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A dependência alcoólica (alcoolismo) tem quatro sintomas:
Fissura: uma forte necessidade ou compulsão, à bebida.
Perda de controle: a incapacidade para controlar a ingestão de bebida em qualquer ocasião.
Dependência física: sintomas de abstinência, tais como náuseas, suores, tremedeiras e ansiedade, acontecem quando o consumo de álcool é interrompido depois de um período de consumo excessivo.
Uma dependência séria pode levar a pessoa a apresentar sintomas de abstinência que colocam sua vida em perigo, que começam de 8 a 12 horas após a última bebida. O delirium tremens começa de 3 a 4 dias depois, e a pessoa fica extremamente agitada, treme, alucina e desliga-se da realidade.
Tolerância: grandes quantidades de álcool são necessárias para que a pessoa tenha uma euforia.
Vilma o observava beber um grande gole de seu uísque e praticamente, fumar um cigarro atrás do outro. Já era o quinto copo. Ele estava tenso. Mas ela estava muito feliz por ele tê-la procurado depois do último encontro, já que não conseguira compreender o que dissera para ele ir embora tão irritado. Ela falou o tempo inteiro, sobre sua infância, sua família, sua vida, seus relacionamentos, enquanto ele bebia, ouvia, ou fingia ouvir. Estava distante e sem vontade de conversar.
─Gosto muito daquela frase em que tu diz: Que mulher é pior do que um padre. Ela sempre sabe dos teus pecados e te dá sempre a pior penitência. Ou seja, o castigo merecido.
─Não lembro... Digo e escrevo muitas coisas que eu nem sei o que significam de verdade. Não me leve tão a sério. Perda de tempo.
─Tu parece agitado...
─Eu sou um cara agitado! - ele levantou e tirou o dinheiro do bolso. Já estava um tanto cambaleante.
─Não vá! Fique mais um pouco! Vamos para minha casa e...
─Não posso. Preciso dormir. - e sem mais foi embora, rapidamente.
Sentado no velho sofá ele admirava aquela pintura fantástica.
─Você é linda! Pena que não vive nesta época... - ele riu e sorveu um gole de seu uísque tragando o seu cigarro, lentamente. ─Deixei uma mulher real e gostosa a ver navios para vir para casa conversar com uma pintura. Eu sou demais! -uma pausa. ─ Você é do tipo de garota... ou melhor, seria prenda? É, isso mesmo, uma prenda do tipo de prender um homem como eu. - riu do trocadilho. ─Sou um miserável! Apaixonei-me certa vez. Tinha vinte e cinco anos. Fui muito sacana, cafajeste mesmo, e ela encontrou um cara melhor do que eu e me deixou. Com razão! Hoje, pensando bem, eu também teria me deixado... Ela dizia que eu era egoísta demais para viver a dois. Talvez ela tivesse razão. Meu maldito ego sempre foi muito grande... nunca me senti satisfeito com o que tinha. – olhou em volta. ─E veja onde estou? Num mausoléu, sem conforto algum, conversando com um quadro. E sem dinheiro! No fundo do poço, guria bonita... Não sou um cara sentimental, muito menos romântico. Sou prático, materialista, e não nego; dinheiro para mim é tudo! Acho que foi por isso que fiz tanto sucesso e despenquei lá de cima... estou fazendo terapia com um quadro. - se ajeitou melhor no sofá. ─Sou um grande filho da puta que está nesse mundo só para... - e ele apagou completamente.
Na penumbra da sala, o vulto levitava, vagarosamente. A luz da noite penetrava pelas janelas abertas criando um cenário ainda mais assustador, que Diogo no seu profundo sono, não pôde ver.
─Sim... - o vulto sussurrou. ─... tu está aqui, e é isso que importa.
Durante três dias, sempre no finalzinho da tarde, Diogo e Sophie se encontravam no seu lugar secreto. As margens do rio Guaíba, dentro de uma clareira. Ele respondia à pergunta que ela lhe fizera:
─O que tu deseja da vida?
