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Capítulo 2 - Ver-O-Peso

 Lá existia o Ver-O-Peso, local onde Luís passou maior parte de sua adolescência e conheceu aquela que o adotou duas décadas atrás. O moribundo desceu a avenida, recostando-se ao meio fio para evitar ser atropelado pelos vários veículos que trafegavam em alta velocidade e tornava o ambiente perigoso demais para se movimentar.

 Dirigiu-se ao porto e do lado de fora da grade proteção podia observar os navios que ao longe permaneciam ancorados. Descarregavam em balsas as suas cargas, enquanto isso outros seguiam viagem rumo a diversos destinos.   Apesar de toda a confusão que obscurecia sua mente ainda era possível lembrar de suas origens, recordar seu passado e saber de onde veio.  Mesmo que através de lembranças confusas e repletas de pontos ilegíveis, o que lhe permitia naquele momento observar o infinito sobre as águas barrentas do extenso rio.

 E sentir saudades de casa, do velho pai pescador, da mãe dona de casa. Os outros dois irmãos que deixou para trás ao vir para a capital e nunca mais quis voltar a vê-los. Mesmo depois de ser adotado por Naomi e vivido como um príncipe. Herdeiro de incalculável fortuna em completo opróbrio derramava suas lágrimas pelo vazio que sentia dentro do peito.

 E por entender que se tornou impossível resgatar tudo o que deixou para trás. Sem família e amigos em quem pudesse se apoiar se sentia como uma sombra. Alguém que passava despercebida por onde quer que fosse, um inútil, um resto qualquer do que se joga fora. Prosseguiu a perambular pelas ruas, viu os feirantes e suas vendas repletas de clientes.

Eles escolhiam e compravam de tudo. Recordou os tempos em que chegou do interior, a bordo de um navio pesqueiro, e fez do lugar sua morada. A diferença era que antes estava na flor da idade, não passava de uma criança e uma chama de esperança que ardia dentro do coração e isso lhe fazia acreditar num amanhã promissor.  Entretanto, no presente amargo que se encontrava tudo tinha deixado de existir, seus sonhos mais intensos estavam desfeitos.

 Foram cancelados repentinamente sem que ele tivesse a chance de tentar evitar. Quem poderia ser responsabilizado pelo que aconteceu? Seria de Deus ou do Diabo a culpa pela maldita loucura que invadiu sua mente? Quem o amaldiçoou e transformando-lhe naquele estrupício ambulante? O que teria ele feito para merecer tamanho castigo? Talvez tenha sido amaldiçoado por fugir de casa naquele navio pesqueiro aos dez anos de idade e vindo morar na cidade grande sem ao menos se despedir de seus familiares.

Uma repreensão divina por ter agido tão insensivelmente para com quem realmente o amava como filho. e irmão. Sabe-se lá o real motivo, a verdade era que o mal lhe sobreveio e nada mais poderia ser feito para corrigir tamanha malignidade. Sempre com as mesmas roupas rotas e um saco de estopa encardido nos ombros seguia em frente.

 Vagando pelos caminhos da vida incerta que lhe restou. Pequenos barcos de pesca estavam ancorados no cais, traziam muitos peixes em seus interiores para abastecer o mercado. Vendiam tudo bem barato para os atravessadores que revendiam por um preço absurdo aos consumidores. Olhava de longe o que acontecia em redor, confuso pouco assimilava.

Observando o movimento frenético e a correria na feira, tanto dos feirantes como dos que efetuavam compras variadas, de acordo com suas necessidades. Ninguém percebia a presença do moribundo naquelas imediações e isso facilitava para que ele metesse a mão na saca de farinha do comerciante.

  E dessa maneira comesse um pouco, matando a fome e a saudade dos tempos passados. Quando podia saborear à vontade sem ter que pegar escondido. Frutas e legumes estavam espalhados pelo chão, alguns estragados e outros em perfeito estado que podiam ser aproveitados para consumo e as vezes era a única refeição diária. Logo adiante existia outro ponto cheio de mendigos semelhante a ele e outros espalhados pela cidade.  Era chamada de praça do relógio.

