CAPÍTULO 2

Kira              

Eu ainda não consigo acreditar que consegui, realmente consegui sair daquele inferno, a gargalhada sai da minha boca mas o medo daquele maldito me achar ainda corrói dentro de mim, eu sei que aquele bastardo maldito não vai descansar até me ver morta, então preciso "morrer" para ele.

Após falar com a Ellen eu soube que era necessário, preciso forjar minha morte de qualquer forma, ou ele jamais desistirá, ela disse que ele falou, eu era só dele e de mais ninguém, se isso acontecesse ele preferia me ver morta, não importa o que eu faça ou onde me esconda, se a Kira não morrer ele não descansará.

Assim que cheguei em Washington o medo me abandonou um pouco mais, ainda está na parte da manhã então preciso procurar o apartamento que a Ellen me disse, mas ela me contou que o Stefan trabalha de dia, não haverá ninguém lá para me atender.

Sendo assim resolvi fazer algumas coisas para eu me ocultar aqui, começando pelo cabelo, amo minhas madeixas negras, mas não posso ser a Kira que o Ivan conhece, assim será muito fácil, preciso mudar de visual. 

Entre arranha-céus e prédios enormes ando pela cidade, não estou perdida como pensei que ficaria, as placas das ruas me ajudam bastante, além do GPS no celular que a Ellen me deu, ela comprou com o dinheiro das jóias, é moderno o bastante para me ajudar.

Olhando a rua cheia de carros até que gosto de estar a pé, não estou presa nesse trânsito maluco, após cuidar do meu cabelo preciso de roupas novas e uma nova identidade, mas isso não sei onde achar, preciso pedir ajuda do Stefan, ele deve saber algum lugar que faça isso aqui, fico tão concentrada pensando que acabo tropeçando. 

“Sinto muito, eu acabei tropeçando e…” olho para cima e paro de falar na hora.

Um homem, alto e forte parado a minha frente seu queixo bem esculpido, seus olhos azuis me encarando com algo que não compreendo. Mas acima de tudo, ele exala perigo, o mesmo perigo que Ivan exalava, não o conheço, entretanto sinto que ele me trará problemas se eu não me afastar. Para qualquer mulher que saiba o que é um bom pedaço de homem.

“Você está bem?” ele pergunta e então percebo que ele segurou em um de meus braços por reflexo quando eu esbarrei nele e quase cai.

“Sim, sim…” puxo o braço do seu aperto bruscamente, Ivan por vezes me segurava assim quando queria me machucar. “Desculpa mesmo.” olho ao redor vendo um modo de fugir rápido daqui.

“Tudo bem.” ele fala em um rosnado baixo, preciso ficar longe de homens desse tipo.

“Melhor eu ir…” olho ao redor vendo seguranças se aproximarem, merda, eu acabei de sair de um lugar com muitos desses. 

“Quer ajuda? Parece perdida.” o pior é quando fingem ser gentis.

“Não precisa, eu me viro.” falo com uma expressão dura, me viro e sigo meu caminho.

Solto um suspiro quando tomo distância da sua presença intimidadora, ele me lembra do Ivan, um porte sofisticado, mas seus olhos, lá dentro que se esconde a real pessoa, não vou ficar para descobrir o que esse tem a esconder.

Acho um salão bem profissional, nisso não posso economizar porque necessito de algo realmente bom para me ocultar, preciso de lentes de outra cor, verde talvez, verde combina bastante com loiro.

Passo pela porta chique fazendo o sininho soar, vejo mulheres de idade, jovens e algumas crianças, todas fazendo a unha, conversando entre si, lendo revistas de moda como se o mundo fosse só isso, compras e salão, se elas soubessem. 

“Olá, bem vinda ao Chloé Salon! Em que posso ajudar?” uma mulher loira alta fala toda animada se aproximando. 

“Quero uma mudança completa.” falo desviando de alguns olhares feios pelos meus trajes. 

“Pode pagar por isso? Desculpe, não é preconceito, mas as coisas aqui são caras.” devo parecer uma sem teto vestida assim perto delas. Se eu tivesse com minhas roupas de socialite elas iam ver. 

“Isso é o bastante?” jogo um maço com várias notas na sua mão lhe assustando. 

“Si-sim…” ela fala ainda embasbacada. “Uma mudança completa aqui gente! Mãos à obra!”

O que o dinheiro não faz, se eu não mostrasse meu dinheiro elas iam me tratar feito lixo, odeio esse tipo de pessoa, convivi tempo o bastante com pessoas assim para criar ranço eterno, eu fazendo essa mudança sairei daqui o mais rápido possível.