─Quero descobrir valores reais. Não esses que nos ensinam desde que nascemos, e que se transformam em regras e aprisionamentos. Por que existem tantas pessoas menos afortunadas, pobres, e sofrendo neste mundo? Algum tipo de punição? Será que o Deus que eu aprendi a confiar e acreditar seria capaz de submeter seus filhos a esse sofrimento? Os negros não são filhos de Deus? Será que Deus, realmente, existe? - ele suspirou, exasperado. ─Quero entender por que algumas pessoas que já têm a riqueza e o poder nas mãos, ainda sentem a necessidade em massacrar as pessoas mais humildes. Não quero viver da razão, ela justifica coisas injustificáveis. Quero viver do sentimento, ele é mais profundo, mais nobre... ele é mais humano!
Ela estava encantada, apaixonada com o que ouvia. Com o som da voz dele, com o poder, a força que emanava daquele jovem idealista e sonhador, em busca de respostas tão profundas.
─E tu, Sophie?
─Direitos iguais. Ser mulher já é tão difícil, imagina sendo cega. Quero fazer a diferença. Criar minha própria história. Quero ser lembrada, não como a mulher que era cega, mas que era cega e podia fazer tudo que quisesse, porque é possível!
─Tu já está criando uma história, e tu é a maior prova de que pode fazer qualquer coisa na tua escuridão.
Diogo estava sentado ao lado dela, ambos num tronco de árvore caído pelo tempo.
─Sei que está me olhando... - ela sorriu. ─E sei que agora tem uma expressão de assombro no rosto.
─Tu é muito mais perspicaz e enxerga muito melhor do que a grande maioria. Como faz isso?
─Deus me tirou um sentido, mas redobrou a sensibilidade dos meus outros quatro. Meu ouvido consegue ouvir até as expressões humanas. Se tu vendar os olhos e treinar teu corpo inteiro a sentir tudo ao teu redor, tu não precisará mais deles. É o que venho fazendo desde que nasci. - ela suspirou. ─Não tenho pena de mim mesma, Diogo. Sou afortunada. Sem os meus olhos, consigo ver a verdade de cada um com os olhos da minha alma. Verdades que a maioria esconde. Claro que eu gostaria de poder enxergar, mas aceito minha condição sem fazer dela motivo para ser uma vítima da vida.
Diogo sorriu enternecido.
─Tu é uma guria muito especial! - ele viu uma lágrima rolar na face dela e se assustou. ─Eu disse algo que a magoou? - limpou a face dela com a ponta dos dedos.
─Não... pelo contrário. De repente me bateu uma profunda tristeza. Gostaria muito de poder ver o teu rosto. – ela sorriu sem graça e baixou o olhar. ─Desculpe, eu não deveria ter dito uma coisa dessas...
E ele a beijou. De começo ternamente, com uma delicadeza extrema. Ela era uma flor tão delicada, que ele acreditava que se a apertasse, ela poderia se ferir como uma pétala. Mas qual sua surpresa quando ela o abraçou, e numa força assustadora tornou aquele beijo num ato quase obsceno.
Ele se afastou e segurou-a pelos ombros olhando-a fixamente.
─Não quero que seja do tipo cavalheiro. Sei que está apaixonado por mim como eu estou por ti Diogo.
Ambos sorriram felizes.
─Era inevitável. - havia certo receio na voz dele.
─O que foi?
─Eu sou filho de um dos empregados do teu pai, que até tu aparecer eu nem sabia quem era. Tu é uma guria rica, filha de estancieiro, protegida. Vive num outro mundo.
Ela o segurou pelos ombros e ambos se ajoelharam na relva macia. O vento frio e cortante assobiava nos ouvidos de ambos.
