- Se não responder em dez segundos bebe também. - falou Benedito com um olhar desafiador.
- Explica melhor, Meia-Légua - pediu João, um dos mais recentes funcionários da equipe de Benedito.
Benedito e eu trabalhávamos na mesma empresa.
Enquanto eu liderava a equipe de retenção, ele liderava a de vendas.
E diga-se de passagem, ele era muito bom nisso.
Graduado em marketing, meu amigo era uma pessoa altamente conectada em tudo relacionado a comunicação, assim como cinema, design, fotografia e tudo o mais.
Chegou junto comigo na empresa, também como atendente, e dentro de menos de um ano de sua contratação como efetivo, foi promovido a supervisor e é uma das maiores estrelas de lá.
Não é à toa que, desde o primeiro dia, tornamo-nos uma dupla inseparável e, juntos, éramos a alma de qualquer festa.
Falando em festa, Benedito tinha um jeito peculiar de cativar seus colaboradores, levando-os sempre para os rolês mais aleatórios e cultivando uma amizade genuína, especialmente fora do escritório.
Assim, nosso clã era sempre visitado por um membro diferente do que chamávamos de Tropa do Meia-Légua.
Ah!
Meia-Légua é um apelido que ele mesmo fazia questão de propagar.
Suspeito que ele mesmo tenha se dado esse apelido em homenagem à figura histórica de um revolucionário que admirava muito: Benedito Meia-Légua.
Assim como sempre que tinha oportunidade soltava expressões como "Mas será o Benedito?" ou "Benedito seja!" e por aí vai.
O caso do seu colaborador João, porém, parecia algo diferente.
Já deveria ser a quinta vez que era trazido pelo Meia-Légua, mesmo sendo mais quieto.
O João era tão discreto e caladão que muitas vezes nem nos dávamos conta de que ele estava na roda.
O motorista da vez perfeito, não bebia, não brigava e não fofocava. Era quase invisível.
Depois que Benedito descobriu que o João bebia esporadicamente, combinamos que nesse encontro voltaríamos todos de táxi ou aplicativo.
Afinal, essa era uma ocasião muito especial.
Eu esperava, ao menos, que esse encontro ajudasse a me sentir melhor.
- Eu começo. - voluntariou-se Benedito - Escolho pra quem faço a pergunta e o escolhido tem dez segundos pra responder ou então bebe e escolhe alguém para fazer a mesma coisa. Assim por diante. Mas, meu velho... Na boa... Peço encarecidamente que se for alguma pergunta constrangedora, já sabe, né?... É esse tipo de pergunta que a gente quer! - disse sorrindo - Ah! Antes que você pergunte, o nome do jogo é a Lei dos dez segundos e fui eu que inventei. - apontou para si mesmo envaidecido.
Bufei uma risada e João assentiu compreendendo as instruções.
Meia-Légua encheu o primeiro quartinho de Pitú e, por fim, estendeu na direção de João.
- Comer ou dormir? - Pelo visto estava pegando leve para começar.
- Comer. - João respondeu com um sorriso contido e logo encheu o copo empurrando na minha direção.
- Tem alguma paquera lá na empresa?
Nesse momento, todos os vermes dos meus amigos urraram bem alto e comemoraram a pergunta.
Trinquei os dentes, sentindo minhas bochechas quentes.
- Claro que de vez em quando aparece alguém pegável, né? - sorri, ainda tímida, mas encenando um tom descontraído - mas não curto esse negócio de me envolver com ninguém do trabalho, não...
- E fora do trabalho, hein Ferrugem? - provocou Manu jogando seus cabelos loiros para o lado.
Manu era linda, com 1.77cm de altura, olhos cor de mel e corpo tipo modelo, ela chamava a atenção de quase todos quando estava em um ambiente.
Além dos cabelos longos que sempre tinham vestígios platinados do período de carnaval, quando ela fazia questão de abrir o tom das madeixas.
- Ôxe, se avexe não! Espere sua vez de perguntar. - retruquei.
- Nadinha! Toda vez tu dá uma de doida e se sai. Pensa que eu sou besta, é?
- Não... Eu acho que só ainda não conheci alguém que atendesse minhas expectativas... Só isso...
- Por causa do canalha do Lesma ou daquele boy lixo do carnaval?
