Sonhos

Kakaou despertou em meio ao tecido azulado, sentiu o toque do cobertor de pele que o envolvia, seus olhos abriram lentamente, olhando um pouco mais atento para o lugar onde estava e deu um pulo da cama gritando.

— Já é de dia!? A princesa!? 

Saiu correndo do quarto quase levando parte da porta com ele, e ele nem percebeu que não estava sozinho na cama, tentou alcançar o celeiro o mais rápido que pode na esperança da princesa ainda não ter saído.

Assim que chegou estava ofegante, olhou derrotado para o celeiro, o cavalo da princesa já não estava mais lá, um dragão que era o responsável pelo celeiro o olhou curioso e não pode deixar de avisar sobre as novas ordens para ele.

— Se eu fosse você, voltava agora mesmo de onde veio, a princesa já foi informada de que não temos escravos aqui, ela ficou muito triste por não terem dito nada antes, e de certa forma nós não sabíamos o que você era dela, agora que sabemos, volte para o lugar de onde veio, ou ... — o dragão em sua forma humana olhou para a pessoa que vinha na direção deles. —Ele já está vindo te buscar, boa sorte com as explicações. 

Sem dizer mais nenhuma palavra deixou Kakaou ali, desconcertado e sem saber o que fazer, até que sentiu uma mão em seu ombro.

— Vamos voltar? Me acordou sabia? — Novamente aquela voz grave que o assustava ecoou em seus ouvidos, ele sairia correndo se isso o ajudasse de alguma forma. 

— Desculpa... Força do hábito... — foi tudo o que Kakaou conseguiu dizer em forma de Murmurio. 

Deu meia volta e parou ao lado do dragão, sem dizer mais nenhuma palavra eles retornaram para o local de onde haviam saído. 

Era constrangedor andar ao lado daquele dragão, ele sentia como se tivesse uma fruta gigante em sua cabeça, todos olhavam, de maneira disfarçada, mas olhavam.

— Da próxima vez eu volto sozinho... — Resmungou irritado com a atenção que estava chamando.

— Da próxima vez continue dormindo, ainda não achei uma ocupação para você, e até que tenha sua própria moradia vai ficar na minha, sou o líder e você é a minha responsabilidade. — Falou no mesmo tom do mais novo, para não chamar atenção sobre o assunto tratado.

— Depois de semanas só lembrou que eu existo por causa de uma pedra brilhante. — rebateu se arrependendo no mesmo momento. 

— Cuidado com a boca, e foi culpa sua não falar nada, eu não sabia que queria sua liberdade, achei que estava aqui por gostar muito da princesa, não é minha culpa se não sabe falar. — Lion devolveu as palavras com um sorriso amarelo, queria manter o disfarce. 

— Não quero ir pra sua casa. — Falou mudando as expressões de seu rosto.

— Mas vai, pare de ser teimoso Kakaou, parece uma criança de colo, já te falei que estou te ajudando, agora melhore essa cara. 

Kakaou engoliu seco e mal sabia que a situação ficaria mais estranha do que já parecia. 

Lion achou graça na birra do mais novo, talvez fosse bom tentar fazer amizade com ele, afinal Kakaou parecia ser uma pessoa muito solitária.

Uma vez que estavam dentro da cabana novamente Lion, mostrou aonde deveria preparar os alimentos, a sala de visitas e abriu a porta do quarto.

— Volta a dormir, é muito cedo, você não tem absolutamente nada pra fazer, e eu vou dormir também, então vamos. — Tentou falar o mais brando possível.

— Mas... — Kakaou não ia falar o óbvio. 

Lion puxou uma esteira em bambú, com algodão por cima, e forrou com tecido, olhou para o mais novo com um sorriso satisfeito no rosto.

— Isso resolve seu problema? Vai descobrir que aqui somos descomplicados, pode deitar aí ou na cama, você escolhe.

Kakaou com receio de abusar da boa vontade do dragão se deitou na esteira, Lion, bateu uma mão na outra e as afastou, no mesmo instante o clima dentro do cômodo ficou ameno, e podia se dizer que tinha ficado até mais fresco. 

— Você é um dragão, deveria gostar do clima quente. — falou jogando uma coberta no corpo. 