─Pouco me importa de quem tu é filho, ou de quanto tem no bolso. Eu me importo com o que tu carrega no coração, o ser humano que tu é. O homem corajoso que se arrisca para salvar homens, mulheres e crianças, não importa quem for. O homem que não mede esforços de atravessar dias de cavalgada, ou dias de viagens pelos rios para deixar alguém, em risco, em segurança. O homem que já me salvou algumas vezes e que eu confio, cegamente. - sorriu divertida de sua própria brincadeira.
─Tu está apaixonada pelo homem... ou pelo herói?
Ambos riram.
─Pelos dois! Mas muito mais pelo homem que quando se aproximou de mim fez toda a minha natureza feminina aflorar, meu coração bater loucamente, meu estômago revirar, a ansiedade das minhas mãos em te tocar, do meu nariz em sentir teu cheiro... - ela aproximou o narizinho do pescoço dele e roçou numa leve caricia. ─... desde que meu coração me disse que sou tua e que tu é meu Diogo.
Ele parou de resistir, atirou-se com ela sob a relva úmida e macia e beijou-a, vorazmente.
Rolaram uma, duas, três vezes, abraçados, bocas coladas, corpos unidos, se roçando ousadamente. Finalmente ele recuperou o bom senso.
─Tu não é uma guria para ser tratada assim...
─Assim como? - perguntou ela rindo animada e de faces coradas. ─Vamos! Diga!
─Tu é como uma flor Sophie. Merece tudo o que há de melhor.
─Sobre o que está falando? Mereço o quê?
─Um momento mais de acordo com tua...
─Pare com isso! Eu sou mulher e quero ter direito iguais. Por que não posso rolar na relva com o homem que desejo?
─Eu quero fazer as coisas direitas contigo. Um quarto, uma cama decente... e quem sabe...
─Casamento? Tu não ouviu o que eu disse? Eu sou tua, e sendo assim sou tua em qualquer momento e em qualquer lugar do mundo!
Diogo se apossou dos lábios dela com paixão. Estava difícil se controlar com aquelas declarações tão honestas e sinceras, aquele corpo macio embaixo do seu, com aquele olhar parado no vazio, mas tão cheio de luz que o deixava cego de amor.
─Eu te amo, Sophie!
─Eu te amo, Diogo!
─Por te amar tanto assim, quero fazer tudo certo.
─E o que é certo? - ela o empurrou e se sentou. ─Ser tudo do jeito que os homens querem? Todos os homens pensam assim, desde meu pai até o escravo mais humilde! A começar por minha mãe que acha que todas as mulheres devem ser felizes bordando e cozinhando. - ela levantou de um salto o assustando. ─Desde pequena, luto pela minha liberdade de escolha, pelo meu lugar neste mundo, cão machista, e pior para mim sendo cega, e tu não vai me dizer onde e quando eu devo me entregar ao homem que eu amo! Mesmo que este homem seja tu! – e ela montou num lindo salto em seu cavalo chamado Tosca e partiu num galope elegante pelo prado.
Diogo estava espantado! Não conseguia acreditar que aquela garota estivesse, realmente, apaixonada por ele a tal ponto de se entregar sobre uma relva úmida.
─Tu ouviste o que eu falei Diogo? - perguntou Antônio pela segunda vez
─Não. Repete. - pediu ele sem graça. Estavam na casa de Deusa, na sala operacional onde se reuniam para arquitetar estratégias para os seus planos.
─A coisa está ficando feia. Os rumores sobre uma possível guerra estão cada vez maiores. As negociações entre o Regente Imperial e os estancieiros estão difíceis. Já estão dando um ponto final...
Diogo o fitou sem expressão.
─Para mim, essa guerra só terá sentido se for para libertar os negros. Por conta de impostos? Uma guerra de egos. Estancieiros ficam mais ricos, pobres mais pobres e negros mais escravos do que nunca!
─Nós precisamos nos preparar, meu amigo. Podemos ser convocados.
─Eu estou preparado para lutar pelo que eu acredito. E tu? Falando nisso, vou lutar pela pessoa mais importante na minha vida. Essa maldita guerra que, ainda nem começou, que espere! - e ele se levantou, atravessou a sala, e foi parado por uma das garotas que trabalhavam na casa de Deusa e costumava ficar com ele. ─Não Jandira.
