Família

                               3♡

    QUANDO CHEGUEI EM CASA, a minha mãe mal me deixou entrar e já foi perguntando se eu passei na entrevista. Ela era tão inconveniente às vezes. Falei apenas que iria aguardar a ligação. No entanto, enquanto seguia para o meu quarto, pude escutá-la gripar:

 — Do jeito que você é, provavelmente não vai conseguir a vaga.

  Ao ouvir isso, bati com força a porta do quarto para ela saber que eu fiquei chateada com as suas palavras.

 Minha mãe continuou falando mais algumas coisas, porém não dei a mínima atenção. Não sabia o porquê dela ser sempre rude comigo.

 Tirei o blazer, os sapatos e me sentei na minha cama de solteiro, um pouco desanimada.  

Fiquei pensando em tudo que eu já vivi na minha vida e o quanto ela mudou desde que papai morreu. Ele era tudo para mim. Era o meu amigo, meu companheiro de brincadeiras. Com ele eu me sentia amada, sem ele eu me sentia rejeitada. Contra minha vontade, uma lágrima solitária desceu pela minha face enquanto eu lembrava dos momentos bons que vivi ao lado dele, seu João.

 — Papai, por que você me deixou? Eu preciso tanto de você. Mamãe não me ama, ela apenas me tolera por eu ser sua filha. 

 O buraco que se abriu em meu peito quando ele partiu nunca se fechou.

Sinto saudade dele todos os dias. É muito difícil querer a presença de alguém que não pode mais voltar. Era tão difícil para mim viver a vida.

 Agarrei o pingente em formato de cruz com uma correntinha de aço que ele me deu e que uso desde então. Foi o seu último presente para mim, porque depois de três meses ele se foi, deixando-me sozinha nesse mundo grande e cruel. Desde então me sinto como um barco perdido, sem rumo no grande oceano da vida.

  Às vezes eu me perguntava qual o sentido da minha vida neste mundo. Sinto-me inútil. Quando o papai era vivo me fazia sentir especial. Ele sempre me chamava de "presente do Papai".

Maldita seja tu, ó saudade que arde em meu coração! 

 Levei um susto quando de repente a porta do meu quarto foi aberta de supetão.

 — Tia Lice! Você conseguiu o emprego? Conseguiu? Conseguiu? — Perguntou Elias na sua euforia infantil. Ele era um garotinho de quatro anos com grandes olhos verdes e pele negra. Era a criança mais linda que eu já vi! Elias era filho da minha irmã caçula, Amanda, que tinha vinte e um anos, dois anos mais nova que eu.

 Amanda engravidou ainda no colégio, e lembro-me como se fosse hoje o dia que ela contou para nossa mãe. Ela não reagiu nada bem, principalmente porque minha irmã nunca falou quem era o pai de Elias. Eu desconfiava que fosse filho de um homem casado ou até mesmo do seu professor do colégio, que ela sempre elogiou. Mas nunca falei sobre minhas desconfianças. Se Amanda queria manter isso em segredo, quem sou eu para revelar? 

 Mamãe, por outro lado, ficou furiosa com ela a ponto de ficar uma semana sem falar com a própria filha. Até que tudo voltou ao normal e as duas se entenderam. 

 Mamãe e Amanda sempre foram bastante próximas. Qualquer coisa que Amanda fazia, mamãe passava a mão por cima, sempre era relevante. Se fosse comigo provavelmente eu estaria no olho da rua. Nunca que ela me aceitaria em casa como mãe solteira. Ela dizia que como eu era a mais velha tenho que dar bons exemplos. O que era completamente uma besteira.

 — Eu não sei ainda. A senhora que me entrevistou falou que ligaria para mim. — Sorrio para meu sobrinho de forma sincera. Eu sou apaixonada por ele. 

 Elias me olhou com os olhos estreitos e colocou o seu dedo indicador perto da boca, ficando com expressão pensativa por alguns segundos, parecendo gente grande. Senti vontade de apertar suas bochechas, mas me segurei pois ele detesta quando eu fazia isso.

