todas as palafitas passaram a queimar e o incêndio se espalhou de uma à outra num piscar de olhos, em questão de minutos tudo se transformou num montão de cinzas e quando o corpo de bombeiros chegou na intenção de conter o fogo este já havia cumprido seu papel de destruir tudo o que encontrou pela frente.

No trabalho Eulália recebeu o telefonema de uma amiga, avisando-lhe do enorme desastre que havia ocorrido em sua morada. Ao chegar ali só se preocupava em saber notícias do filho que ninguém parecia saber o paradeiro, somente teve paz ao ouvir de um dos moradores que a criança se encontrava em segurança.

— Calma, vizinha, ele está lá em casa!

— Bendito seja Deus, seu Getúlio, quase morri de susto!

— Não se preocupe, logo que começou o pânico ele teve a ideia de ir pra nossa casa do outro lado do córrego

— Sim, eu sempre orientei a ele que se algo de ruim acontecesse para correr até a casa dos moradores do outro lado da pequena ponte

— Pois a senhora fez muito bem!

— E agora, como vai ser para nós que perdemos tudo?

— Cama, vizinha, tudo vai se arrumar, a senhora vai ver

— Deus lhe ouça, porque não faço ideia de como vamos sobreviver a isso

Getúlio era um homem viúvo, havia perdido a esposa para o câncer faziam muitos anos e sempre propôs casamento para Eulália, que também vivia sozinha na luta pela sobrevivência, porém, ela nunca aceitou suas várias propostas. Entretanto, naquele dia desesperador não lhe restou outra saída a não ser concordar em passar uma temporada na casa do idoso até que conseguisse outra moradia.

Pedrinho adorou a ideia, pois tratava-se uma casa ampla, com vários compartimentos e construída em alvenaria, aquilo lhe parecia um palácio, visto que cresceu naquele barraco de madeiras podres, trepado sobre quatro esteios e no meio do córrego fedido onde escorriam os excrementos do pessoal da parte alta da cidade, era uma podridão quase insuportável.

— A senhora não se preocupe com os falatórios, Dona Eulália, somos pessoas livres e não temos nada o que explicar pra essa gente. Portanto, acomode-se com seu filho num dos quartos e assuma o comando de tudo por aqui, faça de conta que a casa é sua

— Agradeço a hospedagem, Seu Getúlio, prometo que farei o possível para não tomar muito do seu tempo, assim que encontrar um outro loca desocupamos sua moradia

— Deixe disso, mulher, você sabe que não precisa de tanta pressa, caso queira aceitar minha proposta nem precisa mais sair daqui

Eulália responde o convite do idoso com mais um sorriso amarelado, demonstrando pouco interesse em aceitar ser sua companheira. Aos trinta e oito anos de idade e completamente decepcionada com os homens ela já não acreditava no amor e perdeu o desejo de mulher por completo, sabia que não iria ser capaz de lhe dar prazer sexual e que acabaria por se tornar uma enorme decepção para um homem que trazia em seu coração várias fantasias ao seu respeito.

O lugar bastante amplo e com vários cômodos encantava o menino que não parava de fazer elogios a novo lar. A televisão LED novinha de cinquenta e quatro polegadas estampada na parede toda emassada e pintada de amarelo pérola, o conjunto de sofá luxuoso no meio da sala, a geladeira de duas portas, o fogão de inox com seis bocas e tantos outros móveis zerinhos...Tudo transformava o local no lugar mais lindo do mundo aos olhos do pequeno Pedro.

— Mãe, tudo aqui é muito bonito!

— É sim, meu filho, mas lembre-se que nada do que há aqui nos pertence

— Mãe, porque você não se casa com Seu Getúlio?

— Que história é essa, menino?

— Há, mãe, todo mundo aqui na vila sabe que ele gosta da senhora!

— Olhe como fala, rapazinho, tenha mais respeito!

— Hum, tá bom...

A criança já era capaz de entender o clima que rolava entre os dois adultos e torcia para que sua mãe finalmente parasse de marra e aceitasse o pedido do pretendente, a fim de que pudesse viver melhor meio a tanto conforto, mas sua mãe parecia resistir ao óbvio.

Depois do incêndio consumado naquela parte da favela o Governo do Estado e outras instituições não governamentais decidiram m****r construir novas casas para aquelas pessoas que haviam perdido tudo e um cadastro passou a ser feita para contabilizar os danos e quantas novas moradias haviam de ser construídas para atender todas as famílias.