─Não me importo com dinheiro. Deusa sabe que gosto de ficar contigo, Diogo.
─Eu também aprecio a tua companhia. Mas meu coração encontrou sua verdadeira dona, e meu corpo agora é dela.
Sophie deu um pulo da cama e foi até a janela. Seu coração disparara como louco ao ouvir o som do galope daquele cavalo se aproximando. Sorriu, sabia que era ele. Sabia que era uma questão de tempo para que ele viesse até ela. Pegou uma flor de magnólia do galho pertinho da janela, esmagou e soprou o aroma sendo levado pelo vento frio até as narinas do homem e do cavalo. Ele sentiu e sorriu feliz ao ter certeza de que ela a esperava. O cavalo deu tudo de si para que o caminho ficasse mais curto.
Ele viu aquela linda garota na janela a esperá-lo. Ambos sorriam em sincronia. Era incrível a capacidade dela em enxergar com seus outros sentidos. Diogo tratou de escalar a parede com a ajuda da árvore com uma agilidade assustadora, e assim que chegou à janela, beijou-a sendo puxado de qualquer jeito. Ambos caíram no chão rindo divertidos.
─Pensou que eu desistiria?
─Nunca! Eu apenas aticei o lutador que há dentro de ti. Eu sabia que viria atrás de mim.
─Nem que eu tivesse que atravessar o inferno para chegar ao paraíso!
O beijo começou vagaroso, provocante. Diogo sabia da pureza de Sophie, e por isso, queria dar o melhor a ela. Beijos pelo rosto delicado, pelo pescoço. Rolou no chão para que ela ficasse por cima dele, e passou a abrir os botões nas costas do vestido azul escuro, realçando ainda mais os olhos azuis claros e os cabelos prateados. Em pouco tempo estavam completamente nus. Corpos colados, bocas sôfregas, mãos ora delicadas, ora selvagens. Diogo a fazia se roçar em seu corpo a incendiando e deixando-a cada vez mais incitada para o ato.
─O que tu deseja Diogo? - ela perguntou a certa altura com a voz trêmula pela paixão do momento. -─Uma mulher recatada ou uma... desavergonhada?
Ele segurou o rosto dela entre as mãos.
─Eu te quero como tu é, Sophie. Livre, dona de si, dona de tuas vontades e desejos. Guerreira, destemida, delicada e sensível, e ousadamente desavergonhada na tua pureza. Te quero em pé de igualdade.
Entre as lágrimas e um sorriso, ela entre abriu as pernas para que ele a possuísse por completo.
Era como um dia de verão, sol e calorão, e depois uma chuva intensa para refrescar e confortar. Era como caminhar pelo inferno, para por fim, repousar no paraíso.
Estar um nos braços do outro, era o próprio paraíso.
Mais tarde, abraçados na cama dela, ela sorriu e o desafiou.
─Quer viver uma aventura?
─Contigo eu quero todas as aventuras!
Vestiram-se rapidamente, e saíram do quarto dela, rindo baixinho correndo na ponta dos pés descalços pela casa, até chegarem à grande cozinha.
─Vai me dar o que comer antes da minha morte? - ele sussurrou no ouvido dela.
─Tu não vai morrer hoje. Nenhum de nós. - e ela o forçou a sentar-se na ponta da grande mesa, encilhou o chimarrão passando a ele, e com uma destreza impressionante, picou meia cebola, amassou três dentes de alhos, cortou o charque já fervido e lavado em cubinhos que mais pareciam obras de arte.
Derreteu a banha numa panela de ferro no fogão de brasa. Preocupado ele quis levantar e ela ordenou que ele ficasse onde estava com cara de poucos amigos.
Colocou o charque para fritar.
─Tu vai acordar a casa inteira com esse cheiro... estou ficando preocupado. - ele sussurrou.
