CAPÍTULO - 2

Quando um certo alguém

Cruzou o teu caminho

E te mudou a direção...

Certo Alguém – Lulu Santos

Rodrigo

            Eu não esperava reencontrar aquela ignorante novamente nem tão cedo. Tinha visto a rua em que ela entrou, mas como eu poderia imaginar que tivesse ido para a mesma casa que eu também iria? Minha mãe bem que podia passar a selecionar melhor as visitas dela!

            — Rodrigo! — Por falar em mãe, ela voltou a me chamar pelo nome.

Então, desviei o olhar daquela esquisita de cabelo azul e finalmente olhei para a minha mãe. Ela tinha envelhecido consideravelmente desde a última vez em que nos vimos. O fato de ela estar em uma cadeira de rodas indicava que o AVC que sofrera, de fato, tinha sido sério. Fui até ela e me abaixei ao seu lado, dando-lhe um beijo no rosto. Mas ela não permitiu que eu voltasse a me levantar, pois envolveu o meu pescoço em um abraço que quase me sufocou.

— Meu filho, como é bom te ver!

— Oi, mãe! — Com um pouco de esforço, consegui voltar a me levantar. — Desculpe não ter vindo antes. Estava em um show em Brasília quando me ligaram.

— Ah, por que foram te incomodar? Não gosto de dar trabalho... Não acho justo estar perturbando você e a Karen.

Franzi a testa, ainda levando alguns segundos para me lembrar quem diabos era essa tal de Karen. Claro, a sobrinha do meu padrasto. A menina dos olhos da minha mãe! Tive muito pouco contato com ela, na adolescência. Mas tinha sido mais do que suficiente para eu não ir com a cara dela, nem ela com a minha.

— Também, mãe, depois de tudo o que você fez por aquela garota, o mínimo que ela podia fazer era voltar pra casa pra cuidar de você, né?

A moça de cabelo azul, que continuava de pé próxima à porta, voltou a se manifestar:

— E foi exatamente o que eu fiz, já que ela não tem um filho que faça isso por ela.

Eu a olhei e ainda levei alguns instantes para reconhecê-la. Lógico, a Karen! Ela tinha crescido, ganhado belas formas, pintado o cabelo, mas aquela cara de raiva com a qual sempre me olhava... Ah, continuava a mesma! Nesse momento, tudo fez sentido!

— Claro! Isso explica a sua total falta de educação lá fora!

Ela cruzou os braços e inclinou a cabeça para o lado. Outra pose que ela já fazia desde novinha.

Minha falta de educação? Foi você que esbarrou em mim e sequer pediu desculpas ou me ajudou!

— Eu nunca nem consigo pedir desculpas quando esbarro em uma mulher. Elas me olham, me reconhecem e surtam. Fiquei esperando alguma reação parecida da sua parte.

— E por que razão eu surtaria ao te reconhecer?

Achei que o motivo fosse bem óbvio. Ainda assim, minha mãe se deu ao trabalho de explicar:

— Ah, minha filha... Sabe que o Rodrigo é muito famoso. As meninas realmente ficam loucas com ele.

— Isso é somente porque elas não o conhecem de verdade. Ah, claro, e porque têm um péssimo ouvido para música!

Nossa, quanta má vibração emanando de uma pessoa só!

Mas não iria perder tempo com isso.

— Bem, eu só vim até aqui para conversar com a minha mãe. Então, se você me der licença...

— Mas é muita cara de pau! Você quer que eu saia pra te deixar sozinho com ela? Mas de jeito nenhum!

— Ela é minha mãe, acho que mereço alguma privacidade para conversar a sós com ela, não acha?

— Não, eu não acho! Tia, diga alguma coisa!

Ambos olhamos para a minha mãe. Ela me olhou por um momento, antes de olhar para a esquisita e, para a minha completa satisfação, pedir:

— Por favor, querida. Nos dê uma horinha, apenas.

Abri um sorriso satisfeito. E essa satisfação apenas aumentou quando Karen bufou.

— Uma hora, nem um minuto a mais. E se você fizer ela chorar, eu acabo com a sua raça.

E ela saiu, nervosinha, batendo a porta.

Enfim, estava a sós com a minha mãe e poderia contar a ela o motivo da minha visita.