— Você é um humano, não conseguiria ficar nessa esteira quente por muito tempo, e essa pequena mudança climática no quarto só afeta você, agora se sentir fome, tem algumas coisas já prontas na cozinha, se tiver vontade de responder ao chamado da natureza é aqui do lado, agora Kakaou, eu preciso de algumas horas, estou sem dormir a mais de dois dias. 

Kakaou sentiu na voz do dragão que ele estava cansado e que a sua presença era algo inusitado, ele ficou em silêncio e apenas concordou.

Não tinha tanto a ser feito, ele viu o dragão tirando as vestes de couro e jogando em seu corpo um tecido de algodão, não fez nenhum comentário e tentou não pensar em nada, ele virou de costas e tentou recuperar o sono. 

Dê certo modo ele não estava cansado, ele vivia cansado, sempre esteve em pé ao lado da princesa e agora ele tinha autorização para dormir o quanto pudesse. 

Ele adormeceu ali, e em seus sonhos, no mais absurdo que sua mente o levou ele se viu nas costas de um dragão negro, o animal tinha algumas escamas douradas e nas laterais escamas prateadas, ele voava serpenteando o céu cortando as nuvens, depois ainda nas costas do dragão ele chegava às terras de gelo. 

Os dragões de gelo não usavam a forma humana para se misturar, eles eram menores do que o dragão negro que estava com ele, outra vez no ar, voavam baixo e encontravam o oceano de Kanish, ele não podia acreditar que as sereias nadavam tentando acompanhar a velocidade do dragão.

Seus olhos ficaram imersos na luz do sol e agora essa mesma luz o acordava, uma pequena fresta na madeira fazia com que o sol o acordasse. 

Ele se levantou lentamente e tentou fazer o menos de barulho possível, foi para a sala de higiene, cuidou de suas necessidades, tomou um banho e voltou para o quarto, passou pelo cômodo nas pontas dos pés, seguiu para a cozinha onde se sentou ao lado do fogão a lenha e apreciou a comida feita pelo dragão.

— Hn, é estranho esses dragões gostam de cozinhar os alimentos, no castelo diziam que eles comiam carne humana ou animais ainda vivos, porém são mais sociáveis do que os dragões de fogo. 

Ele olhou pela janela, no quintal daquele dragão tinha um pequeno jardim, e ele nunca tinha reparado nesse detalhe.

— É a primeira vez que olho para as coisas ao meu redor... — seguia falando sozinho. — Dizem que não somos daqui, de onde será que viemos, e não seria melhor tirar os humanos daqui, assim eles teriam o lugar apenas para eles. 

Mastigava a comida a sua frente com certa lentidão, queria apreciar o sabor de cada alimento ali a sua frente, era também a primeira vez que se sentava para comer, mesmo ali ele ainda se comportava como um servo fiel, se perguntou em como a princesa estaria se virando sem ele do lado. 

Assim que terminou de comer, pegou tudo o que tinha sujado, levou para o lado de fora, com o auxílio de um pano áspero foi limpando as coisas, lavando com água em seguida. 

Tinha uma mistura de gordura que era usada para limpar as coisas, ele usou para lavar adequadamente os recipientes as tigelas e os pratos, tudo ali era feito de barro cozido. 

Assim que terminou voltou para a cozinha onde guardou os vasilhames e talheres de madeira no local de onde tinha tirado.

Ele até pensou em sair e andar pelo lugar como um homem livre, mas a ideia de ficar o resto do dia deitado, lhe fez borboletas na barriga, ele era livre pra sair, e principalmente para ficar ali e dormir, com sorte voltaria ao seu sonho mágico, e talvez pudesse antes de dormir fazer uma história em sua cabeça, uma com começo meio e fim. 

Ele nem ao menos conseguiu dormir novamente, ficou ali criando sua história, sendo assustado pelos roncos do dragão, a cada ronco que o dragão dava uma fumaça saia de suas narinas.

"Meu medo é ele sonhar que está no meio de uma batalha e sair tacando fogo em tudo." — pensou e acabou achando graça em seu pensamento. 

Faltava no mínimo umas duas horas para o sol se pôr, quando o dragão finalmente acordou, ele ficou de olhos fechados tentando não pensar em nada, viu o dragão ir a sala de higiene pessoal, depois para a cozinha, ficou ali quietinho, e evitou os pensamentos também, quando se deu conta acabou cochilando. 

O dragão não o acordou, deixou que permanecesse ali, saiu de sua cabana e foi para o centro da ilha onde deu algumas ordens.