─Não se preocupe. Todos aqui têm o cheiro do charque impregnado nas narinas. Continue tomando teu mate, peão. ─ riu descontraída.
Depois de dourado, ela juntou a cebola e o alho, deu algumas mexidas e acrescentou o arroz. Refogou por alguns minutos, colocou dois dedos de água acima e tampou a panela. Enquanto apurava, ela limpou o que sujara rejeitando a ajuda dele. A cada minuto ficava mais impressionado com suas habilidades.
Era incrível os movimentos precisos do corpo e de suas mãos em sua total cegueira. Sophie conhecia cada palmo daquele lugar. Não podia ver, mas podia sentir o espaço e as coisas em volta.
Assim que o carreteiro de charque ficou pronto, ela serviu uma boa porção num único prato, colocou cheiro verde fresco picado e sentou-se no colo dele. Ambos numa íntima cumplicidade comendo, do mesmo prato, do mesmo garfo.
─Jamais provei nada igual! E olha que dona Eva é uma perita em arroz de carreteiro.
Ela assentiu com uma sombra nos olhos.
─O que foi Sophie? Por que toda essa demonstração?
─Agora tu sabe que não sou uma inútil mesmo sendo cega...
Ele a abraçou com força numa leve punição por dizer tamanha asneira.
─Nunca a vi como uma inútil! Tu faz coisas que a maioria das mulheres não ousaria. Tu anda a cavalo como ninguém! Tu dá aulas para as crianças...
─Sim, para as crianças escravas. Do contrário tu acha que eu poderia dar aula para as crianças brancas? Que pai ou mãe confiariam seus filhos a uma cega?
─Eu confio em ti! Aquelas crianças confiam em ti.
─Me leva aonde tu for?
─Para qualquer lugar do mundo!
Eles se beijaram sofregamente, e visitaram o paraíso ali, naquele banco de madeira, entre sussurros e gemidos, como preces de amor. A seguir, Sophie o levou para um tour pela imensa casa. Era aterrorizante e ao mesmo tempo excitante viver aqueles momentos ao lado dela. E o mais surreal e fantástico, foi entrar com ela numa grande sala que a família usava para suas reuniões e festas regulares, entre a família e amigos da região.
─Vá para fora daquela janela. Há um parapeito. Se tu ficar aqui pode ser visto.
─O que vai fazer...? - ele indagou surpreso sendo empurrado por ela em direção a sacada.
─Acordar a casa inteira! - riu marota.
Voltou ao piano, levantou a tampa, respirou fundo, alongou os dedos das mãos delicadas e se pôs a tocar uma linda canção, Fur Elise de Beethoven. Diogo a contemplava encantado. Os longos cabelos prateados, num tom tão difícil de se ver, espalhados pelas costas. O rosto iluminado pelos lampiões a óleo de baleia, o brilho da noite, e com uma agilidade encantadora ela bailava os dedos pelas teclas daquele maravilhoso instrumento.
Ele teve uma certeza, já viera ao mundo predestinado a se apaixonar por ela.
─Que diabos! - gritou Everaldo dando um pulo da cama. ─Essa rapariga não tem hora para tocar esse piano?
─Tu sabe que ela faz isso de vez em quando. Principalmente quando perde o sono...
─Não dorme e não deixa os outros dormir! Maldita hora em que comprei esse piano e deixei-a ir para o Rio de Janeiro estudar música com aquela professora que ensina até cegos! E a culpa é tua! – bradou saindo do quarto, batendo os pés no assoalho de madeira com a mulher atrás.
Luzia já vinha subindo as escadas, e Ticiana saia de seu quarto.
─Ô minha irmãzinha... ela adora nos tirar da cama. - murmurou rindo com gosto ao ver a cara furiosa do pai.
Everaldo parou em frente à Luzia, já pronta para a bronca parada à porta.
─Sua obrigação é tomar contar dela!
─Sim, sinhô. Mas ela não quis que eu ficasse...