 — Então, você não vai poder comprar a bicicleta que me prometeu? — Perguntou com um ar de frustração.

 — É claro que eu vou! Por algum acaso já prometi algo e não cumpri, pra você? — Encarei colocando uma das minhas mãos na cintura. 

 Eu sabia a resposta que ele iria me dar, porque eu nunca prometo algo que não poderia cumprir para ele. Essa era uma regra que eu tinha, sei como é frustrante para uma criança acreditar em promessas falsas. Se eu prometo, eu tenho que cumprir, custe o que custar e leve o tempo que levar.

 — Não, mas como você vai me dar se não tem emprego? Eu só quero a bicicleta e ela é cara. — Ele veio para o meu colo e eu lhe dei vários beijinhos no pescoço alternando entre um lado e outro, provocando nele um sorriso fofo.

 — Se ela não me ligar eu arranjo outro emprego.

 — Você promete de dedinho? — Elias levantou o seu dedinho mindinho para mim, e eu entrelaça o meu no dele.

 — Eu prometo de dedinho. Agora vá tomar um banho que você está fedendo à gambá — Eu o coloquei no chão, lhe dei uma palmada no seu bumbum o fazendo rir enquanto corria para o banho.

 A conversa com Elias me fez lembrar que eu precisava conhecer o meu possível patrão. Levantei e fui até o meu guarda-roupa de madeira, onde estava o notebook antigo.

Voltei para cama e sentei novamente, agora de pernas cruzadas para apoiá-lo em cima delas. Escrevi o nome do Sr. Liu Lincoln, na barra do pesquisador da G****e e espero carregar por alguns segundos. Quando vi a foto que apareceu, nem acreditei no que via.

 — Que louco! — Falo sem acreditar. 

 Li a descrição abaixo para saber se realmente era ele mesmo, ao confirmar fiquei embasbacado, de queixo caído mesmo, porém pensando melhor, não poderia ser diferente já que a sua mãe era muito bonita. 

Olhei cada foto que o G****e me disponibilizou e, em todas eu percebi que ele nunca encarava diretamente para câmera.

Sua pele era clara, tão branca que eu acho que conseguia ver algumas veias em seu rosto. Era tão limpa quanto um bumbum de neném. Sorrio com a comparação infantil que fiz: Seus cabelos são loiros médios, lábios um pouco cheios são rosados, nariz era reto e as sobrancelhas grossas, bem masculinas. Seus olhos, ah, me lembram pedras verdes de quartzo bruto! 

 Ele tinha uma beleza encantadora, que me deixou fascinada.

 — Que cara de boba é essa? 

   Levei um susto ao escutar a voz de minha irmã no meu quarto. 

Quando foi que ela entrou? 

 — Ei! Não bate antes, não? — Perguntei fechando o notebook apressadamente. Não queria que ela soubesse a causa da minha cara de boba.

 — Eu bati, mas você estava tão hipnotizado na tela que não escutou. O que você estava vendo para estar com essa cara de bobalhona? — Perguntou se sentando na ponta da cama.

 — Não bateu, não. E eu não tava com cara de bobalhona. Você vê cada coisa...

 — Como não? Eu vi com os meus próprios olhos, você estava olhando para a tela assim. — Ela faz a cara mais ridícula que eu já vi me fazendo cair na risada, ela me acompanhou.

 — Para, eu não estava assim. — a empurrei no ombro.

 Ela pegou o notebook tão de repente que não deu tempo de impedi-la. Fiquei tensa na hora. Minha irmã era tão intrometida, isso era uma das coisas que mais me irritava nela.

  Por que ela não pode simplesmente tomar conta da sua própria vida como eu fazia?

 — Quem é esse gostoso aqui na foto? — Coloquei minhas duas mãos no rosto me sentindo ridícula e quando voltei a olhar para a minha irmã ela está com uma cara.... 

 Amanda tinha um vocabulário muito vulgar. Tudo bem, ele era muito atraente, encantador, mas chamá-lo de gostoso era-me bem ousado.