Eles trabalham bem, na verdade, não generalizando os funcionários até que são gentis, mas o dono que geralmente gosta de pisar nos menos favorecidos, algumas horas depois finalmente posso ver o resultado. 

Posso afirmar que essa pessoa no espelho não é a mesma que entrou, a não ser claro por dentro, as marcas que jamais sairão do meu ser, mas assim, olhando por fora, outra pessoa, eu pedi que mudassem a cor do meu preto que sempre amei pelo loiro.

Não ficou mau, combinou com meus olhos azuis até, mas preciso mudar de cor dos olhos também, verde combina com loiro, os meus fios que eram um pouco abaixo do ombro agora estão na minha cintura, um aplique tão natural que parece ser meu de nascença, os esnobes são esnobes mas fazem um excelente trabalho. 

“Então querida, gostou?” a mulher que me atendeu fala. 

“Sim, está perfeito, quer dizer, perfeito.” sorrio pegando nos fios macios. 

“Satisfação garantida.” ela fala orgulhosa. 

“Sabe me dizer onde acho lentes de contato?” questiono pegando minhas coisas para sair. 

“Cinco lojas à frente querida.”

“Obrigada.” ando para a saída. 

“Quando precisar retocar o look sabe onde nos achar.” a ouço dizer enquanto saio. 

Talvez eu volte, ou não, mas agora sinto até um alívio, o Ivan procura uma mulher de cabelos negros curtos, eu sou loira, meu sorriso alarga tanto que sinto doer pela falta dele, eu não sorria assim há anos.

Chego na loja onde encontro as lentes, de diversas cores e jeitos, pego uma verde linda, quase transparente, combina com o loiro claro que estou, por via das dúvidas compro um óculos de grau.

Loja de gente rica é tudo fácil, eu mostrei o dinheiro e eles fizeram meu óculos na hora, não tive que esperar uma semana, no mínimo passei na frente de muitos, esperei um tempo porém nada tão ruim, até que meu grau não é tão forte.

E eles até perguntaram se eu preferia lentes de grau, mas não, quanto mais camuflagem melhor. Além das lentes verdes, comprei um óculos de grau com a armação preta, saindo de lá mais aliviada ainda, a cada hora que passa sou menos a Kira e mais outra pessoa, minha nova eu.

Agora a parte das roupas, algo nada estilo esposa da máfia, calças jeans, roupas de couro, sempre quis me vestir meio assim, quando assistia a filmes de motoqueiros ficava maravilhada, aquelas mulheres de couro, jaqueta, óculos escuro, bandana, botas e uma moto.

Isso, preciso de uma moto! Assim que comprar várias roupas vou direto a uma concessionária, cheia de sacolas mas vou, olho diversos modelos, confesso que não conheço muito de motos, até porque nasci e cresci no meio de homens cruéis que acham que as mulheres não merecem saber nada além de agradar seus homens, mas sei de uma que é linda e potente, nunca me esqueci desse nome. 

“Olá, boa tarde! Em que posso ajudá-la?” o vendedor se aproxima sorrindo largo. 

“Boa tarde, eu quero uma MTT Turbine Superbike Y2K.” falo simplesmente. 

“Perdão? A senhorita não quis dizer um conversível?” reviro os olhos.

“Não, eu disse uma MTT Turbine Superbike Y2K mesmo, você tem? Se não posso ir em outro lugar.” ergo uma sobrancelha, eu cruzaria os braços mas estou com as mãos ocupadas. 

“Temos sim... É que…”

“Que você supôs por eu ser uma mulher que prefere um conversível a uma moto, isso se chama preconceito.”

“Perdão, eu não quis…” 

“Quanto ela custa?” o interrompi sem paciência.

“185 mil dólares senhorita.” 

“Vou levar, me mostre as cores que tem.” ele arregala os olhos surpreso por eu nem titubear, mas logo se recompõe e me leva para os modelos. 

Vejo uma vermelha linda, mas chamaria atenção demais, uma azul marinho, não é muito minha cor favorita, então vejo a preta, discreta e perfeita. 

“Essa aqui está perfeita! Святое дерьмо* ela é linda.” passo a mão no banco e suspiro admirada. 

Puta merda*

“Vou dar entrada na papelada, pode ficar aí com a sua moto.” ele se afasta e sai. 

Por incrível que pareça eu sei andar de moto, quando papai não estava em casa mamãe deixava eu usar uma que tínhamos lá, era dele e não tão linda como essa mas é o mesmo conceito é claro, quando conheci essa beleza eu busquei ver como ela funcionava, sei tudo na teoria, já, já verei na prática.