─E eu posso saber o motivo? - ele gritou ao som do piano que ficava mais alto.
─Ela só disse que queria ficar sozinha...
Ele balançou a cabeça, e abriu a porta com violência. No mesmo instante, Sophie parou de tocar, e Diogo se escondeu ainda mais atrás da parede, observando a movimentação dos homens lá embaixo. O piano de Sophie tirou todos de seu descanso. Ele riu divertido e ao mesmo tempo receoso de que aquela aventura pudesse acabar muito mal para ambos.
─Tu sabe que horas são, Sophie?
─Oh, papai... desculpe.... o acordei?
─Não te faça de sonsa! Tu tiraste todo mundo da cama e sabe disso! Há muito tempo não fazia este... sarau dos horrores de madrugada.
─Horrores, papai? - ela fez um beicinho, um teatro e tanto. ─Pensei que o senhor apreciasse minhas habilidades no piano... pelo menos é o que faz parecer quando quer que eu a exiba nas suas festinhas tocando modinhas e o valseado (mistura do bugio com a vaneira) para os seus amigos.
─Aí então, é outra coisa. Mas ainda prefiro tuas habilidades no crochê, no tricô, coisas inventadas para mulheres se entreter e ficarem caladas. E agora volte para cama e nos deixe dormir, porque se fizer mais uma dessas, mando colocar fogo nesse monstro barulhento!
Ele virou as costas e saiu com a esposa submissa atrás. Ticiana e Luzia, paradas a porta, caíram na risada.
─Vão embora, agora!
─Cuidado minha irmã! - avisou Ticiana com preocupação.
─Está tudo bem. Vão!
Ticiana fechou a porta com um sorriso maroto, enquanto Luzia tentava enxergar por cima da cabeça dela, ambas rindo.
Sophie girou na banqueta e Diogo entrou na sala pouco iluminada. Ela abriu os braços e ele se apossou do que ela lhe oferecia sem reservas, ali mesmo, em cima do piano depois de mostrar a ele o quanto ela era independente e capaz na sua escuridão. Desta vez a entrada no paraíso demorou a acontecer. Eles queriam viver cada segundo daquele inferno quente e cheio de tentações.
Alguns dias depois, Sophie e Ticiana voltavam de seus passeios misteriosos, quando foram surpreendidas pela fúria do pai antes mesmo de entrarem na casa.
─Onde estavam?
Sophie quem respondeu:
─Fomos visitar nossa vizinha, a dona... - não deu tempo de concluir com o grito dele.
─Mentira! Mandei um dos homens segui-las e vejam que surpresa, minhas duas filhas se encontrando como duas chinocas (prostitutas) na mata com seus machos! Tu, Sophie, com aquele infeliz que só nos causa problemas! Diogo é uma praga na sociedade rio-grandense com esse grupo de abolicionistas que ele criou! E já comecei a tomar as devidas providências, mandei o pai dele embora! Pode apostar que vem muito mais! E tu, Ticiana? Com aquele vagabundo do André filho de ninguém sabe quem, já que a mãe, uma chinoca, se deita com tudo que é macho, e até ele tem vergonha dela?
─Por favor, não mande o pai de Diogo embora. Se o senhor deixar, eu posso explicar papai... - argumentou Sophie tentando manter a calma, pois Ticiana chorava em estado de histeria.
─A única explicação, é que as duas parecem cadelas no cio! Mas se é esse o problema, já encontrei a solução. E vou começar por Ticiana.
─Que... solução? - perguntou a moreninha assustada.
─À noite tu saberá!
─O senhor não... vai me obrigar a casar com ninguém!
─Veremos!
─Eu fujo!
─Tente, e eu te mato, e aquele desgraçado do André, também!
─Eu morro, mas eu não o obedecerei!
Furioso, Everaldo a esbofeteou na frente de alguns escravos e da mulher que estava parada a porta de entrada da casa.
Ticiana caiu no chão. Sophie pediu a ajuda de Luzia.
─Vamos tirá-la daqui antes que ele...