Na verdade, apenas o que a interessava. O real motivo eu ainda guardaria apenas para mim.

*****

Karen

            Enquanto andava, acabei chutando algumas pedras pelo chão, terrivelmente irritada com o que tinha acabado de acontecer. Sentei um pouco na praça e fiquei observando a festa que os pombos faziam com restos de comida jogados no chão. Olhei para o relógio achando que já tinha se passado meia hora, quando na verdade tinha sido apenas uns cinco minutos.

Uma hora... O que eu faria pela rua em um intervalo tão grande? Além é claro, de ficar desejando que o tal Rodrigo morresse engasgado em seu próprio veneno e jurando que eu mesma o mataria caso ele fizesse a minha tia chorar.

Decidi que, devido à minha escassez de amigos na cidade em que vivi durante grande parte da minha vida, eu iria fazer uma visita ao único amigo que tinha por lá. Esperava não atrapalhá-lo no trabalho. Fui até a oficina do bairro e, logo na entrada, encontrei com o dono: seu Carlos, um senhor negro, da idade da minha tia, que era uma das poucas pessoas naquela cidade que pareciam gostar de mim.

— Mas olha quem está aqui! Quando o Pedro me contou, eu custei a acreditar!

Fui até ele e o abracei, embora sob os protestos que ele fez, por estar sujo e suado e poder vir a me sujar também. Não me importei. Eu não tinha muitas pessoas de quem eu realmente gostasse ao ponto de abraçar, e o seu Carlos era uma delas.

— Pois é... A peste de Valença está de volta! — Lembrei do apelido que ele mesmo usava para se referir a mim. — Encontrei com o Pedro agora há pouco e ele disse que estava vindo pra cá. Queria muito rever o senhor também.

— Claro, Karen... Vou fingir que eu acredito que você veio até aqui para ver esse velho. Anda, aproveita que hoje estamos com pouco serviço. O Pedro está lá dentro.

— Que absurdo, seu Carlos! É lógico que vim aqui para ver o senhor!

Ele cruzou os braços e forçou uma carranca séria para me olhar. Rendida, acabei rindo e confessando:

— Tá, vim falar com o Pedro. Mas eu vim ver o senhor também, oras!

— Já me viu! Vai logo falar com aquele magrelo antes que eu me arrependa e arrume um monte de trabalho pra ele!

Sorrindo, dei um beijo no rosto de seu Carlos e entrei correndo pela porta da oficina. Pedro estava de costas para mim, com uma vassoura na mão, varrendo o chão em uma preguiça contagiante. Seu Carlos tinha sido otimista ao dizer que estavam com pouco trabalho. Aparentemente, não tinham trabalho nenhum!

Corri até o Pedro e, como fazia nos tempos de adolescência, dei um pulo nas costas dele, ao mesmo tempo em que gritava um “Bu!” na tentativa sempre fracassada de assustá-lo.

Ele se virou e sorriu ao me ver.

— Olha... e não é que você ainda está na cidade?

— Seu bobo! Eu não disse que vim pra ficar? Ao menos por uns bons meses você terá que aturar a minha presença por aqui.

— Não será nenhum sacrifício. Mas o que está fazendo aqui? Não que eu não goste da sua visita, mas... deixou a dona Sandra sozinha?

— Antes tivesse deixado. Acredite, se ela estivesse sozinha, eu ficaria muito mais tranquila.

Fui até o velho banco de madeira que ficava no canto da oficina e me sentei. Deixando a vassoura junto à parede, Pedro se sentou ao meu lado, preocupado.

— Aconteceu alguma coisa com a dona Sandra?

— Aconteceu que o babaca do filho dela voltou.

— O tal Rodrigo?

— É. Chegou lá cheio de pompa, já querendo ficar a sós para conversar com ela. Dei uma hora para eles... Mas já estou arrependida. Já estou louca pra voltar!

— Assim, Karen... Eu sei que ele é um idiota, mas... É filho dela. É normal que esteja preocupado com a mãe.

— Ele nunca se preocupou com a minha tia. Não tenho motivos para acreditar que esteja preocupado agora.

— Mas ela quase morreu. Acho que esse é um motivo relevante para ele colocar a mão na consciência.

