Capítulo 20 Mariana Bazzi A sacolinha estava no meu colo, como um amuleto. Eu a segurava com tanto cuidado que parecia feita de vidro, enquanto a caixa bonita deixei no chão. Dentro dela, um pedaço do que eu nunca tive direito de viver. Nunca usei o vestido, e na agenda haviam sonhos que talvez nunca conseguisse realizar. Ezequiel me olhava com seus olhos pacientes, protetores, e ao mesmo tempo... tão intensos. Era confuso. Era tudo muito confuso. Ele disse que conhecia o Papai Noel. Meu coração deu um salto. Parte de mim queria acreditar que era só uma coincidência — que o homem gentil de olhar calmo e abraço acolhedor existia mesmo. Que ele poderia aparecer diante de mim e me dar mais um presente. Um olhar. Um afeto. A figura de um pai. De um herói. O jeito como Ezequiel me tocava, como me olhava, como dizia meu nome... não era nada paterno. Era diferente. E por mais que meu corpo começasse a reconhecer isso — a desejar isso —, minha mente ainda gritava de medo.
Capítulo 21 Ezequiel Costa Júnior O sorriso dela ainda estava impresso na minha memória quando saí do restaurante. Leve, doce, e também assustado, mas cheio de esperança. Era como ver uma flor brotar no concreto depois de anos de abandono. Mariana me deu uma chance — pequena, tímida, frágil — mas era uma chance. Ajudei minha bonequinha a se levantar com todo o cuidado do mundo, como se fosse feita de vidro fino. Caminhamos até o carro, e ela segurava a sacolinha como quem segura o passado e o futuro ao mesmo tempo. A cada vez que olhava pra ela sentia uma vontade louca de agarrar, beijar e fazê-la minha, mas eu controlei casa maldito impulso, não entendo como. Quando paramos na porta de casa, eu apenas beijei sua mão. Nada mais. Nada que a pressionasse. Nada que a fizesse recuar, embora meu corpo gritasse de desejo. Só dei aquele beijo leve, carregado de tudo que eu sentia e ainda não podia dizer em voz alta. — Até mais tarde, bonequinha — murmurei, e vi um bri
Capítulo 22 Mariana Bazzi A água quente escorria pelas minhas costas, como se pudesse limpar os medos, as vozes do passado, as memórias partidas que sempre me impediam de seguir. Pedi ajuda à doutora Samira, porque precisava disso. Precisava me libertar. — Como superar esse medo, doutora? — Androfobia não é uma simples aversão, é uma ferida muito dolorida. Um trauma que se instala na alma, te trava e molda seus sentimentos, os pensamentos, até o modo de respirar, instaurando esse medo irracional que você sente. Mas felizmente existe tratamento minha querida. Vamos reconstruir a Mariana aos poucos. Essa escolha de confiar em Ezequiel, ainda que incerta, é um passo enorme. — Eu confio, doutora. Estava com o cabelo molhado e o roupão amarrado quando ouvi barulho de pneus. Muitos. Um som fora de lugar para o final da tarde. Fui até a janela, puxei levemente a cortina. E o que vi me fez perder o ar. Haviam carros chegando de todos os lados, como um enxame de abelhas
Capítulo 23 Mariana Bazzi A doutora Samira olhou nos meus olhos, tentando manter a calma, mas a tensão era visível até em seus ombros tensos. — Eu não tenho certeza, querida — respondeu com a voz baixa, mas firme. — Sou clínica geral e terapeuta comportamental. Esses são os médicos oficiais do Don. Apenas eles têm permissão para casos mais graves. E, pelo visto, Ezequiel está inconsciente. Meu peito apertou. Dei um passo instável para frente. — Mas o que aconteceu com ele? — perguntei num sussurro. Mal terminei, e a voz de Yulssef atravessou a conversa: — Sofreu um acidente. Nossos homens o seguiam como de costume. Um caminhão atravessou um cruzamento e bateu praticamente de frente. O socorremos de imediato, e já estou averiguando tudo — falou bem rápido. Levei a mão à boca, o coração disparado. Fui instintivamente para perto da doutora, e ela segurou minha mão. Só percebi que estava apertando demais quando ela reprimiu um gemido e levou a outra mão aos lábios