- Fecha esse rabo Manuela...
- Tenho certeza que é por causa do traste do carnaval.
- O que foi que aconteceu no carnaval? - perguntou João parecendo preocupado.
- Foi o boy que descabaçou essa menina e pegou o beco. Depois dele Mari só teve um namorado um tempão depois, que era um babaca e parecia uma lesma. - respondeu Manu.
- Pior que meu pai sempre me disse pra tomar cuidado. Principalmente no carnaval... Mas ele parecia tão diferente... Acabei levando um estranho pra casa...
Não siga meu mau exemplo, não leve desconhecidos para sua casa, mesmo que tenham os cabelos e olhos dourados mais fascinantes do mundo.
- Eu canso de dizer pra tu não ficar esperando um príncipe encantado... Homem especial, pra mim, é um bem dotado com pelo menos trinta centímetros de rola - disse Manu rindo e fazendo todos rirem junto com ela.
Fingi achar aquilo engraçado, mas aquele jogo - para mim - já estava perdendo a graça.
- Tu não pode ficar esperando ninguém te salvar não Mari, tu mesma que tem que se salvar. Falando nisso já começasse a levar a sério a psicoterapia?
- Eu levo a sério. - menti, na verdade eu só tinha ido a duas sessões porque a empresa exigiu o tratamento visto que a crise de ansiedade aconteceu no trabalho.
- Leva porra nenhuma! Tu não era assim. Tu tinha uma energia massa e era feliz, até começar a trabalhar naquela merda de empresa e estudar esse curso que nem contigo combina. Tudo pra fazer as vontade de Seu Paulo. Logo de Seu Paulo, que precisa trepar mais do que qualquer um aqui!
Benedito, como se estivesse lendo meus pensamentos, retomou.
- Minha gente! Vocês querem estragar o meu jogo, é? Bora rodando esse quartinho...
- Agora eu pergunto pra tu, Murrinha - falei empurrando o quartinho na direção da minha amiga - Pra quantos tu já deu até hoje?
- Ôôôxe.... - gargalhou Manu - Tu pensa que eu tenho memória fotográfica, é?
- E não vai beber, não é? - eu disse me sentindo minimamente vingada.
- Mas é claro... - respondeu ela antes de virar o quartinho de cachaça e fazer uma careta dando um pequeno urro - Minha irmã... Eu só quero que você se cuide e viva por você...
- E vai empacar de novo o meu jogo, é? Enche esse quartinho e passa adiante - manifestou-se meu salvador.
- Pois bem então... - disse Manu enquanto enchia o copo até passá-lo para mim - Quando é que tu vai tirar as teias de aranha desse priquito que já deve ter voltado até a ser virgem?
- De novo, velho? Dispense...
- Mas tu não dissesse que era pra a gente fazer pergunta constrangedora?
- Beleza. Mas vocês já tão pegando demais no pé de Maria, tu não acha não?
- Ôxe... - soltou Manu passando o copinho para Benedito - diz logo se tu é afim dela. Se beber, a gente já sabe a resposta!
Mais um urro tomou conta da mesa e, se eu já estava desconcertada, agora só queria enfiar minha cabeça no chão.
Já meu amigo, se saiu muito melhor do que eu esperava.
- Seguinte... É claro que eu acho Mari linda. Uma menina massa!... Mas não é porque eu sou homem e ela mulher que eu não posso ver ela como igual, tá ligada? E eu tenho cuidado com ela, sim, como ela também tem comigo. Principalmente nessa área sexual que ela é, praticamente, um rato da Austrália - Riu no final quebrando o clima de seriedade que estava no ar.
- Como é que é? Rato da Austrália? - perguntamos.
- Como é mesmo aquele bicho, João? Explica pra elas aí.
- Rato-marsupial-australiano? - certificou-se João.
- Sim. Esse mesmo!
- É uma espécie de roedor que passa até catorze horas em acasalamento e, quando termina, adoece com os ferimentos e a perda de pêlos.
Após todos aplaudirem o amigo de Benedito e fazerem uma certa algazarra, deixando-o um pouco tímido, Manu voltou a falar.
- O problema é que vocês não entenderam ainda que o caso de Mari é exatamente o contrário! O problema dela é justamente a falta de rola!