— Duvido que aquele babaca tenha alguma consciência para colocar a mão. Ele nunca ligou para a minha tia, desde moleque! Minha tia é uma professora aposentada, sobrevive com o pouco que recebe de aposentadoria... E ele, mesmo nadando em dinheiro, não ajuda em nada!

— Dona Sandra uma vez me disse que o filho estava sempre ligando para oferecer ajuda.

— Ah, é claro... Ele liga uma vez ou outra perguntando se ela “está precisando de alguma coisa”. Você conhece a minha tia, não é? É claro que ela sempre diz que não, que está tudo bem.

— Você sabe que eu não tenho mais a minha mãe. Por isso mesmo eu não consigo compreender como um filho... ainda mais o filho de uma senhora tão adorável como a dona Sandra... possa ser assim.

Movi a cabeça, concordando. Conseguia sentir a dor evidente na voz de Pedro todas as vezes em que ele mencionava a mãe, que tinha morrido quando ele ainda era criança.

Já que ele tinha se dado a chance de um desabafo, eu também fiz o meu:

— Eu não faço ideia de onde esteja a minha mãe, e, na boa... Também não me importo, porque a tia Sandra é a mãe que me basta. Quando eu fui para o Rio de Janeiro tentando viver de música, meu sonho era conseguir algo que me desse a oportunidade de dar uma vida melhor para a tia Sandra. Porque ela merece tudo de melhor nesse mundo. E aquele babaca não enxerga isso!

— Mas você foi criada por ela, Karen. O Rodrigo não. Ele foi criado em outra cidade, pelo pai, que deveria envenená-lo contra a mãe.

— Eu entendo que ele possa ter sido influenciado pelo pai quando criança ou adolescente, mas... Não agora, Pedro! Já tem anos que o pai dele morreu e ele hoje é um homem adulto. Não existe mais nenhuma desculpa para se comportar assim.

Ele não disse nada, mas pareceu concordar com a minha opinião. Já cansada de tudo aquilo, decidi mudar de assunto:

— Mas, e você, como está?

— Trabalhando muito, como você pode ver! — Ele abriu os braços, demonstrando, com ironia, que não havia um único carro por ali.

— Os negócios não vão muito bem, não é?

— É, são tempos difíceis. Mas a gente não desiste, não. Sabemos que vai melhorar.

— É, sei que vai. O seu Carlos já tem essa oficina há tantos anos... e lembro que já passou por outras fases complicadas. Mas, no fim, tudo melhora.

— É, ele sempre diz isso também.

— E, fora o trabalho, como anda a vida?

— Não mudou muita coisa desde a última vez em que você esteve aqui. Só que a Malu e eu não demos muito certo. Ela foi embora da cidade e... eu tenho curtido a minha solteirice desde então.

— Então o terror das menininhas de Valença está de volta?

— Mais sexy do que nunca, baby!

Ele fez graça, passando a mão pelos cabelos, e nós dois rimos juntos. Era uma piada, mas veio na minha garganta a vontade de dizer que ela tinha um grande fundo de verdade... ou uma verdade inteira. Ele realmente estava mais sexy do que nunca! Quando cheguei, reparei que seu Carlos ainda o chamava de “magrelo”, como fazia nos velhos tempos em que Pedro era um garoto extremamente magro e fraco. Mas isso tinha ficado para trás, perdido no passado. Agora, ele tinha dobrado de tamanho em pura massa bruta. Ele brincava que o trabalho na oficina era melhor do que qualquer rotina de musculação, mas a verdade é que ele também malhava. Se esse hábito não tivesse mudado, ele, além da academia, ainda deveria correr por mais de uma hora todas as manhãs, antes de ir para a oficina. Isso ajudava a manter aquele corpo perfeito.

Mas eu não podia negar que já gostava dele desde os tempos em que era um magrelo. Acho que desde aquele dia, aos doze anos, em que nós trocamos o nosso primeiro beijo. Pedro foi o meu primeiro amor, o meu primeiro beijo... e eu sabia que tinha sido o dele também. Só não foi o primeiro em outras coisas porque o nosso namorico de infância não tinha durado tempo suficiente para isso. Infelizmente, já que eu continuei a ter a minha quedinha por ele.