Capítulo 24 Mariana Bazzi Me aproximei da cama devagar. O jantar que ele prometeu agora parecia uma lembrança distante. — Não durma tanto — murmurei, tentando conter as lágrimas. — Você combinou de fazer eu me apaixonar por você. Como pretende fazer isso deitado, hein? Fechei os olhos com força por um instante. Senti que a doutora me observava, mas não importava. Precisava que ele ouvisse... mesmo que não pudesse responder. Puxei uma cadeira, me sentei ao lado da cama e fiquei ali. Vi um movimento pela janela. Um homem parado do lado de fora. Era alto, com a pele marcada por uma cicatriz que cortava o rosto de cima a baixo. A expressão era fria, os olhos sombrios. A maneira como ele me olhava me arrepiou inteira. — Quem é aquele lá fora? A doutora se virou calmamente. — É o Aaron. Ele trabalha aqui. Antes era... prisioneiro. Cometeu atrocidades. Mas hoje apenas cumpre ordens. Não se preocupe, ele não vai te fazer mal. Assenti devagar, sem desviar os olhos
Capítulo 25 Mariana Bazzi — Doutora! — chamei, abrindo a porta com força. — Acho que ele mexeu os dedos! Eu juro, doutora, ele mexeu a mão. Samira se virou imediatamente, alarmada, e chamou os médicos. Em poucos segundos, o quarto ficou cheio de vozes técnicas e passos apressados. Me afastei para o canto, ofegante, o coração disparado com aquela fagulha de esperança. — Ele reagiu... eu senti. Ele apertou minha mão. O médico mais velho colocou os óculos, ajeitou o estetoscópio no pescoço e se aproximou da cama. Um segundo depois, a monitoração foi revisada, os reflexos verificados, os comandos de teste repetidos. — Pupilas normais. Sem resposta voluntária aos estímulos — murmurou ele. Depois se virou para mim com aquele olhar calmo demais, como quem já está acostumado a matar esperanças. — Foi uma impressão. Reflexo muscular, talvez. A mente dele ainda está em repouso profundo. — Não foi impressão — insisti, sentindo o sangue ferver. — Eu sei o que senti! Sami
Capítulo 26 Mariana Bazzi — Yulssef diz a verdade! Não é bem assim — pedi com o corpo todo trêmulo. — Não sei exatamente qual é o esquema com ela, porque sei que gosta dela, mas de qualquer forma é sua! — estranhei a verdade da forma como o Consigliere falou. — Cadê a Raquel? — Ezequiel pediu por ela, mudando o assunto. — Tem certeza que quer vê-la? — Yulssef questionou. — Se ainda sou eu que mando nessa porra, me traga a Raquel! — falou mais alto, embora eu tenha reparado que mal conseguia se mover. Yulssef fez sinal. — Vamos deixar os médicos dele examinarem, depois vocês voltam, ok? — eu não sabia o que dizer. Apenas segui a doutora Samira. O Consigliere saiu conosco e praticamente me escondi atrás da médica para ficar longe. — Pelo que os médicos já me disseram, ele perdeu as memórias recentes. Não sei até que ponto se lembra, mas percebi que sua mente está confusa. — Quem estava com ele quando abriu os olhos? — a doutora perguntou.
Capítulo 27 Mariana Bazzi A cozinha era grande, moderna, cheia de utensílios que eu nunca tinha usado na vida. O cheiro de cebola refogada me fazia lacrimejar, mas o que me fazia tremer mesmo era a lembrança do olhar de Ezequiel. Vazio. Frio. A doutora Samira não saiu do meu lado nem por um segundo. Quando um dos soldados se aproximou da entrada da cozinha, ela fez questão de mostrar o crachá, a autoridade. A cozinha era minha — pelo menos por agora. — Vai ficar tudo bem — ela sussurrou, cortando os legumes comigo. — Ele tá confuso. Não é você que ele quer machucar. — Mas e se for? — perguntei, sem tirar os olhos da panela. Minhas mãos tremiam tanto que quase derrubei a cenoura picada. Samira suspirou, mexendo o caldo. — Então você vai estar comigo. Eu vou te proteger. Quando a sopa ficou pronta, eu mal conseguia sentir o cheiro do que preparei. Estava zonza, tensa, com os braços doloridos de tanto conter o pânico. Ainda assim, enchi a tigela com cuidado, segura