Eulália foi uma das primeiras a fazer sua inscrição e passou a aguardar com grande expectativa a entrega de seu novo lar. Enquanto aguardava tomava conta da residência do amigo e ele trabalhava na fira livre do bairro, onde era proprietário de várias bancas de venda de frutas e legumes. Certo dia, cansada de atuar apenas no trabalho doméstico e por sentir a necessidade de possuir seu próprio dinheiro ela resolve propor algo ao dono do imóvel.

— Quero lhe fazer um pedido

— Sim, Eulália, fale

— Estou cansada de ficar aqui lavando, passando, cozinhando...Quero trabalhar em algo onde eu possa ganhar meu próprio dinheiro

— Mas está faltando algo para você e seu filho, aqui?

— Lógico que não, você tem suprido todas as nossas necessidades, até o material escolar do Pedrinho você nos dá, mas é que sou acostumada a ganhar meu próprio sustento

— Compreendo, e o que propõe?

— Você é dono de várias barracas na feira, não é?

— Decerto que sim, porquê?

— E se você me fornecesse uma daquelas bancas de verduras para que eu passasse a trabalhar nela? Assim, no final da semana ou do mês, você me daria parte do lucro e assim eu teria uma atividade que me renderia um salário ao invés de ficar aqui como doméstica nesta casa

— Está bem, se é assim que prefere...

— Sim, me sentirei mais útil

— Certo, então amanhã mesmo começamos, você tomará conta da banca onde eu tenho trabalhado e ficarei apenas administrando as outras fruteiras

— De acordo, então

A rotina de Eulália foi alterada desde aquela nova manhã. Todos os dias ela acordava ainda pela madrugada e se dirigia à feira para aguarda a chegada de Getúlio com seu carro antigo carregado de sacas com frutas e hortaliças para serem revendidas nas suas quatro bancas na feira.

Depois de ajuda-lo a distribuir entre os outros funcionários ela passava a vender os produtos durante toda as primeiras horas do dia e ao meio dia ia até a creche em busca do filho, que ia com a mãe passar o restante da tarde na venda. Aos finais de semana Getúlio pagava dez por cento de tudo que havia ganho com a nova funcionária e como ela e o pequeno Pedro não precisavam gastar o que recebiam, guardava tudo numa pequena caixa à espera de receber sua nova casa e poder ali comprar alguns móveis novos.

Passaram-se muitos meses desde que o fogo incendiou suas moradas até que por fim as construções foram construídas e os moradores, que se encontravam espalhados por vários lugares da cidade, uns nas casas de parentes, outros em escolas e abrigos, pudessem retornar a tranquilidade de seu próprio lar.

Durante todo esse tempo Getúlio fez de tudo para convencer Eulália a pelo menos se deitar com ele algumas vezes, mas a mulher foi resistente e sua resposta foi sempre negativa. Por fim, após receber a chave da nova morada ela agradeceu a ajuda do idoso e mudou-se com o filho de volta ao seu espaço, onde poderia descansar da fadiga de morar no alheio.

A nova residência doada pelo Governo não era muito ampla como a do Seu Getúlio, mas foi construída em alvenaria e possuía piso firme, todo em concreto. O menino aprovou e pulava de alegria.

Ninguém mais morava à beira do córrego nem nas altas palafitas construídas sobre esteios altos e flutuantes sobre o lameiro dos bueiros que escorriam da parte alta da cidade, onde os odores podres dos excrementos dos ricos serviam de perfumes às narinas dos pobres miseráveis. Haviam sido remanejados para uma área mais seca do bairro e depois que os casebres foram dizimados em cinza até a aparência do lugar melhorou.

Ali foi construído um sistema de saneamento básico que atendia todas as famílias e ninguém mais fazia suas necessidades fisiológicas ao céu aberto nem jogava no córrego, todos possuíam banheiro dentro de suas casas e era possível manter uma higiene pessoal para toda a família.

Com as economias adquiridas com seu trabalho na banca de frutas de Getúlio, o que foi possível dar continuidade mesmo após ter se mudado, Eulália comprou vários móveis novos, além de receber doações de pessoas caridosas de diversos outros utensílios domésticos, tais como panelas, pratos e todos os acessórios extremamente necessários na cozinha.