Devido um alto poste feito de concreto com um enorme relógio para orientar a população do horário. Enquanto trafegavam no centro comercial. Ao lado ficava a prefeitura, o comércio de cereais. Eram muitos peixes secos, e a distribuição de pescado fresco. Além da igreja da Sé, o Tribunal de Justiça e várias lojas de roupas e eletrodomésticos. O local era bem movimentado e visitado por pessoas de todas as classes sociais, até mesmo por turistas que apreciavam o forte do castelo.

 Uma atração turística dos tempos em que os paraenses travaram importantes batalhas contra invasores. Alguns canhões ainda estavam instalados no mesmo local. Onde os combatentes enfrentaram seus oponentes e saíram vitoriosos. E ali mesmo foi construído o quartel do comando da marinha mercante. 

Gostava de permanecer deitado sobre os duros bancos de cimento espalhados no espaço ou recostado no tronco de uma das grossas árvores de mangueiras centenárias plantadas em toda a extensão do lugar. Sobre os telhados das casas mais baixas se podia ver um vasto número de urubus. Que se preparavam como um exército pronto para atacar e se alimentar dos restos de peixes mortos. Eles faziam a limpeza do lixo lançado fora pelos pescadores.

Na margem seca do rio localizado na parte onde eram feitas todo tipo de desembarque. Também, haviam outros animais que também estavam em decomposição e serviam como alimento dos pássaros. De ninguém se estranhava até o escurecer, quando chegava à noite e cada um precisava de um canto para dormir.

 Ai a coisa ficava perigosa, quem não pertencia ao território demarcado pelos pedintes da área deveriam se retirar ou correriam o risco até mesmo de morte. Distante dali, a aproximadamente uns quinhentos metros, via-se a uma rua bastante espaçosa. Seguindo por ela, chegaria ao seu lugar de origem, onde certamente poderia descansar de seus labores. Desde o início já se via prédios importantes que mereciam a atenção de quem passasse. Do lado direito ficava o imponente quartel do Corpo de Bombeiros Militar do Pará Local onde se reuniam homens compromissados em salvar vidas.

Logo à frente deparava-se com a escola de marujos da Marinha do Brasil. Repleta de jovens aspirando alcançar altos postos neste seguimento das forças armadas do país. À direita da extensa rua, localizavam-se a Academia Paraense de Letras, palco do surgimento de muitos escritores de alta importância no cenário literário paraense.

 E bem lado ficava localizado o colégio Paes de Carvalho, local onde várias personalidades também estudaram. Bem como muitos dos atuais políticos, juízes, advogados, todas as demais notáveis personalidades públicas. E entre elas, também ele, Luís Gustavo.

Que concluiu ali seus estudos secundários e quase ingressou em três das mais cobiçadas faculdades da época. E, sem sombra de dúvida, garantiria seu lugar numa das cadeiras do cobiçado mundo literário. E com certeza, também um espaço meio às ilustres pessoas que se destacavam na sociedade. Na qual aprendeu a viver e admirar. Claro, caso não fosse mentalmente fraco ao ponto de enlouquecer, por não suportar a emoção da primeira de inúmeras outras vitórias que lhe eram merecidas.

 Apesar de sua imensa capacidade intelectual. No centro de tudo via-se mais uma das dezenas de praças espalhadas na grande cidade das mangueiras. A praça da bandeira possuía vários mastros com as três bandeiras do Estado, local das comemorações em datas festivas. No entanto, ao passar diante de tais lugares nada recordava. Eram poucas as vagas lembranças do que foi e de quem havia se tornado, seu mundo atual de resumia apenas num homem envelhecido pelo tempo que castigou sua aparência.

 Transformando-o naquele ser decadente, repugnante aos olhos de quem o via. Talvez no passado, caso as coisas tivessem seguido um rumo diferente, o admirassem por sua inteligência e formosura. Entretanto, visto que sua sorte se transformou em azar e o lançou no fundo do poço. Em constantes desalentos e o que restou foi viver como um cão sarnento, cuja imundície se percebia à distância. Seguia rumo ao seu lugar de repouso. 