Era horrível perceber que ainda tinha. Ou, talvez, nem tão horrível assim, já que eu estava de volta à cidade e ele não tinha mais aquela namorada insuportável. Porém, no fundo eu sabia que tentar qualquer coisa seria um enorme risco que eu não sabia se estava disposta a correr. Eu amava aquela nossa amizade. Estar perto dele, mesmo que só assim: sentados um do lado do outro, conversando sobre nossas vidas e nossos problemas, já me trazia uma sensação de reconforto tão forte, que talvez algum outro tipo de relacionamento não fosse capaz de trazer. Talvez a graça fosse simplesmente o fato de ser platônico...

Ou não. Ainda tinha as minhas dúvidas com relação a tudo aquilo.

Pelo portão da oficina, entrou o seu Carlos, parecendo animado. Logo atrás dele veio um carro, e nós rimos, compreendendo a animação. Finalmente, um serviço para começar o dia!

Anunciei que os deixaria sozinhos e me despedi com um beijo no rosto de cada um. Quando cheguei à rua, olhei o relógio. Ainda faltavam vinte minutos. Sai andando devagar, o que eu sabia que me faria levar metade desse tempo até chegar em casa. Era o máximo que eu poderia fazer, já teria dado cinquenta minutos àquele babaca. Muito mais tempo do que ele merecia!

Ai dele se reclamasse!

*****

Abri a porta devagar, estranhando o silêncio daquela casa. Logo me senti preocupada. Não tinha tevê ou rádio ligados, não tinha conversa, não tinha choro... não tinha som algum! O único barulho que ouvi, aliás, foi o de papel, como uma página de jornal ou revista sendo virada. Quando olhei para a sala, vi a cabeça masculina de cabelos castanhos e arrepiados do sujeito que estava sentado no sofá. Me aproximei, deparando-me com o Rodrigo, folheando tranquilamente uma revista.

— Você disse uma hora — ele comunicou, sem tirar os olhos do papel. — Voltou onze minutos antes.

Tive uma ideia de onde queria mandá-lo enfiar aqueles onze minutos, mas decidi que tinha algo muito mais importante para ser dito:

— Cadê a minha tia? O que você fez com ela?

— O que você acha? Que eu a matei e enterrei o corpo no quintal? — Arregalei os olhos e juro, juro que cheguei a pensar em correr para os fundos do quintal, para confirmar se ele não tinha de fato feito aquilo. Foi uma ideia catastrófica e desesperada, eu sei! — Fica calma que eu não sou o monstro que você acha que eu sou. Ela está no quarto dela.

Agora sim, com a resposta correta, eu saí correndo até o quarto. No fundo eu não acreditava que ele a mataria, mas não podia confiar que não tinha machucado os sentimentos dela. Quando abri a porta do quarto, achei que encontraria a minha tia deitada na cama, chorando, mas me enganei. Ela estava em sua cadeira de rodas, fazendo um grande esforço para pegar as roupas de dentro do armário e colocá-las dentro da mala aberta no chão. Que diabos ela estava fazendo?

E, o mais incrível: ela cantarolava enquanto fazia isso. Parecia... feliz!

O Rodrigo deixar a minha tia feliz era algo, no mínimo, surpreendente!

Ela me olhou, enfim percebendo a minha presença ali. E sorriu.

— Ah, minha querida, que bom que voltou! Como eu sei que sou devagar, ainda mais com essa cadeira de rodas, eu comecei a fazer minha mala antes de você chegar. Mas não se preocupe, pode fazer a sua com calma, porque o Rodrigo me disse que só iremos amanhã de manhã.

— “Iremos” para onde, tia? Por que está fazendo a sua mala? Que papo louco é esse?

— Ele não te contou?

Na verdade, ele tinha me dito que tinha matado ela e enterrado o corpo no quintal. Mas isso, apesar de ser uma brincadeira – de muito mau gosto, mas ainda assim uma brincadeira – não era algo que eu me sentiria a vontade de contar a ela.

            — Não, ele não contou nada, tia. Pode me explicar o que está acontecendo?

            Ela segurou a minha mão junto às suas e, emocionada, contou:

            — O Rodrigo quer que eu vá morar na casa dele.

            Senti que arregalei os olhos, completamente em choque com o que tinha acabado de ouvir.

            — Como é?

