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Capítulo 6 - Memórias bloqueadas parte 1

Matt

Cidade de Nova York — Mundo Humano

Dois dias atrás

— Não está se esquecendo de nada, Matthew? — a garota lhe disse de trás do balcão, após entregar-lhe um copo com café-com-leite e um pacote de papel quase cheio, um pouco engordurado e com um cheiro delicioso e instigante — Você me deve alguns desenhos!

— Você sabe que eles não são de graça, não sabe, Lilly? — Matt perguntou, após tomar um gole da sua bebida.

— E você acha que os meus pastéis são? — ela perguntou, fechando o semblante e cruzando os braços ofendida.

— Lógico que não, sua besta! — ele disse, rindo da carranca que ela fez — Você sabia que fica linda quando tá nervosa.

— Não adianta me adular, Matt — ela respondeu, fazendo um biquinho —, quero meus desenhos!

— Oownn! — ele fez um som, zombando do drama dela — Eu não resisto a esse biquinho!

Colocando o copo e o pacote em cima do balcão, ele pegou um envelope que havia deixado no chão, de modo que ela não pudesse ver, e o ergueu para entregá-la deixando-a surpresa.

Ela retirou do envelope seis lâminas de papel cartão de aproximadamente quarenta centímetros quadrados, e se admirou quando viu os desenhos perfeitos, feitos apenas em luz e sombra, sem cores.

— Meu Deus, Matt, eles são incríveis! — ela gritou, chamando a atenção de alguns clientes que tomavam seu café da manhã na lanchonete — Quando você os fez?

— Ontem à noite antes de dormir, — ele respondeu pegando um pastel no saco de papel em cima do balcão e dando uma mordida — que delícia, é a nova receita da Karen?

— Para o seu governo, fui eu quem os fiz — ela respondeu orgulhosa —, mas, quanto aos desenhos, você os fez em seu quarto?

— Sim — ele disse com a boca cheia, enquanto mastigava o pastel delicioso — eu fiquei observando vocês e os clientes durante o dia, e desenhei à noite.

— Sua memória fotográfica é realmente incrível, Matt! — Karen disse, se aproximando e observando os desenhos junto com Lilly, que também olhava completamente admirada — Esses detalhes são precisos, parecem fotografias.

— Ficarão lindos nas molduras, mãe! — Lilly disse empolgada — toma conta do caixa pra mim, por favor, que eu vou pegar as molduras lá em cima!

— Quanto eu te devo pelos desenhos, Matt? — Karen perguntou, abrindo a gaveta das notas — Você tem que valorizar esse dom.

— Você sabe que eu nunca cobraria nada de vocês, não é mesmo, dona Karen — ele disse sorrindo com ternura —, se alguém deve algo aqui, sou eu.

— Você sempre teve o maior dos corações, filho — ela respondeu, caminhando até o outro lado do balcão para dar-lhe um abraço apertado —, você fica fazendo desenhos sem cobrar ou cobrando preços simbólicos, não acha que está na hora de montar um ateliê e cobrar um preço justo por sua arte

— Eu sinto que as ruas são o meu lugar — ele respondeu baixando a cabeça —, mas eu vou pensar nesse conselho.

— Vai nada — uma voz masculina disse, vindo das escadas —, você nunca pensa!

— Bom dia para você também, Eustácio! — o Jovem disse, fazendo uma piada ao compará-lo com um personagem reclamão de um desenho, arrancando uma risada de Karen.

— Ah é, Karen, você apoia ele ficar me dando apelidos? — o homem perguntou a ela.

— Ah Hugh, é porquê parece — ela respondeu, rindo ainda mais do bico que ele fez, e abraçando-o em seguida para adular, disse: — mas você é o meu Eustácio!

Matt adorava ver o modo como Karen e Hugh se amavam. A vinte anos atrás, eles o haviam encontrado abandonado enquanto ainda era um recém nascido, em uma caixa na porta de sua lanchonete, e cuidaram dele desde então. Lilly nasceu quatro anos depois e sempre viu nele um irmão mais velho, mas Matt nunca se encaixou de verdade. Na escola sempre foi problemático com seus surtos emocionais, e certa vez quase matou um outro aluno, por ter implicado com seus desenhos, e por chamá-lo de anormal.