— A princesa não tem uma ocupação, e nem deveria ter, o pai dela a mandou como prova de boa vontade e de paz, ou cegamos a família toda, contudo quem trabalhar pra ela vai receber em moedas de ouro, assim como qualquer trabalho nessa ilha, por favor sejam razoáveis na hora de atender aos pedidos da jovem, ela não precisa que vocês a vistam, basta colocar a roupa ao lado, entenderam? — Lion falava com um grupo específico, o grupo que atenderia aos pedidos da princesa, agora que ele tinha aposentado Kakaou. 

— Senhor, teremos pausas? — uma mulher inqueriu, não tinha linhagem de dragão era apenas uma humana.

— Para humanos sim, e para a segurança da princesa, ela será atendida por humanos, os dragões irão apenas preparar a comida, vamos ser diretos aqui, ela não é como nós, então vai demorar a se acostumar com a rotina, ouvi dizer que a única coisa que ela sabe fazer com perfeição é confeccionar cetim e seda, explorem essa habilidade, até ela se habituar a isso e fazer disso o seu trabalho. — as ordens do líder pareciam ser simples de serem atendidas. 

Ele deu outras ordens para um outro grupo, e suas ordens eram basicamente para o mês todo, por mais que naquela época os meses fossem contados de forma muito diferente da de agora. 

Ele também deixou avisado que Kakaou, o seu novo protegido ficaria isolado por alguns dias, esse último aviso deixou alguns de sobrancelha levantada, porém ninguém falaria nada sobre suas atitudes.

Para fazer o que ele iria fazer seria necessário um ato um pouco mais complexo do que usar os cristais enfeitiçados, na noite anterior quando falou diretamente com Kakaou pela primeira vez, notou que o rapaz teve todo um trabalho de escavar a rocha com uma pedra afiada e assim conseguir tirar de dentro dela um pedaço de cristal rosa. 

Em Kanish havia uma maldição, lançada por uma feiticeira extremamente poderosa, essa maldição era de que todos os cristais seriam como armas aos humanos e essas armas seriam capazes de matar os dragões.

Cristais azuis e brancos não eram nocivos, e eram usados como jóias pelas mulheres dos reinos. 

Lion, voltou para sua cabana onde a noite já se fazia presente, com um estalar de dedos acendeu todas velas do ambiente.

Por mais que ele fosse um dragão da natureza, o fogo estava presente em todas as espécies de dragões.

Assim que entrou em seu quarto, olhou o rapaz de cabelos negros dormindo, deu uma boa olhada no mais novo e viu que ele não era nada fraco, tinha alguns músculos aparentes, apesar da alimentação escassa a qual tinha sido exposto ele ainda sim tinha superado muita coisa em sua vida.

Ele caminhou até a esteira e se abaixou afim de acordar o mais novo.

— Hey, acorda Kakaou, depois você dorme mais, vamos jantar. — Lion sussurrou as palavras próximo ao rapaz que sorriu ainda dormindo.

O dragão não resistiu a curiosidade e invadiu a mente do mais novo para ver o que tinha de tão belo em seus sonhos.

Ele viu Kakaou em meio a flores silvestres, uma infinidade de ramificações, cada uma de uma cor, a predominante ali eram as rosas pretas e azuis, assim como as mini margaridas, depois estavam em um bosque com um arco todo florido, fazendo um caminho, o chão cheio de folhas verdes, no alto flores rosas e roxas, nas estruturas as brancas e amarelas, um fio de água passava por ali, ele viu naquela pequena corrente de água alguns mini peixinhos.

" Uma alma tão sofrida, não precisa acordar de um sonho tão colorido" — pensou o dragão se afastando do mais novo e indo para sua cama. 

Não demorou muito para o rapaz acordar, Kakaou notou as velas acesas. — " Já é de noite." 

— Dormiu bem? — a voz grave do dragão cortou o silêncio fazendo o mais novo estremecer.

— Si...sim... — gaguejou uma resposta. 

— Vamos jantar, depois vou te levar para um lugar um pouco afastado e realizar o que lhe prometi. 

Kakaou se levantou ainda um pouco atordoado por causa do sono, o que tirou um riso do dragão.

— sem pressa, devagar Kakaou, primeiro vamos comer, depois iremos. 

Kakaou sorriu envergonhado, sua ansiedade para ser completo o deixava assim.

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