 — Se eu for chamada, é para ele que eu vou trabalhar. — Amanda fica de boca aberta com a informação. 

— Sério? — Confirmei com aceno de cabeça. 

— Nossa! Pelo menos motivação para você levantar todas as manhãs não vai faltar.

 — E você veio até o meu quarto para que mesmo? — perguntei mudar de assunto. 

 Ela colocou o notebook no mesmo lugar e se levantou. Eu logo o peguei de volta como se ele tivesse os meus maiores segredos.

 — Mamãe está chamando para almoçar — desse ela já saindo, mas parou bem no batente da porta do quarto e se virou para mim. — Ah, esteja preparada, pois nossa mãe com certeza vai cair em cima de você por causa do emprego que ainda não arrumou. — Revirei os olhos entediada. 

 Isso não era nenhuma novidade para mim, ela sempre vai fazer isso, nunca estará satisfeita com que eu faço.

 — Me conta uma novidade, Amanda. Sabe? Não entendo porque ela só faz pressão para me arrumar um emprego, enquanto você está aí, com um filho e sem nenhum emprego para sustentá-lo.

 Ela nem pensa duas vezes ao responder.

 — Essa é fácil: porque você maninha é a mais velha e tem que dar o exemplo. Ela acha que se você arrumar um emprego, eu tomo vergonha na cara e também arrumo um — Dito isso ela virou as costas e foi embora.

 Até parece que é só isso mesmo. Eu sabia que dona Damares pegava leve com a Amanda porque ela é a sua preferida. Sempre foi, desde pequena.

 Quando eu cheguei na pequena mesa de quatro lugares para almoçar, minha mãe veio para cima de mim cheia de perguntas irritantes. Se eu não estivesse com tanta fome teria voltado para o meu quarto no mesmo instante.

 — Poxa mãe! Tenha um pouco de fé em mim pelo menos uma vez na vida. — Ela me olhou e instalou a língua no céu da boca.

 — Fé? E minha fé vai te levar para onde menina? O que você tem que ter é interesse para arrumar um emprego. E se depender do seu interesse, não vai arrumar aqui nem na China. — Ela bradou com raiva. 

— E tem mais, eu não vou ficar sustentando preguiçosos a vida toda não. Vocês acham que essa aposentadoria que eu recebo é o quê? Mal dá para sustentar essa casa direito.

 Era sempre assim aqui nessa casa, cobrança e mais cobrança. Por isso que eu fui embora uma vez e parece que não vai demorar para eu fazer de novo. Eu queria viver em paz com ela, mas era impossível. Não dá! Minha mãe nunca vai mudar esse seu jeito arrogante.

 — Não se preocupe, eu vou arrumar um emprego, tá bem? Só me deixa comer esse espaguete à bolonhesa saboroso em paz.

 A comida estava saborosa mesmo. Minha mãe sempre foi uma ótima cozinheira. Papai às vezes gostava de brincar com ela falando que só casou por causa da comida boa que ela fazia.

 — Não me preocupar? Essa é boa! Com a filha que eu tenho, como não vou me preocupar? Com a filha não, com as filhas, porque você também poderia trabalhar. — Ela apontou o dedo para Amanda acusando-a.

 — Ei! Sobrou para mim também, foi? A senhora sabe que eu estou fazendo curso. — Amanda se defendeu franzindo as sobrancelhas.

 Eu sabia qual curso que ela está fazendo... Só um cego não percebia que não tem curso nenhum!

 — Sobrou sim, não vou estar o tempo todo aqui para sustentar você e seu filho, Amanda. Um dia eu vou morrer e você tem que se virar sozinha. E você — agora estava falando comigo novamente — Vai lavar essa louça depois. Já que não conseguiu emprego até agora, faz algo útil em casa.

 Mamãe falando assim parecia que eu não fazia nada nessa casa, coisa que eu sempre faço, parece que ela não vê, ou se vê não dá valor. Mas eu já estava acostumada, aqui sempre era assim, e só iria acabar quando eu arrumar um emprego… Ou não.

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