Confesso que o gasto é extremo mas não me importo, sou livre e quero ter o que sempre quis, eu irei trabalhar de todo modo para me sustentar, mas ainda tenho diversas joias que trouxe comigo, Ivan jamais irá me encontrar então elas são minhas por direito, e ele ainda fica em débito por tudo que me tirou na vida.

Após pagar a vista, assinar todos os papéis e tudo mais eu pude enfim sair da concessionária com minha linda moto, a moto dos sonhos o dia já passou então preciso ir rumo ao apartamento que a Ellen morava com o Stefan e ver no que isso vai dar, ela disse que ia dizer a ele sobre mim, o quão ele sabe é o problema.

Assim que encontro o endereço paro na frente do prédio e entro, o prédio não é chique demais mas é aconchegante, olho no papel o número do quarto e aperto o andar no elevador, segundos depois estou na frente da porta em questão, mas hesito na porta. 

“Não consigo…” bufo frustrada. “Melhor eu ir embora.” me viro para sair mas paro abruptamente. 

“Oi?” congelo no lugar, merda, ele abriu a porta. “Está tudo bem?”

Me viro e olho, meus olhos vão de encontro aos seus castanhos quase cor de mel, num tom bem lindo, seus cabelos castanhos combinando com a pele clara e os músculos salientes na blusa social meio aberta mostrando o início do peitoral. 

“Não... Quer dizer, sim…” mordo o lábio nervosa. 

“É impressão minha ou você desistiu de bater na minha porta?” ele aponta com o polegar na direção da mesma. Olho por reflexo e prendo a respiração. 

“Talvez?” volto a olhar e o vejo sorrindo. “Quê?” falo confusa. 

“Você é fofa.” gargalho alto, já me chamaram de muita coisa, e uma delas não foi fofa mesmo. “Qual a graça?”

“Essa cantada é bem batata.” falo ainda risonha. 

“Mas não foi uma cantada.” ele soa sincero. 

“Esquece.” melhor não deixar uma primeira impressão ruim de mim. “Sou a Kira…”

“A amiga da Ellen.” ele fala antes que eu termine. 

“Sim.” falo apreensiva. 

“Por que estava indo embora se vinha para cá?” ele olha confuso. 

“É complicado... Não sei o que ela disse sobre mim mas... Eu desisti de complicar sua vida como já fiz com a dela.” falo sincera. 

“Entendo, não te reconheci porque a Ellen disse que era uma morena e não loira. Entra, vamos conversar melhor e após isso você decide o que faz.” lhe olho um tempo, ele soa sincero, não vi isso nos olhos dos homens que já conheci. Só vi maldade, frieza, rancor, raiva, mas sinceridade beirando ternura? Não mesmo. “Está tudo bem, juro!”

“Ok.” assinto passando pela porta seguida por ele. 

Olho ao redor vendo o interior do apartamento, é muito lindo, cores claras de cinza com branco, móveis bem modernos, me lembra aqueles filmes futuristas mas nada do futuro, uma cozinha aberta com a sala, um pequeno corredor que deve levar aos quartos.

“Quer beber algo? Uma água?” percebo que ele tenta dissipar a tensão. 

“Não, obrigada.” nego ainda parada no meu lugar. 

“Deixa suas coisas aí, senta aqui.” após alguns segundos ponderando deixo minhas compras e minha bolsa perto da poltrona branca da sala e sento no sofá grande onde ele está mas em uma distância considerável. 

“Lindo apartamento.” falo sem saber como começar uma conversa, nunca precisei muito disso, minha experiência masculina é quase nula nesse aspecto.

“Obrigado.” o silêncio comanda até que ele volta a falar. “A Ellen me disse sobre você.”

“O que ela disse exatamente?” falo apreensiva. 

“Bem, você é uma amiga dela, Kira, que precisou sair de onde morava por causa de um casamento abusivo e o cara ainda te persegue. Então suponho que essa mudança de cabelo venha a ser por isso.” ela foi evasiva mas é basicamente isso. 

“Sim, esse é o resumo da minha vida.” suspiro, não chega nem à metade. 

“Por que não o denunciou? Ou denúncia?” juro que me seguro para não rir, mas ele não sabe, leigo demais. 

“Ele é quase a lei onde eu morava, ouça Stefan, quanto menos você souber melhor para você. Entendo se não quiser se envolver, é perigoso e você corre risco de vida se ele me achar aqui.”

“Não ligo, Ellen me disse que você precisa de ajuda, então vou ajudar.”

“Mesmo correndo risco de vida?” falo surpresa. 

“Sim, agora me diga como posso ajudar?” fico estática um tempo assimilando, homem algum já quis me ajudar um dia. 