A situação financeira daquela mulher melhorou após a imensa desgraça que se abateu sobre sua vida meses atrás, quando nem por momento podia se imaginar dona de um imóvel todo construído de tijolos e coberto por telhas de cerâmicas caríssimas. Às vezes é necessário um grande mal se abater sobre a existência de alguém para que as coisas mudem de figura.

No entanto, nem sempre um tempo de boas chuvas correspondem a um período de grandes colheitas. Eulália continuou trabalhando com Getúlio na banca da feira, o pequeno Pedro estudava na nova escola construída no bairro e tudo se encaminhava bem. Porém, naquele final de semana algo de anormal novamente aconteceria na vida daquela família que parecia ser perseguida pelo próprio destino.

A mãe e o filho foram como de costume ainda bem cedo para iniciar seu trabalho de venda na feira e o menino, agora aos onze anos de idade, já havia se adaptado àquela rotina ao ponto de ser bastante útil nos afazeres, muitas vezes até assumia à venda enquanto a mãe ia resolver alguma situação externa ou dar uma olhada na casa que passava o dia inteiro trancada.

Mas naquela manhã em particular algo havia sido traçado para os dois, era chegada a hora em que mãe e filho deveriam largar as mãos e ele aprenderia a caminhar sozinho pelos labirintos da sua existência, um poder maior decidiu separá-los bem mais cedo do que se esperava. A rua estreita que cortava a feira quase forçava os carros a esbarrarem nas bancas e atropelar os que por ali trafegavam, muitos caminhões também circulavam pelo local apertado. Eles transportavam de tudo, das frutas e hortaliças até produtos inflamáveis como gás butano, era um verdadeiro inferno o movimento por ali o dia inteiro. Naquele dia em particular o inesperado aconteceria.

Eulália mandou que seu filho fosse até a banca de frutas localizada do outro lado da estreita rua para pedir a Getúlio o troco para uma nota alta de dinheiro, pois se encontrava em falta no caixa, o menino se descuidou e deu pouca atenção ao intenso movimento e atravessou sem olhar atentamente para os dois lados, como sua mãe lhe havia advertido que fizesse.

Depois de apenas alguns segundos que Pedrinho afastou-se de sua mãe ouve-se o grito estarrecedor de uma das feirantes para que o menino recuasse diante do eminente perigo que se aproximava.

A mulher, num salto, levantou-se do pequeno banco de madeira onde permanecia sentada atendendo seus clientes e em questão de segundos já se encontra no meio da via estreita com o filho nos braços.

Seu reflexo de mãe protetora fez com que ela evitasse que o caminhão de lixo que vinha em alta velocidade batesse na criança, porém todo o impacto da batida deu-se diretamente sobre seu frágil corpo, arremessando os dois na direção da calçada. O menino sofreu algumas escoriações pelos braços e pernas, já Eulália encontrava-se desmaiada e sangrava bastante.

Depois de devidamente socorrida e levada ao pronto socorro por populares e pelo amigo foi dado o diagnóstico pelos médicos sobre seu estado de saúde, que era gravíssimo, pois havia quebrado as duas pernas e um dos braços, perdeu sangue em extremo e sua condição era crítica.

Após o terrível acidente Eulália ainda permaneceu internada na Unidade Intensiva em estado crítico por pelo menos um mês, durante esse período seu filho ficou aos cuidados dos vizinhos, principalmente de Seu Getúlio que não media esforços para a breve recuperação de sua amada. Mas, infelizmente, a mãe do menino acabou por não resistir aos ferimentos e veio a falecer.

Naquela manhã de primavera, quando o perfume das flores nas arvores era confundido pelo das muitas rosas e jasmins colocadas sobre o caixão onde se encontrava o corpo inerte daquela mulher batalhadora que deu tudo de si para criar seu único filho sozinha e sem a ajuda de mais ninguém, um menino de apenas onze anos de idade se preparava para continuar sua jornada sem ter por perto sua protetora.

Pedro teria que ser forte, seguir o exemplo de sua mãe e não baixar a cabeça diante dos obstáculos da vida, nunca recuar ao confrontar-se com o que viesse a parecer impossível, pois ela lhe deu o exemplo de ser persistente e jamais fraquejar.