- Minha gente! Me erra! Tô me arretando já com vocês. Não tem mais nada pra falar, não é? Só da minha vida sexual? Vai Meia-Légua. Tua vez. - Conduzi antes de dizerem que não estavam falando da minha vida sexual, mas da falta dela.
- Tu, João - Benedito empurrou o quartinho para o amigo - teria coragem de fazer uma suruba?
Outra onda de algazarra tomou conta.
- Por que não? - respondeu ele - A cama de um casal é imaculada, certo?
Depois de um segundo de olhos espantados, um urro maior ainda foi dado, sendo interrompido somente por Manu.
- Olha, o danadinho botando as manguinha de fora! Não tô dizendo? Até eu me surpreendi agora.
Seguimos assim, cada vez mais bêbados, com menos pudor até percebermos às dez para a meia-noite o nosso bar preferido quase vazio.
Sentados a mesa em silêncio admiramos Zaci e Amanda abraçadas em uma dança no meio do salão.
- Dez minutos pra o dia em que tudo começou. - avisou Manu olhando o relógio de pulso.
Diante da expressão de confusão de João, Benedito prontamente explicou:
- Elas tão juntas há dez anos e todo ano comemoram o primeiro beijo.
Eu e Manu conhecemos Amanda no que na época chamávamos de sétima série do ensino fundamental.
Hoje já me perdi de qual é nomenclatura atual, mas tínhamos mais ou menos entre treze e catorze anos de idade quando ela chegou em nossa escola no segundo semestre, após seu pai ter sido transferido do Rio de Janeiro para o Recife a trabalho.
Ela se tornou nossa amiga quando nos metemos numa briga para defendê-la.
A coitada estava claramente constrangida ao perceber os comentários e as piadinhas de como a novata era gorda e esquisita, o que fazia com que a autoestima dela ficasse no chão.
Como Manu e eu nunca permitimos qualquer tipo de opressão que diminuísse a autoestima das meninas, aproximamo-nos dela e deixamos bem claro para a escola toda que quem mexesse com ela, estaria mexendo com todas nós.
Se bem que não era difícil amar aquela menina tão meiga e tão doce.
Principalmente quando ria.
A risada dela era capaz de converter um demônio em filhote de pug carente.
Só apresentei Amanda a Zacimba um ano mais tarde.
No começo, Amanda parecia demonstrar um interesse um pouco diferente por Manu.
Até Zacimba se aproximar mais dela e começar a se comportar de um jeito que eu nunca havia visto antes.
As duas iam ficando cada vez mais próximas e eu percebia na minha amiga de infância um aspecto que expressava uma espécie de misto de desconfiança, encantamento e ansiedade.
Havia mais coisa que eu não conseguia definir, mas quanto mais o tempo passava, mais parecia recíproco.
Ao ponto de notarmos uma certa expectativa em Amanda quando Zacimba não estava, e uma clara euforia quando esta estava presente.
Quando eu estava com Manu, era inevitável não mencionar parecia estar havendo alguma coisa ali entre as outras duas, mas por mais que ambas conversássemos com cada uma, nenhuma das duas admitia nada, mas mostrava muito interesse em querer saber mais sobre nossa desconfiança com relação à outra.
Insistimos para que as duas conversassem sobre isso, mas essa conversa nunca aconteceria se eu não tivesse dado um jeito.
Certo dia, fomos fazer uma noite do pijama na casa de Zacimba, estávamos assistindo a um filme quando Manu me cutucou para mostrar as outras duas.
Mais uma vez como se uma quisesse se aproximar da outra sem ousar tentar fazê-lo.
- Me segue - disse eu sussurrando para Manu.
- Quê? - perguntou ela sem entender.
- Me segue e fala baixo, tabacuda.
- Tá certo...
- Aaaaaaaaahhhhhhh!!!!!! - gritei assustando todo mundo no recinto.
- O que foi, menina????? Misericórdia!!! - Perturbou-se Amanda.
- Um sapo! Tem um sapo aqui! - respondi.
- Sapo??? - perguntou Amanda desesperada - Onde??? Onde???
- Acho que vi mesmo - Manu entrou na encenação.
- Mas tu não tem medo de sapo... - contestou Zacimba.
Era eu que salvava as garotas dos insetos e bichos pequenos.