─Não toquem nela! - bradou ele tirando a cinta.
Sophie ouvia os ruídos e sabia exatamente o que estava acontecendo.
─Não.... por favor papai, não faça isso! Chamem Afroline!
─Ninguém se atreva a chamar aquela negra! -e Everaldo se pôs a bater em Ticiana jogada no chão, rolando de um lado a outro, tentando fugir dos golpes violentos da cinta.
─Faça alguma coisa mamãe, ou ele irá matá-la!
─Deixe que ele me mate Sophie... - gritou a garota. ─Prefiro morrer a obedecer a este carrasco!
Ela apanhou tanto que acabou desmaiando. Emília fugiu aos prantos. Odiava-se por não ter força para enfrentá-lo. Quando ele finalmente se deu por satisfeito, parou e olhou-a mais uma vez.
─Levem essa chinoca para dentro. Um banho de sal grosso e estará pronta para outra.
─O senhor é um monstro! - gritou Sophie.
Everaldo a olhou com fúria. Tinha um metro e oitenta, era magro, cabelos prateados no mesmo tom dos dela e os olhos azuis. Para sua idade de quarenta e oito anos era considerado um homem atraente, uma mistura de seus ancestrais italianos, poloneses e alemães que vieram para o sul e fincaram raízes. Seu avô, Jan Kowalski um polonês judeu, forte e aventureiro, de cabelos prateados e incríveis olhos azuis, chegou ao Brasil em 1720, aos vinte anos.
No Rio de Janeiro conheceu a filha de uma família alemã, Virna, que acabava de chegar ao porto, apaixonado, a raptou dois dias depois de conhecê-la entrando na primeira embarcação com direção ao Sul. De Porto Alegre, foram para Pelotas. Lá, Jan trabalhou nas terras de um português rico chamado Joaquim. Tornou-se seu homem de confiança e também seu maior inimigo. Na primeira oportunidade, e não levou muito tempo, roubou uma valiosa quantia em ouro que sabia onde Joaquim escondia, no túmulo do seu pai. Como se não bastasse o roubo, ainda fugiu com a mulher de Joaquim, uma bela italiana chamada Katrina, deixando Virna para trás, e o ex-amigo decepcionado por duas vezes, partindo para Viamão onde comprou a estância. Jan e Katrina tiveram apenas um filho, chamado Paulo, que fora criado com a astúcia e malvadeza do pai. E com o sucesso de sua criação de gado, Jan começou a ser comentado nas rodas dos estancieiros. Foi fácil para Joaquim encontrá-lo e acertar as contas com ele. Jan acabou com a vida do português com um único tiro. Sem dó nem piedade.
E sua morte foi prematura e premeditada pela vingança, sua ex mulher Virna, despeitada, conseguiu infiltrar na casa dele, uma escrava, muito bem paga com uma carta de alforria, que envenenou a sua comida e o matou. Então, Everaldo e os irmãos, Justino e Clotilde, filhos de Paulo, que morrera de um ataque do coração fulminante, quando os três ainda eram crianças, uma mistura de poloneses com italianos, tinham o sangue de um homem inescrupuloso que fizera de tudo para conquistar seu espaço e riqueza, inclusive roubar e matar. Everaldo era o que mais se parecia com o avô e o pai no caráter e na personalidade. Não media esforços, e ia até as últimas consequências quando queria alguma coisa. Não escondia de ninguém a sua frustração por não ter tido filhos machos.
E, naquele instante, embora não enxergasse, Sophie imaginava um monstro sem coração. Sentia vergonha de ter o mesmo sangue que ele.
─Não me afronte ou tu receberá o mesmo que a tua irmã! Não te pouparei por ser cega. As duas estão de castigo!
Ele saiu apressado sem olhar para trás em direção aos fundos da casa, onde ficava um dos quartos que ele costumava visitar pelo menos uma vez ao dia. Afroline o esperava, sabia que depois daquela explosão ele a procuraria. Era sempre assim.