Sua adolescência foi marcada por visitas a reformatórios e sessões com psicólogos, mas aos dezessete anos decidiu virar artista itinerante nas ruas da cidade, e fazer pintura urbana também, o que de alguma forma conteve seus surtos e desde então, não deu mais dores de cabeça para sua família. Hugh tinha por diversas vezes lhe oferecido um ateliê para que ele pudesse expôr e vender seus desenhos de forma mais profissional, mas Matt sempre recusou.

— Minha nossa, eu preciso ir — o jovem disse, pegando a mochila, os pastéis e o café —, hoje tem umas comemorações na praça central, vai estar lotado de turistas!

— Lembre-se da festa que terá aqui na lanchonete hoje — Hugh disse enquanto ele saía —, Vamos precisar de ajuda a partir das dezessete horas!

— Eu vou estar aqui, pai!  — ele gritou antes de sair pela porta e sumir.

Ele seguiu pela rua principal em direção ao centro, onde passou por alguns de seus desenhos, em forma de grafite nos muros da cidade, cortesia dos comerciantes que sempre o chamavam para cobrir as pichações que as gangues deixavam, com a sua arte.

Chegando ao centro da cidade, ele avistou a catedral e a praça lotadas de turistas, e encontrando algum ponto estratégico montou o seu espaço de trabalho, improvisando um varal para expor alguns desenhos, que logo chamaram a atenção por sua perfeição de detalhes.

O dia se passou com muitas vendas de desenhos prontos e muitos desenhos feitos na hora, de pessoas e paisagens, e era nítido para ele, que a idéia de Karen e Hugh de montar um ateliê era excelente, e estava inclinado a aceitar a proposta desde que pudesse pagar a eles depois pelo investimento.

Pensar neles o fez se lembrar da festa na lanchonete e, olhando no relógio, viu que faltavam quinze minutos para as dezessete horas, então decidiu juntar as suas coisas e ir para lá ajudar nos preparativos. Ele se sentia em dívida com eles por ter dado tanta dor de cabeça na adolescência, e agora aproveitava cada tempo que tinha para se fazer presente e ajudar.

Decidiu fazer um caminho mais curto para voltar, mas logo se arrependeu ao ver umas figuras no beco assim que virou a esquina, mas era tarde demais para voltar, então apenas seguiu em frente, torcendo para que não percebessem a sua presença.

— Olha só se não é o grande artista urbano — uma das figuras lhe dirigiu a palavra, com toda ironia que se pode ter, fazendo-o revirar os olhos e parar —, eu queria mesmo conversar com você!

— Olha Snake, eu só estou de passagem e não quero confusão — Matt disse virando-se e encarando o outro jovem, que se aproximava. No beco também estavam mais sete jovens mais ou menos de sua idade, alguns tinham correntes e lâminas nas mãos e alguns provavelmente estariam portando armas de fogo também.

Billy Snake era o líder de uma das gangues que disputavam o território no bairro, e se achava dono daquela região. Tanto que chegava a cobrar uma espécie de imposto aos comerciantes. Ele e Matt bem como alguns daqueles jovens da gangue estudaram juntos, e o fato de Matt se recusar a fazer parte da gangue era motivo de perseguição a ele.

— Eu vi que você foi contratado pelos comerciantes para cobrir as nossas pichações com sua arte — Snake disse se aproximando —, então quer dizer que você lucra com as nossas ações, e eu acho que nós deveríamos receber algum crédito nisso.

— Cara, eu realmente preciso ir ajudar meus pais —, Matt disse na defensiva —, podemos discutir isso uma outra hora?

— Vejamos o que temos aqui! — Snake disse, puxando bruscamente a mochila que estava em seu ombro e começou a revirá-la, deixando-o sem reação, já que os outros jovens os cercavam.

— Cara, me entrega isso... — ele começou a dizer, dando um passo na direção do outro, mas foi interrompido por um golpe forte na boca do estômago desferido por outro jovem que estava ali, o que o fez curvar-se momentaneamente sem ar.

— Ou o quê? — O agressor gritou, intimidador — Você vai desenhar na gente?