Afinal já findava o dia e a escuridão da noite batia às portas. Precisava se apressar para não perder o ponto. Se não fosse esperto perderia o local de dormir para outro descamisado que porventura estivesse à procura de um canto onde recostar a cabeça. Seguiu pela estreita rua Ó de Almeida, sempre atento aos sinais antes de atravessar a ampla avenida, para finalmente chegar ao seu destino final.

Ainda que cruzar a travessa Riachuelo, lugar dos diversos pontos de prostituição que alojava todo o tipo de prostitutas e seus parceiros desprezíveis. Viciados, ladrões, assassinos e toda a ralé da cidade compareciam ali diuturnamente para saciarem seus mais vergonhosos instintos sexuais. Um verdadeiro foco de transmissão para as doenças sexualmente transmissíveis.

As prostitutas ficavam sentadas nas altas calçadas existentes em frente aos prostíbulos à espera dos clientes e na espreita daqueles que porventura passassem pela rua com menos de quatro metros de largura. Usando saias curtas ou shorts minúsculos, deixando suas vergonhas bem à vista para despertar o interesse dos homens. Elas eram ousadas ao ponto de se oferecerem para programas. E algumas delas iam mais além.

Se lançavam sobre aqueles que passavam, puxando pelas mãos qualquer indivíduo que dali se aproximasse, implorando para que pagassem por um momento de prazer.  Menos claro, um moribundo igual a ele que nada possuía para oferecer, nem mesmo boa aparência.

Sem levar em conta a imundície espalhada sobre seu corpo a bastante tempo sem tomar um bom banho. Suas unhas enormes, cheias de sujeiras, o odor catinguento do grude encerado pelo corpo sentia-se de longe. Os dentes apodrecidos por nunca serem escavados, seus longos cabelos grisalhos e cheios de piolhos. Eram tantos que escorriam até a barba crescida e amarelada. Cor causada pelo sarro extraído da fumaça expelida do fumo de um velho cachimbo.

 Nessas condições ele diariamente passava naquele antro de imoralidades despercebido, assim como os ratos de esgoto que hora por outra cruzavam os becos sem que alguém se desse a conta de que existissem.  Finalmente alcançou o ponto final da jornada. A avenida com pouco trânsito, todas as lojas e comércios de portas fechadas. No cruzamento o semáforo fechado pôde ser avançado pelos pedestres sem muita pressa, caia um fino sereno da chuva que sem dúvida vinha a caminho.

A praça deserta dava lugar aos marginais de plantão e suas maldades.  A disputa entre as densas trevas da noite que chegava e as luzes amareladas dos vários postes espalhados por todos os lados contribuía para o perigo. Os coretos estavam como de costume lotados de miseráveis deitados pelo chão sobre plásticos, jornais antigos ou papelões. Mas cada um sabia qual era seu espaço e o dele permanecia vazio até que chegasse.

 Estava bastante cansado da fadiga de mais uma labuta em busca de sobrevivência, não era fácil vencer as adversidades. Mesmo que vivendo como um bicho bruto, quase sem se dá conta da realidade em derredor.  Para ajudar na chegada do sono bebeu alguns goles da cachaça predileta que trazia sempre à mão.

 Ela era como a gasolina para um automóvel em movimento, se faltasse pararia o motor. Para os outros companheiros de convivência menos perturbados, seria possível suportar a pobreza e o desalento com a embriaguez. Estando constantemente embriagados para entorpecer a mente e lhes cegar momentaneamente o entendimento.

 Para ele, entretanto, que vivia em parte alheio a quase tudo do mundo real, a bebida forte servia apenas para manter as energias e relaxar o corpo cansado. O cérebro humano é uma obra prima da natureza que mesmo danificado ainda pode fazer muitas maravilhas, e de olhos fechados, caindo num sono profundo, o moribundo passou a sonhar. 

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