- Aaaahhhhhh!!!!.... - Gritei de novo enquanto pensava numa resposta saindo do cômodo, seguida por Manu.
Na hora que Amanda se levantou para sair também, deu com a cara na porta que eu fechei.
- Aaaaaahhhhh!!!! Não me deixa aqui não que eu morro de medo de sapo também.... - clamou Amanda.
- Que sapo que nada... Isso é resenha delas - acalmou Zacimba.
- Resenha?
- Sim... É onda delas. Vai suas tabacuda - Zacimba se dirigia a Manu e a mim.
- Só vou abrir essa porra daqui a uma hora. Então acho bom conversarem pra acabar logo com essa donzelice!
Uma das vantagens de ter sido criada com Seu Paulo era que eu resolvia tudo com a candura do Seu Lunga.
Sessenta minutos depois, Manu e eu destrancamos a porta e elas continuaram lá dentro.
Naquela noite, elas tiveram uma conversa milagrosa que solucionou todos os problemas.
Naquele momento, trancadas, foi quando deram seu primeiro beijo.
E foi naquela madrugada, exatamente a meia-noite, que pude ser testemunha do início de uma linda relação baseada em amizade, respeito e confiança mútua.
Uma relação sem brigas (pelo menos nenhuma realmente séria), sem ciúmes, cobranças ou qualquer coisa do tipo.
Com apenas um olhar elas se comunicavam e, muitas vezes, riam de alguma coisa só delas.
A maior prova de eu ainda acreditar no amor, mesmo que não achasse que era algo para mim.
Dez anos depois daquela noite do pijama, as duas dançavam com as testas coladas e sorrisos estampados em seus rostos.
Faltavam dez segundos quando começamos a contagem regressiva em uníssono:
- Dez... nove... oito... - as duas riam e se preparavam enquanto ouviam a contagem que mais parecia de ano novo - seis... cinco... quatro... três... dois... um... Zeroooo!...
Finalmente se beijaram em meio a risos de Zacimba e lágrimas de Amanda.
Eu estava feliz.
Mas não entendia porque as lágrimas também não paravam de brotar dos meus próprios olhos.
***
Poucas horas depois, o efeito do álcool deixava meu corpo e, muito cansada, resolvi pegar um carro de aplicativo.
Mesmo morando tão perto, não queria correr o risco de tropeçar e rolar pelas ladeiras de Olinda por causa do sono.
Voltava do banheiro para me despedir dos meus amigos quando ouvi uma conhecida voz masculina:
- Oi, caipora...
Vou te dar uma dica: Não fale o nome do ex quando estiver em lugares públicos, porque ele aparece. De preferência nem pense nele, porque o diabo o envia.
Ali estava o meu, branco como papel.
O nome dele era Daniel.
Começamos a namorar quando eu tinha vinte e um anos.
Um homem bonito, cerca de 1.78 cm de altura, esbelto, a pele cor de leite e os cabelos castanhos.
Com o passar do tempo eu percebi que Daniel tinha vergonha de mim.
Sempre criticava o volume do meu cabelo, sugeria que eu usasse chapinha.
Dizia que a minha pele naturalmente bronzeada e repleta de sardas já chamava atenção demais.
Ele sempre me levava em restaurantes pouco frequentados e raramente saíamos com os amigos dele, na verdade nunca os conheci.
Algumas vezes ele dizia que eu não era ruiva de verdade porque eu não me encaixava no tipo europeu.
Estava mais para sarará.
Enferrujada.
Desbotada.
Eu nunca gostei quando me chamavam de sarará na escola.
O que acontecia com frequência.
Pensei que quando crescesse aquela palavra não tivesse mais efeito sobre mim.
Mas me sentia feia e inferior quando a ouvia nos lábios de Daniel.
Depois de três anos de namoro resolvi terminar quando ele bêbado deu em cima de Manu.
Enfim, olhei para trás e vi um Daniel Lesma como chamavam meus amigos.
Eu tinha nojo daquela cara asquerosa.
Antes mesmo que pudesse lhe dar as costas, ele segurou meu pulso.
Senti a mão grudenta, tão familiar.
Esse era um dos motivos do apelido que recebeu, além de suar como um porco.
- Tá avexada? - cantarolou.
Fiz uma cara feia e tentei puxar meu braço.