Depois do funeral Getúlio levou o menino, agora sob sua responsabilidade, para ficar em sua casa e ali ele permaneceu por alguns dias, mas acabou por não se adaptar na nova estadia e insistia em querer retornar para seu lar. Eulália havia preparado o garoto para sobreviver sem sua presença por perto, ela sabia que algo inesperado poderia lhe acontecer de repente e o capacitou.

Pedro, apesar da pouca idade, sabia realizar todas as tarefas da casa. Cozinhava muito bem, lavava suas roupas e era um bom faxineiro. Em acordo com Getúlio retornou para casa e ali passou a viver em companhia do novo amigo Pingo, um cachorro que ganhou de presente de Dona Diná, uma senhora de bastante idade que residia ao lado.

Era ela quem vivia de olho no órfão e tomava conta de tudo enquanto ele ia a escola pela manhã e na parte da tarde dava uma força na banca da feira, onde antes do acidente trabalhava ao lado de sua mãe. A vida de Pedrinho poderia ter sido igual a de muitos outros meninos de sua idade que perdeu os pais ainda muito cedo, mas ele possuía fibra e não se deixou levar pelas críticas dos outros que por diversas vezes tentou ridicularizá-lo.

— Olha aí, galera, aquele pobre diabo lá da favela!

— kkkkk esse miserável foi abandonado pelo pai e agora nem mãe tem mais pra cuidar dele

— É um cão sarnento, vive como cachorro comendo o sobejo que cai da mesa dos outros — Comentavam os outros moleques da escola onde estudava

O silêncio era o que ele lhes dava como resposta diante de suas afrontas. Lembrava do que lhe dizia Eulália enquanto esteve a seu lado, que devemos revidar às ofensas com muito trabalho para que um dia cresçamos e fiquemos tão altos que nossos inimigos tenham que erguer a cabeça para nos ver.

Algumas vezes as afrontas foram tão severas que terminaram em violência, os outros garotos o espancaram e Vera, uma das meninas que andava no meio da turminha que costumava escarnece-lo, era que tomava as dores e ia defende-lo das agressões. Ela era uma das mais lindas garotas do colégio, mas diante de tamanha perseguição Pedrinho sequer percebia este detalhe em sua defensora.

— Poxa, mas porque vocês gostam de oprimir esse pobre coitado, deixem ele em paz!

— Qual é, sua branquela, deixa de se meter onde não tá sendo chamada!

— Bando de animais, queria ver se ele tivesse um pai pra defende-lo se iriam trata-lo dessa maneira

— É, mas acontece que ele não tem ninguém, é um cão sem dono! — Responde um deles

— É, ele é um órfão! Kkkkk — Acrescenta outro

— Bando de porcos imundos, não sei porque ainda ando com vocês! — Retrucou a adolescente retirando-se em seguida após ter ajudado o menino a se levantar

Devido ser escarnecido pelos colegas pela sua condição financeira e familiar Pedrinho tornou-se um menino reservado e solitário, sem amizades verdadeiras e intimidado com as críticas isolou-se de todos.

As vezes Vera tentava consolá-lo durante os intervalos do recreio, o acompanhava até sua casa na periferia e certa ocasião até conheceu Getúlio que gostou muito da adolescente de rosto empalidecido e cheio de sardas, mas educada e gentil. Além do que demonstrava muito afeto pelo garoto, o que já contava bastante.

Durante a ausência de Vera ele contava apenas com o apoio de Getúlio, Dona Diná e o inseparável amigo Pingo, o cão que ganhou de presente do padrasto e que não largava seu pé nem por um minuto, até quando ia a escola ele o aguardava nas imediações e o seguia de perto na volta para casa. Era o único que parecia compreender sua solidão.

— Vem Pingo, vamos!

O cão não trocava sua companhia por nada e muitas vezes o ouvia com bastante atenção, girando o focinho e as orelhas como se entendesse de fato suas palavras.

— Não consigo entender porque as pessoas são tão más, Pingo, elas nos machucam só por pura maldade. Será que ser órfão é algo tão terrível assim ao ponto de me tratarem com tanto desprezo? — o animal mexia as orelhas pontudas como se lhe desse alguma resposta de confirmação positiva — bando de diabos, se meu pai não tivesse ido embora daria um jeito neles! Ah, meu amiguinho, pior que agora até mamãe me deixou, estou sozinho de vez

Suas conversas com o cão eram constantes, sabia desabafar suas frustrações com o animal mais que outros seres humanos, nem Getúlio conseguia fazê-lo se abrir sobre suas insatisfações na vida. Vera andou revelando ao idoso sobre os casos constantes de zombaria pelas quais o menino passava por parte de outros colegas de escola e isso muito o preocupou.