“Bem... Eu... Eu preciso de uma nova identidade, se me ajudar com isso será muito, muito bom, depois preciso trabalhar, sem falar na moradia. Eu até poderia ficar sozinha em algum lugar, mas a Ellen disse ser melhor aqui e quando meu dinheiro acabar precisarei de um amigo por perto.”

“Isso é fácil, sei quem pode te dar todas as documentações verdadeiras daqui, tudo que precisar, trabalho já tenho algo em mente, você vai gostar. Morar aqui você pode, não precisa de aluguel, é meu mesmo, mas pode ajudar na casa, as vezes passo muito tempo no trabalho e fica uma zona, ao menos até eu conseguir um trabalho para você, preciso falar com uma pessoa antes.”

“Claro, isso seria maravilhoso, digo, eu não me importo em ajudar, ocupa minha mente.” sorrio fraco. “Posso ajudar nas despesas também, eu sou bem útil, juro.” falo meio frenética. 

“Imagino que sim, não se preocupe, se alguém te disse o contrário é um completo babaca.” engulo em seco com seu comentário, Ivan sempre disse que não sirvo para nada, nem esposa troféu, minha vagina sim lhe servia um pouco. 

“Então... Onde fica meu quarto? Não quero ser rude mas estou esgotada, passei o dia correndo para comprar roupas, mudar o visual e minha moto.” não sei porque mas ele está me fazendo falar demais, acho que é esse jeito doce e tranquilo dele. 

“Claro, claro, imagino... Eu te deixo lá e você descansa, amanhã vou precisar ir na empresa, mas peço para sair cedo para te levar a pessoa que fará seus documentos.”

“Não quero incomodar, juro, posso esperar.” 

“Não será incômodo, e quanto mais rápido melhor para poder trabalhar.” ele sorri meigo indo pelo corredor. 

Fico parada olhando ao redor e absorvendo, isso é tão emocionante, me sinto como um pássaro batendo asas pela primeira vez, só espero ser um dos que voam bem e rápido e não dos que cai e quebra a asa ou morre.

“Você vem?” me assusto com ele de volta, não o segui, ele deve pensar que sou insana. 

“Claro.” sorrio fraco e pego minhas coisas indo para perto dele. 

Entro no quarto vazio de coisas pessoais mas cheio de móveis, tem um mesclado de lilás e branco, deve ser de quando a Ellen morava aqui. 

“Ainda está com a decoração da Ellen, não mudei o quarto mas se quiser mudar algo fique a vontade.” entramos juntos. “Os móveis que ela deixou são antigos, porém conservados, uma diarista vem pelo menos duas vezes na semana e limpa a casa toda.” 

“Não tem problema, o quarto é ótimo.” realmente, talvez eu dê um toque meu já que nunca pude ter nada completamente escolhido por mim na vida, mas num modo geral está perfeito. 

“Que bom, banheiro ali.” ele aponta para a porta. “Se precisar de algo só me chamar, independente do que seja.”

“Não se preocupe, eu me viro.” ele não sabe o quanto isso é verdade. 

“Certo... Hum…” ele olha ao redor meio deslocado. 

“Queria saber uma coisa.” falo no impulso quando ele ia embora mas ele para e me olha. 

“O quê?”

“Por que está me ajudando? Digo, sou uma estranha que teve uma vida ruim, há muitas por aí. Só porque sua amiga disse para me ajudar não é uma desculpa bem válida, eu não sei se faria isso.” falo direta e sincera. 

“Você é sempre assim?” ele fala sorrindo. 

“Assim como?” olho confusa. 

“Direta e sincera?”

“Eu só…” ele me interrompe. 

“Porque você tem uma alma boa, eu vi isso dentro do seu olhar quando a vi na porta, e senti que precisa de um ombro amigo, aqueles sem explicação e que apenas ajudam.” engulo o nó na garganta, minha mãe era assim, sinto tanto a falta dela. 

“Obrigada, de verdade.” mordo o lábio contendo a emoção. 

“Boa noite Kira.” ele sorri e acena saindo. 

“Boa noite…” sorrio enquanto ele fecha a porta. 

Me viro para o meu quarto e suspiro alto, irei dormir em um cama macia sem um homem asqueroso me estuprando nela antes, porque mesmo casado se um dos parceiros não quiser manter relação é considerado estupro, o meu fui forçada até a casar. Mas isso já passou, eu preciso seguir minha vida, sempre em frente, mamãe estaria sorrindo agora se ela pudesse me ver, sei que estaria, enfim consegui o que nós queríamos anos atrás, mas lhe foi negado. 

“Isso é por você Mama, ainda é só o começo, eu prometo.”

Com um sorriso no rosto arrumo minhas poucas coisas no meu mais novo quarto e descanso.

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