─Dispa-se!
Ela o obedeceu em silêncio. Ele a olhou dos pés à cabeça. Jamais vira em toda sua vida mulher mais bela do que ela. O rosto de feições delicadas, o corpo perfeito e curvilíneo. Tirou a roupa rapidamente, se aproximou dela, virou-a de costas, pegou-a pelos cabelos trançados e penetrou-a por trás gemendo e sussurrando.
─Diga o que eu quero ouvir!
─Não direi o que quer ouvir, mas o que não quer ouvir!
Ele parou o ato, e puxou-a de frente.
─Não me afronte também, ou eu te mato aqui e agora!
─Sabe que não pode me matar. - disse ela, calmamente.
─Não tenho medo desses... sei lá o que se chama isso que tu tem!
─Eu só não interferi porque fui proibida, e não foi por ti. Tu sabe bem disso.
─Sim, sei. Ordens superiores!
─Zombe à vontade! Tu hoje selaste o destino de uma de tuas filhas.
─Não estou preocupado com o destino delas, mas com o hoje. Estou me prevenindo de vergonhas maiores! E quer saber? Perdi a vontade de trepar contigo!
Ele se vestiu e saiu do quarto dela batendo os pés. Uma lágrima de tristeza rolou pela face de Afroline. Ela o amava! Mas era muito sofrimento amar uma pessoa com tanta maldade por dentro
5 De 1800 a 1901, os matrimônios das mulheres eram, em grande parte, arranjados por seus pais, devido a interesses políticos, econômicos e sociais. Logo, era uma afronta muito grande desobedecer ao destino traçado pelo pai e se casar com uma pessoa que ele não aprovava. Já a virgindade dizia respeito à honra da mulher e à boa imagem de sua própria fam&ia
6Em terras brasileiras, a força de trabalho dos negros foi sistematicamente empregada pela lógica do abuso e da violência. As longas jornadas de trabalho estabeleciam uma condição de vida extrema, capaz de encurtar radicalmente os anos vividos pelos escravos. Ao mesmo tempo, a força das armas e da violência transformava os castigos físicos em um elemento eficaz na dominação.
7 "Ó tu, moço ou jovem que te julgas abandonado pelos deuses, saiba que, se te tornares pior, irá ter com as piores almas, ou se melhor, irá se juntar as melhores almas, e em toda sucessão de vida e morte farás e sofrerás o que igual pode merecidamente sofrer nas mãos de iguais. É esta a justiça dos céus.""Aprender é recordar"Platão (427 - 347 a.C.) Eram seis horas da manhã, quando Diogo saiu da clínica particular para onde levara Vilma, depois do colapso n
8 "Outro forte indício de que os homens sabem a maioria das coisas antes do nascimento é que, quando crianças aprendem fatos com enorme rapidez, o que demonstra que não estão aprendendo pela primeira vez, e sim os relembrando."Cícero (106 - 43 a.C.) N
9 O Jornal “O Povo” foi, o mais importante jornal dos farroupilhas e o periódico oficial da República Rio-grandense. Se auto intitulava um "jornal político, literário e ministerial da República Rio-grandense”. Era editado pelo jornalista Luigi Rossetti e organizado por Domingos José de Almeida. 
10 “Estou convencido de que vivemos novamente, e que os vivos emergem dos que morreram, e que as almas dos que morreram estão vivas. As almas, depois de haverem estado no Hades o tempo necessário, são reconduzidas a esta vida em múltiplos e longos períodos."(Sócrates)  
11 Os Imperiais gove
12 (15 de novembro de 1839)A mulher guerreira ficou conhecida por "vivandeira", a "china de soldado", foi a mulher, que acompanhou as tropas em seus deslocamentos e permaneceu nos campos de combate cuidando do soldado. A mulher estancieira foi a mulher, que permaneceu na estância, administrando as lidas campeiras e domésticas, tomando conta do lar, dos filhos, da estância e cuidando dos negócios do homem ausente, que