Apesar das diversas insistências para que dividisse com o padrasto suas inquietações Pedrinho preferia dialogar com Pingo, seu cão, talvez porque ele permanecia todo o tempo, sem interferir nas suas muitas confissões. Naquela tarde, debaixo do pé de jambeiro ele mais uma vez partilhava com o amigo suas tristezas.

— Mamãe foi a melhor pessoa do mundo, pois sempre me ouvia. Ela era assim como você, Pingo, sabia escutar e me dava conselhos. Você sabe ouvir minhas conversas, mas não pode me dar conselhos porque não sabe falar.

O vento soprava forte e os pingos de água começaram a cair, era a hora da tradicional chuva das três horas que no Norte nunca se atrasa.

— Vem Pingo, vamos procurar um lugar para nos abrigar, pois vai chover forte! — fez o convite ao cão que mesmo se não tivesse sido convidado lhe teria acompanhado — Vamos ficar aqui e esperar a tempestade!

Em poucos minutos o temporal cai sobre toda a cidade e da estreita janela do pequeno depósito que Getúlio construiu para guardar ferramentas.

Eulália usava com frequência enquanto esteve viva, ali ela colocava suas tralhas. Naquele final de semana Pedrinho e seu cachorro usaram o lugar para se abrigarem da chuva. Ele não passava de um menino, mas não tinha medo de morar sozinho naquele lugar, contando apenas com a companhia de seu animal.

Do Lado direito morava Dona Diná e do outro Dona Marluce, cuja filha às vezes ia em sua casa mexer no seu sexo. Ela desde nova já demonstrava não ter muito caráter e ao completar quinze anos saiu dando pra qualquer um que tivesse interesse. Aos onze de idade ele era do tipo avantajado e ela adorava acariciar seu membro que esticava feito um elástico. Fazia nele tudo que tinha vontade e viciou o moleque que passou a querer a brincadeira todo dia.

Como se tratava de um moleque tímido e recalcado as mães em redor nunca desconfiaram do que realmente acontecia dentro da casa e isso facilitava imensamente as traquinagens dos dois adolescentes. Dessa maneira Mariluce, filha da vizinha, foi quem deu início na vida sexual do pequeno Pedro, órfão de mãe e abandonado pelo pai a quem nunca conheceu.

Nos dias seguintes o menino continuou a ser incomodado pelos colegas do colégio apesar das muitas intervenções de Vera, o que levou o pequeno a se ausentar por várias semanas das aulas e os professores decidiram intervir na situação. Ele faltava as aulas, mas nenhum dos vizinhos percebia.

Ele vestia-se como de costume e ia em direção ao colégio, mas desviava-se do caminho, indo noutras direções sempre na companhia de seu cão, assim a vizinhança acreditava estar ele a participar regularmente dos seus estudos. Na parte da tarde ele retornava e depois de preparar algo para se alimentar ia para a feira ajudar Getúlio nas vendas na barraca de frutas.

Porém, Vera decidiu interferir e naquela manhã ela foi até sua casa e o incentivou a expor tudo ao padrasto, então foram ao encontro do idoso e a menina relatou a Seu Getúlio o que vinha acontecendo com o menino na escola, solicitando que alguma providencia fosse tomada a respeito.

No dia seguinte o idoso e Dona Ana foram até a diretoria comunicar os fatos à diretora da instituição que prometeu notificar os pais dos alunos em questão sobre o comportamento de seus filhos contra o pequeno Pedro, pois agiam de forma preconceituosa. Durante um tempo ele teve paz, as agressões pararam e lhe foi possível ser tratado com mais dignidade, entretanto um pouco tarde demais.

Por causa da vida difícil e das muitas perseguições sofridas pelos outros meninos, o preconceito e a vida solitária o adolescente passou a desejar procurar novos rumos e fez amizades erradas. Aos treze anos misturou-se com maus elementos que o viciaram em drogas e no álcool. Apesar das muitas tentativas das pessoas mais próximas que quiseram ajuda-lo, nada o deteve.