Todos começaram a rir, e Matt mesmo sem ar e tentando se recuperar do golpes escutou as palavras de zombaria, bem como o barulho de seus materiais sendo jogados no chão, e sentiu seu sangue ferver e seu coração se acelerar de modo que não conseguiu conter seu ímpeto de atacar.

Ele se jogou em uma investida cega contra Snake, mas antes que pudesse atingí-lo, um taco pesado atingiu-lhe a testa com um som metálico, fazendo-o perder o equilíbrio e cair de costas no chão imundo do beco. Todos explodiram em risadas e zombarias, e colocando a mão na testa, ele sentiu o sangue quente pulsando e escorrendo do que parecia ser um corte bem profundo.

Por algum motivo ele não sentia dor, estava grogue da pancada e o sangue escorria por cima do olho à medida que tentava se levantar, prejudicando sua visão, e com muito custo ele se pôs de pé, mas se viu no meio dos jovens que faziam uma espécie de roda, cercando-o completamente.

— Cadê o dinheiro dos desenhos que vendeu hoje na praça, Matt — Snake perguntou após revirar toda a mochila, jogando tudo que havia nela no chão —, aqui só tem merda!

— Vá se foder, seu filho da puta covarde! — Matt respondeu sem se preocupar com os capangas que o cercavam.

— Mostrem pra ele quem é que vai se foder! — Snake ordenou, e eles começaram um ataque brutal ao jovem que não tinha como se defender de tantos agressores ao mesmo tempo, e durante alguns minutos que pareceram horas, ele foi duramente espancado pelos capangas que usavam correntes, tacos de baseball e soqueiras. Parando a surra apenas quando ele caiu completamente machucado com as costas apoiadas no muro.

Com os olhos bem inchados e provavelmente algumas costelas quebradas, ele ainda se manteve acordado, e viu Snake pegando um maço de notas em seu bolso e num impulso ele segurou o braço dele com força, mas recebeu um golpe que partiu o seu antebraço, fazendo-o perder a firmeza e soltá-lo. Talvez ele estivesse em choque, porque não sentia dor, mas mantinha o olhar firme em Snake e o que sobrou de sua expressão deformada era pura obstinação.

— Olha só o que temos aqui — Snake disse abaixando-se e pegando um de seus desenhos — é a doce Lilly! Eu a vi outro dia e ela está uma delícia!

— Deixa ela em paz seu desgraçado — ele gritou sem se mexer, e mal mantendo os olhos abertos.

— Esse dinheiro aqui não paga o que nos deve — Snake continuou —, talvez devamos fazer uma visitinha á lanchonete mais tarde!

Matt sentiu seu coração acelerar, a ponto dele ser capaz de escutá-lo. Não era a melhor hora para uma crise de ansiedade, não ali naquela situação. Não aceitaria que eles ferissem sua família, e o modo como aquele bastardo falou de sua irmã o deixou com vontade de arrancar seu coração. Ele queria matar a todos ali, e sentiu a temperatura de seu corpo aumentar e talvez estivesse alucinando, mas podia ver uma fumaça saindo de seu corpo quente em contraste com o clima frio. Ouvia as batidas aceleradas de seu coração, e outras batidas também, várias ao mesmo tempo e em ritmos diferentes. Sentia seu corpo vibrar como quando atacou o garoto no colégio e quase o matou, mas dessa vez era mais intenso, chegava como uma pressão em seu crânio e maxilar. Seus músculos latejavam como quando malhava por horas seguida, e as pontas dos dedos começaram a coçar a ponto de ele querer arranhar a calçada até arrancá-los de vez.

— Que tal irmos comer um pastelzinho rapazes? — Snake continuava a tripudiar, agora colocando o desenho na altura do seu membro, e se movimentando como se estivesse fazendo sexo com ele — E a tia Karen, também não é de se jogar fora!

Ao ouvir essa últimas palavras, Matt sentiu como se as veias de seu cérebro fossem explodir, e a pressão de alguma forma começou a cegá-lo, pois enquanto ele fantasiava em pensamento várias formas de matar aqueles desgraçados, tudo foi se apagando até que não viu mais nada.


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