O desgraçado apertou mais forte.
- Me solta. - rosnei.
- Tenha calma, cabelinho de fogo... - sorriu.
Vi os seus dentes que tinham a mesma cor de sua pele.
Assustador.
Como eu demorei a perceber!
- Me solta, murrinha! - ordenei trincando o maxilar.
Ele não soltou.
Meu sangue ferveu.
Percebendo minha raiva, seu sorriso seboso se ampliou.
Nos cantos dos lábios, saliva e o buço repleto de gotas de suor.
Sempre suspeitei que sofria de sudorese.
Com agilidade, ergui a perna direita flexionada usando o braço esquerdo livre como guarda, inclinei o corpo e chutei bem no meio da caixa torácica daquele desgraçado.
Com a mesma velocidade, joguei a perna para trás começando a ginga enquanto cabeças se voltavam para mim e para a Lesma.
- Ding ding dong dong... - cantarolei imitando o som do berimbau - tá dada a bênção. - soltei um risinho cínico.
"Bênção" é o nome na capoeira para o chute investido no meio do tórax do oponente.
Repare como estou sendo legal, explicando para você não precisar pesquisar na internet.
Daniel Lesma estava estirado ao chão, puxando o ar em rajadas.
Virei as costas para ele e dei de cara com dois homens.
Claramente amigos do meu ex.
Franzi o cenho, cruzando os braços sobre o peito.
- Olha só... Mais dois cabra safados querendo apanhar... Eu realmente tava precisando me divertir um pouquinho... - disse enquanto me alongava.
Quando flexionei os joelhos, os outros dois também flexionaram os próprios.
- Isso vai ser mais divertido do que eu esperava. - falei antes de socar o estômago de um deles.
O tolo, que não esperava por aquilo, cedeu caindo sobre os joelhos e depois batendo com o rosto no chão.
Finalmente uma reverência merecida - eu disse ao me deparar com o outro otário saltando em minha direção, no que foi pego de surpresa por um chute armada que o levou ao chão.
- Gostei do movimento! Chega foi bonito. - disse eu para Zacimba.
- Tu não sabe?... - disse ela sorrindo em resposta depois de girar o próprio corpo e erguer a perna direita, arremessando o peso da lateral do seu pé contra o rosto daquele vagabundo.
Soquei o primeiro com os dois punhos fechados, fazendo-o cair ao lado do seu colega.
Virei-me para o meu ex.
Ele estava de pé, com os olhos arregalados.
Não parecia disposto a continuar.
- F-foi mal - disse ele, ainda mais branco do que já era.
Ignorando-o completamente, virei para minha amiga.
- Um pouco de emoção pra tua noite especial.
Zacimba sorriu, assistindo Pirata - o dono do bar - arrastar os três homens para fora com ajuda de alguns dos clientes.
- Melhor que isso só se eu acertasse a cara da Lesma. Um pouco de ação sempre deixa o romance mais emocionante. - ela disse empurrando os óculos de armação redonda de volta para o rosto.
- Eu chega tava com saudade de fazer essas coisas.
- Faz tempo que a gente jogou capoeira juntas, né? - disse Zacimba afastando as tranças dos olhos - E tu se lembra quando a gente era pequena e corria pelas ladeiras de Olinda caçando tesouro? - ela riu - O tesouro da gente eram as folhas, os gravetos, as pedras...
- Eram presentes da natureza. - eu disse me lembrando.
- Eu chega tô vendo tu pirraia; com os cabelos pelando fogo; carregando as folhinhas e endoidando o porre do teu pai, que ficava berrando: 'Maria, te orienta! Tu vai descer embolando ladeira abaixo e meter o quengo lá na praça do carmo!'
Ela estava gargalhando e meus olhos se encheram de lágrimas.
- Mari... - ela se aproximou segurando minhas bochechas enquanto enxugava as lágrimas com seus polegares - Tu sabe que eu sempre tô aqui pra o que tu precisar, né?
- Eu sei... É só que agora tá tudo diferente, tu tem Amanda e... ela é minha amiga também, mas sei lá... acho que sinto falta de como era a amizade da gente.
- A gente continua tudo aqui. Eu, Manu, Benedito e Amanda. A família que a gente sempre foi. Na verdade, tu que mudou e a gente sente falta da Maria festeira e palhaça de antes.