Por várias vezes ele foi pego roubando pelas redondezas na companhia de delinquentes e foi levado para o Instituto Casa, onde ali recebeu orientações de psicólogos e depois liberado como ordenava o Estatuto do Menor e Adolescente brasileiro. Aos quinze anos já havia se tornado o terror do bairro e o mais perigoso menor infrator de toda a periferia onde comandava o tráfico de entorpecentes e uma forte quadrilha de bandidos.

A antiga casa onde morou com sua mãe transformou-se no seu quartel general e sua fama de mal chegou longe a tal ponto de nem mesmo a polícia local ousar invadir seu território. No entanto, certa ocasião uma delegada da Polícia Federal de extrema ousadia decidiu encarar o criminoso mirim e colocar fim naquela decepcionante situação em que se encontravam as autoridades até então.

— Não é possível que nós, como representantes da sociedade que nos elegeu a defende-la fiquemos à mercê de um bandidinho de araque desses e curvamos nossas cabeças diante de seus ditames violentos e ameaçadores. Portanto, recebi do mais alto comando a permissão para formar uma força tarefa para invadirmos aquele ninho de pulgas e exterminar de vez com tamanha ousadia por parte daqueles infames. Ordeno que sejam criadas dez equipes de vinte homens cada e se armem até os dentes com o melhor armamento que estiver disponível e se inicie a missão imediatamente!

— Sim senhora! — Respondeu prontamente um dos comandados

— Quero somente os melhores nessa missão, nada de principiantes nem quem não tenha experiência no assunto!

— Pode deixar, delegada!

Angelina Flores era uma mulher dinâmica em seus compromissos como policial, dinâmica, corajosa ao máximo e sua tenacidade impunha respeito diante de seus subalternos e colegas de profissão. Naquela manhã de segunda-feira, enquanto dava início à preparação de um pelotão de combate a fim de enfrentar um dos mais temidos traficantes da área periférica da cidade de Belém do Pará, localizada na região Norte do país, sabia que aquela não seria uma tarefa fácil, porém, sua perspicácia não a deixava esmorecer.

Enquanto o plano de ataque era elaborado dentro das dependências da Polícia Federal na capital paraense na favela, Pedro, agora um temido traficante, foi notificado pela sua equipe de informantes que ele inteligentemente infiltrou dentro das diversas áreas de atuação policial no intuito de estar sempre a par das novidades contra sua pessoa e seu reino criminoso, ficou ciente sobre tudo o que planejavam as autoridades.

— ...E eles pretendem invadir a área na sexta pela madrugada, enquanto ainda muitos dormem, na intenção de nos pegar de surpresa

— Bando de imbecis, e desde quando os olheiros do crime dormem?

— Kkkkk, são uns otários mesmo — Acrescentou um dos bandidos.

— Bem, valeu pela informação, Leandro, agora volte e continue por lá na surdina, não deixe de nos deixar cientes de qualquer mudança de planos deles e tome cuidado, não venha aqui pessoalmente, nos escreva pelo aplicativo de mensagem como havíamos combinado, pois pode estar sendo seguido

— Tá certo, chefe, foi mal!

Estaremos preparados para encarar esse delegado de merda!

— Não é ele, chefe, é ela!

— Como que é, tá me dizendo que quem ousou desmantelar meu comércio de drogas aqui na favela é a porra de uma bocetuda?

— Isso mesmo, chefe!

— Mas que ousadia dessa vadia, vou ter o maior prazer de pegar essa puta safada com vida e revirar ela pelo avesso até que aprenda a me respeitar!

— Kkkkk, essa tá ferrada! — Acrescentou outro dos criminosos por conhecer a fama do traficante em castigar duramente seus oponentes.

— Agora vamos agir, pessoal, reúnam todo o nosso pessoal e deixem eles a par do que está por vir, passem a informação aos olheiros em toda a baixada e também aos que se encontram em atividade na distribuição de drogas pela cidade. Não deixem ninguém desavisado!

— Pode deixar, cuidarei pessoalmente disso — Diz o gerente

Cristiano era o gerente do tráfico em toda a periferia e nos quatro cantos da capital paraense, sua maldade era tamanha que Pedro o colocou como seu braço direito no comando de seu império criminoso. Depois daquela conversa todos os integrantes da maior quadrilha de bandidos do Estado ficaram a postos para qualquer movimento dos policiais que até aquele momento acreditavam poder pegá-los de surpresa.