            — Cheguei a dizer que não, minha querida. Você sabe bem que eu não gosto da ideia de atrapalhar a vida dele. Mas ele me disse que a casa fica vazia a maior parte do tempo, já que ele vive viajando, e que para ele seria até bom, porque, quando eu estiver recuperada, vou poder administrar a casa enquanto ele estiver fora.

            Numa atitude de descontrole, eu ri. Então era isso: o babaca estava precisando de uma governanta e usaria a mãe para isso? Só podia ser esse o motivo. Afinal, algum motivo tinha que existir. Não era bondade, muito menos por preocupação com a mãe. Ele nunca teve nenhuma das duas coisas.

            Minha tia continuou a falar:

            — E é claro que eu disse que você iria comigo e ele não se opôs.

            — Ah, como ele é gentil de não se opor! — Fui irônica. Vai ver, além de governanta, ele também queria uma arrumadeira.

            Soltei a mão da minha tia e, irritada, voltei para a sala. Arranquei a revista das mãos daquela peste e apontei-lhe o dedo indicador.

            — Disse que vai levar a minha tia para a sua casa? O que você está pretendendo com tudo isso?

            Ele não moveu um único músculo da face. Continuou me olhando com jeito de peixe morto, como se nada estivesse incomodando-o. E foi com a voz igualmente calma que ele respondeu:

            — Vou levar a minha mãe doente para a minha casa, porque essa é a forma que encontrei de poder cuidar melhor dela.

            — E eu posso saber desde quando você se importa em cuidar dela?

            — Ela é minha mãe, oras.

            — Você nunca se importou a mínima com ela!

            — E não posso me importar agora? Pelo amor de Deus, Karla...

            — Meu nome é Karen!

            — Tá... Karen. Pensa comigo no que você acha que é melhor para ela. Eu tenho um apartamento enorme em São Paulo, perto de tudo... inclusive de hospitais com uma ótima infraestrutura para o caso de alguma emergência. Ela terá motoristas à disposição, empregadas... e pretendo contratar, também, enfermeiras para cuidarem dela. Ela terá todo o cuidado do mundo... o que você não tem como dar a ela aqui neste caixote que vocês chamam de casa.

            — Eu não tenho motivos para acreditar nas suas boas intenções.

            — E não precisa acreditar. Só precisa pensar no que é melhor para ela.

            Abri a boca para retrucar, mas minha voz travou na garganta quando ouvi minha tia dizendo, com aquele jeito preocupado dela:

            — Vocês estão brigando por minha causa?

            Virei-me e quase desmoronei com a cena que encontrei. Ela estava em sua cadeira, bem no meio do corredor, olhando-nos com os olhos já transbordando de lágrimas e com as mãos trêmulas. Ela não podia ter aquele tipo de emoção, não no estado em que estava.

            O babaca do filho dela, quem diria, foi mais rápido em tentar acalmá-la:

            — Que brigando o quê, mãe! Imagina! A Karla é que tem a voz muito alta. Estávamos apenas conversando.

            — Meu nome é Karen! — corrigi, novamente falando alto demais. Respirei fundo tentando me acalmar. — Ouça, tia... Não estamos brigando. Apenas estamos discutindo essa proposta tão repentina do seu filho. Eu não posso deixar que você vá assim para a casa dele.

            — Mas eu não vou sozinha, minha querida. Você vai junto!

            Deixá-la sozinha aos cuidados daquele babaca não era uma opção. Mas ir para a casa dele também não era, de jeito nenhum!

            — Sem chances de eu ir para lá, tia.

            — Ah, minha querida... pense! São Paulo é uma cidade cheia de oportunidades... você teria grandes chances de batalhar a sua carreira.

            — Carreira, é? — O babaca se manifestou. Percebi que ele me olhava com curiosidade. Aparentemente, não sabia nada a meu respeito. O que era muito curioso, já que, nas vezes em que ligava, eu ouvia a minha tia tagarelar com ele a respeito de tudo, contando nossa vida inteira. Isso só mostrava o quanto ele dava atenção ao que ela dizia. — E o que a mocinha faz? É escritora? Atriz?

            — Ela é cantora! — Minha tia contou, orgulhosa.

            Ele me analisou de baixo a cima e sorriu com o canto dos lábios, de um jeito irônico.

            — Cantora, é? Que coisa... é uma carreira bem difícil.