- Também sinto falta de mim mesma. - eu disse soluçando.
- Mari eu tô ficando cada vez mais preocupada contigo. Naquele dia do hospital eu tive certeza de que tu precisa de ajuda urgente. Tu é minha melhor amiga. Eu faço tudo que tiver ao meu alcance pra te ver bem. Embora eu seja assistente social, tem coisas que só um psicólogo pode fazer.
- Eu não quero parecer uma doida indo pra psicólogo. Até porque eu não tenho dinheiro pra enlouquecer. Muito menos pra ficar tomando remédio. E eu fico pensando, sabe, pra que pagar alguém pra me ouvir se eu tenho vocês? Meu pai diz que ansiedade é coisa de rico. Que no tempo dele não tinha essa de dizer que tinha ansiedade, pois o mundo não ia parar porque alguém está querendo chamar atenção ou fazer corpo mole...
- Cuidado no que tu dá ouvido. Às vezes as pessoas abrem a boca pra falar o que acham como se fosse uma lei universal. Ninguém quer adoecer, Mari. Mas quando adoece, a gente tem que se tratar. E com ansiedade não se brinca. Se você perceber qualquer sinal de ansiedade, é preciso buscar ajuda profissional o mais rápido possível. Pois isso pode evoluir pra uma depressão ou coisa pior. Me prometa que você vai procurar ajuda, mesmo que não saiba como fazer isso, você vai atrás! - ela segurou meus ombros - Eu quero minha amiga de volta. Quero que ela perceba de novo todo o tesouro que tem. - completou apontando para a mesa onde nossos amigos davam gargalhadas em meio a brincadeiras.
- Eu vou tentar...
- Não! - ela me abraçou e falou ao meu ouvido - Você vai conseguir. Porque você é uma mulher arretada da peste!
Minha amiga me deu um beijo na bochecha e um abraço bem apertado.
Só nesse momento eu percebi o quanto estava precisando disso.
- Bora Maria! Já tais aí furando o olho de Amanda!... - disse Manu.
- Deixa ela, miséra! Tu não tá vendo que elas tão conversando? - reclamou Benedito.
- Conversando não, elas tão é se agarrando! - insistiu Manu.
- Ela pode... - respondeu Amanda - Ela chegou primeiro que eu.
Eu deveria estar muito mole mesmo, pois aquilo me deixou ainda mais emocionada.
- Eita Maria! - disse Manu - Resolvemos teu problema. Tu tava precisando mesmo era de priquito!
Nota: Se você percebe sinais de ansiedade, depressão, tem pensamentos destrutivos ou sente que precisa de ajuda, não deixe de consultar um psicólogo. Hoje em dia existem plataformas online com psicólogos que atendem por preços acessíveis. Sempre peça o nº do CRP (Conselho Regional de Psicologia) do profissional para evitar a exploração de pessoas que agem de má fé se apresentando como psicólogos mas na realidade não são. Conhecer ou usar técnicas de psicologia não substitui o preparo e a qualificação de um psicólogo habilitado.
A clínica de Andrea, minha psicóloga, localizava-se no Bairro do Varadouro, bem próximo ao Mercado Eufrásio Barbosa, onde eu pretendia dar uma passada após a sessão.Pretendia relaxar um pouco e dar uma olhada no Museu do Mamulengo, que sempre me deixava num transe misto de sensações que iam da alegria ao ver os bonecos engraçadas, admiração pela inventividade das pessoas que produziam aqueles bonecos artesanalmente com escassez de recursos, e uma espécie de nostalgia por entrar num túnel do tempo que levava até mais de um século atrás.Eu também pensava em comprar ítens para reabastecer minha dispensa, que pela rapidez da decomposição dos alimentos orgânicos, exigia preenchimentos frequentes.Minha sessão começava às oito horas da manhã.Resolvi aproveitar o sol mais frio desse hor&a
Eu estava na amurada da varanda da minha casa saboreando um chá de capim santo e uma tapioca de coco com queijo coalho.Havia escolhido aquele queijo a dedo um dia antes, na padaria do Seu Juquinha.Não me julgue por ainda frequentar aquela padaria que não tem café pronto de manhã cedo, mas é a mais perto da minha casa e onde eu moro é um centro histórico.O seu Juquinha era um dos poucos que não tratava os moradores locais como turistas e pegava leve nos preços.Depois de rejeitar três outras provas insípidas, fiquei feliz por sentir o sabor salgado na língua.Seu Juquinha soltou um suspiro de alívio "Até que enfim, Dona Maria" ignorei o irritante Dona Maria.Aquele nojento só me chamava assim, fazendo eu me sentir uma dona de casa de setenta anos.Com pequenos goles em meu chá, eu admirava a mandala em forma
Eu estava muito nervosa.Era meu primeiro encontro depois de um ano solteira!Quando recebi a mensagem com o convite para jantar fiquei relutante e demorei para responder.Mas as palavras de Manu reverberavam na minha mente.Eu já fui mais enérgica e cheia de vida.Nos últimos anos não estava vivendo por mim.Por prazer.Por isso eu disse que sim para esse encontro repentino.Embora, o tempo todo, eu lutasse para não dar meia volta e desaparecer.