A delegada da Polícia Federal, Angelina Flores, enganava-se pela ao pensar que pelo fato de estar enfrentando um adolescente teria a capacidade de surpreendê-lo em seu próprio domicílio. Mesmo com pouca idade Pedro se transformou num ágil líder do crime após ter morto aleijadinho, o maior e mais temido traficante da região cujo poder de comando cobria todo o Estado paraense.

Sua morte se deu depois de um enorme confronto contra os homens do adolescente que somavam o dobro daqueles que faziam a proteção do então comandante do tráfico, levando os que restaram e demais líderes de facções a respeitá-lo e seguirem suas ordens. Depois de ter sido informada pela inteligência da PF sobre quem de fato era aquele menino a quem pretendia confrontar em combate a delegada suou frio e pela primeira vez sentiu um calafrio que iniciou no tronco de sua coluna vertebral e foi até o último fio de seus cabelos na cabeça.

Principalmente ao ouvir, daquele que lia toda a ficha do criminoso, todos os detalhes de seus muitos crimes praticados contra seus inimigos. O mais terrível foi aquele que o levou a queimar vivo seis de seus oponentes, isso depois de tê-los torturado até que se arrependessem da ousadia de confrontá-lo.

Segundo as informações obtidas pela inteligência da PF, “O Caveira Vermelha”, como ficou conhecido por suas práticas violentas e impiedosas, teria arrancado a sangue frio todas as unhas dos pés e mãos dos pobres diabos, fazendo uso de um alicate. Em seguida cortou à faca suas orelhas, marcou suas nádegas com um ferro em brasa, colocando as iniciais “OCV” que faziam referência ao seu codinome no crime e por fim mandou que os amarrassem num poste de madeira, queimando-os vivos em seguida.

— Minha nossa, que ser humano faria isso com seus semelhantes?

— “O Caveira Vermelha” fez, senhora

— Esse mal elemento precisa ser detido o mais rápido possível! — Acrescentou o vice delegado

— E será, Ricardo, pode ter certeza disso! De agora em diante essa será minha maior prioridade como delegada

— Gostaria de lhe informar que já estamos com as equipes todas em prontidão para executarmos a missão, aguardamos suas ordens

— Perfeitamente, então nesse final de semana invadiremos aquele covil de criminosos como planejado

— Sim, senhora

A semana parecia passar lentamente e durante todo o tempo Angelina sentia-se angustiada por imaginar o imenso desafio que a aguardava. Os seis homens torturados e queimados vivos pelo bandido eram todos agentes da Polícia Federal que se infiltraram em sua facção no intuito de obter informações sobre suas ações e repassar a seus superiores, a fim de que dessa maneira eles pudessem traçar um plano de invasão no comando central do tráfico e prender o meliante.

Ela perguntava-se sobre as possibilidades de obter êxito naquela missão quase impossível, visto que seu adversário parecia possuir poder ilimitado sobre todos os outros chefes do tráfico em todo o Estado e a quantidade de seus comandados era cinco vezes maior que os da PF. Era noite e a delegada conversava com seu assistente pelo celular sobre a difícil tarefa que iriam enfrentar.

— Não vai ser nada fácil, Ricardo, esse elemento não é um bandidinho qualquer

— Certamente que não, Delegada, esse aí vai dar trabalho

— Mas nós, também, não usamos estes distintivos à toa!

— Concordo plenamente com a senhora, não vamos nos acovardar!

— Daqui a dois dias veremos quem é quem depois do confronto

— Como lhe falei, todas as equipes já se encontram a postos

— Ótimo, agora é só aguardara hora de agirmos

— Já recebemos a liberação do Comando?

— Sim, tudo está em ordem

— Ok, senhora, então só nos resta espera a hora de iniciarmos a ação

— Isso mesmo, Ricardo, boa noite

— Durma bem delegada

Apesar do que desejava o amigo e assistente foi-lhe impossível ter um sono tranquilo naquela noite diante de tamanha expectativa. Angelina temia não apenas por sua própria vida, mas também pela dos seus liderados. Duzentos agentes, entre homens e mulheres bem treinados e armados até os dentes iriam acompanha-la naquela missão suicida, ela sentia o calafrio tomar conta de seu corpo todas vezes que pensava nisso.

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