            — Eu não diria difícil — retruquei. — É apenas injusta. Às vezes idiotas sem talento algum acabam conseguindo e tirando o lugar de quem de fato merece.

            Percebi que, embora aquele maldito sorriso continuasse em seu rosto, ele tinha sentido fundo a indireta. Não me importei e voltei a olhar para a minha tia.

            — Tia, por favor... Pense bem se a senhora realmente quer isso.

            — Ah, minha querida... O Rodrigo me pediu com tanto carinho, com tanto empenho... Que eu não pude dizer não. Mas eu não vou se você não for, então, está em suas mãos.

            Eu não conseguia entender o que aquele cara pretendia e adoraria gritar que havia alguma má-intenção oculta no pedido, que não queria ir, que não queria que ela fosse... Mas eu não poderia obrigá-la a negar algo que, eu via no rosto dela, a fazia feliz. A oportunidade de ficar próxima ao filho era tudo o que ela sempre tinha sonhado durante toda a vida. Eu sabia que ela não estava se importando para o conforto ou as facilidades de uma cidade grande, nem mesmo para o que aquilo poderia representar de melhora em sua saúde. Ela só queria ficar perto do filho.

            Mas eu não confiava nele e, sendo assim, jamais a deixaria sozinha. Por mais raiva que eu pudesse sentir – e eu sentia, muita! – precisei concordar com aquela ideia absurda. Tia Sandra vibrou, feliz, e voltou ao quarto, para continuar a arrumar a mala. Ficando sozinha com Rodrigo, voltei a encará-lo.

Rodrigo

            Eu ainda olhava para a porta do quarto onde minha mãe tinha acabado de entrar, quando senti as más-vibrações vindas da pessoa ao meu lado. Não foi surpresa, ao olhá-la, perceber que me encarava com um ódio latente. Temi que ela voltasse a gritar feito louca, como tinha feito minutos antes, mas, para a minha sorte, ela passou a falar mais baixo:

            — Vai, fala logo, o que é que você está querendo com isso?

            Mas quanta insistência! Quantas vezes eu precisaria responder à mesma pergunta?

            — Garota, não estou fazendo nada além da minha obrigação de cuidar da minha mãe. Você deveria estar feliz por ela.

            — Eu estaria feliz se não tivesse a certeza de que em algum momento ela vai quebrar a cara com você.

            — Ninguém vai quebrar a cara. E, em vez de ficar insistindo nisso, por que você não prepara um almoço pra gente, hein? Tô morrendo de fome!

            Ela me fuzilou com os olhos e eu bem que acharia graça se aquilo não me parecesse trágico. Digo, não a ameaça ocular em si, mas o fato de ser olhado daquele jeito por uma mulher. Eu levava uma carreira de sucesso há alguns anos e, desde então, estava acostumado a ser ovacionado e idolatrado, principalmente naquele momento, em que eu emplacava meu novo hit há semanas consecutivas no top 10 de todas as rádios do país, em que eu estava nas capas das principais revistas, cumprindo uma agenda apertada de shows e participações em programas de tevê. Eu estava mais em alta do que qualquer outro artista no momento, nenhuma pessoa comum ousava me tratar daquela maneira tão rude. Mas aquela garota era diferente... ela realmente parecia me odiar!

            Achei sinceramente que ela me responderia dizendo que, se dependesse dela, eu realmente morreria de fome. Mas acho que ela lembrou que a minha mãe, e ela provavelmente também, não havia almoçado. E, com isso, decidiu ir mesmo para a cozinha, não sem antes resmungar um xingamento do pior calibre.

            Voltei a me sentar e a folhear a mesma revista de antes. Que engraçado... não tinha nenhuma matéria a meu respeito.

            Entediado, a joguei de volta no revisteiro da sala e peguei o celular para me distrair. Pensei em usar a internet, mas sinal do meu 4G não funcionava por ali. Sendo assim, perguntei, com a voz alta para ser ouvido da cozinha:

            — Pode me passar a senha do Wi-fi?

            — Vai-para-o-inferno! Tudo junto.

            Cheguei a achar que fosse sério e inseri a frase no campo da senha. Deu como inválida. Decidi que era melhor não insistir e passar o meu tempo com algum joguinho off-line.

            A cada instante que passava, mais eu tinha certeza de que a garota do cabelo azul realmente não gostava de mim.

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