Por mais que tentasse, não consegui conter as lágrimas ao sair da faculdade.Quanto mais tentava prender o choro, mais ele insistia em explodir carregado com mais uma crise existencial.O que estava fazendo lá?Até hoje não sei.Eu havia sido afastada do trabalho, mas na faculdade as aulas continuavam se acumulando e chegando num nível de complexidade que me dava uma sensação de perturbação e sufoco.Sentia-me como um caranguejo que tentava sair do fundo do mangue, mas não conseguia sequer ver a luz do sol escaldante do Recife.Encarar as aulas depois de te
Quem estava na minha casa?A criatura que eu menos iria querer encontrar!Olha que de criaturas eu entendo.Tanto desse quanto do outro mundo.Opa!Não posso falar muito mais do que isso, por enquanto, mas - spoilers a parte - eu tinha sido pega desprevenida.Justo no momento em que eu havia baixado a guarda...Um par de olhos que brilhavam como dois faróis naquela casa escura encaravam-me se aproximando com suas pupilas em formato de fenda.Um grunhido estranho, como o motor de alguma máquina mortífera, podia ser ouvido num tom cada vez mais alto, à medida em que aquele ser chegava mais perto.Sua respiração era fraca.Eu quase podia sentir cada inspiração e cada expiração.Sua boca exibia presas afiadas como agulhas.Suas garras...Sim...Garras pontiagudas podiam ser vistas a cada passo que a besta dava.
No dia seguinte eu estava sentada no meu sofá púrpura, sentindo o incômodo no meu pescoço causado pelo lenço para esconder o chupão deixado por Luiz.Veja bem, o Recife é muito quente, até mesmo nos períodos de inverno.Lenços, luvas, botas ou qualquer outro acessório para o frio não são bem vindos com o nosso clima.O calor é tanto que dá vontade de andar nu.Felizmente, aqui é quente, mas é úmido.E o que não falta é vento.Como é um arquipélago abaixo do nível do mar, &eac
O vento levantava os caracóis de cabelos sobre o meu rosto.O dia estava mais colorido.O céu azul sem nuvens e o sol brilhante.Recife, sempre quente como o inferno.Não é à toa que a gente chama carinhosamente nossa cidade de Hellcife.Ou talvez eu, simplesmente, estivesse mais perceptiva.E se eu estava mais perceptiva, isso certamente era por causa da meditação em minha vida.Justamente o contrário do que eu costumava pensar.Antes eu achava que fosse uma dessas
Minha cabeça estava explodindo!Massageando a cabeça, eu buscava algum alívio para a minha têmpora direita que palpitava de dor.Mas era inútil.Uma vez mais eu estava morta de cansaço, mas não conseguia pregar o olho para voltar a dormir.A claridade do dia entrava doendo pelos meus olhos apertados.O barulho da vizinhança invadia meus ouvidos.Meu corpo estava todo dolorido.Mas a cabeça...Eu só queria poder pegar aquela parte do meu cérebro que estava doendo e jogar para bem longe dali.Pior que, além da dor física em si, esses momentos geralmente acompanhavam memórias dolorosas também.A última vez que eu senti algo parecido foi no fatídico dia em que toquei fogo na empresa.No dia anterior, eu havia reprovado mais uma vez uma disciplina que me perseguia no curso de engenharia.P