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Capítulo 3 – A Perseguição

O negro de admirável porte físico, excelente cavaleiro, de boa pontaria e sem nenhum escrúpulo seguiu viagem determinado a não voltar sem sua presa. Luz corria perigo, a ordem dada foi bem clara: A fugitiva deveria ser trazida de volta ao seu antigo dono, a qualquer peço, a qualquer custo. E isso seria feito ao pé da letra, ele estava determinado a mostrar um bom serviço.

 No mesmo momento em que o novo perseguidor da fugitiva partia no seu encalço, na pequena e distante propriedade onde ela se encontrava protegida pelo novo amigo o perigo se aproxima, quando dez dos homens enviados à sua procura encontram o esconderijo e, mesmo sem saber ao certo se ela estava ali, resolvem investigar. Aquele que parecia ser o líder do bando se aproxima da casa e busca a presença do morador.

— Ó de casa, bom dia!

 O casal se assusta com a chegada dos jagunços. De imediato Florêncio pede a Luz que se esconda, indo ao encontro dos mesmos em seguida.

— Bom dia, em que posso lhes ser útil?

— Bom dia. Estamos fazendo uma busca pela região à procura de uma escrava que fugiu das terras do Barão do Café, sinhozinho Dionísio Dantas. Pensamos se o amigo de certa forma não poderia nos repassar alguma informação que ajudasse na captura da fugitiva?

— Sinto muito, mas até o momento não tenho visto ninguém passando por aqui nestes últimos dias, os senhores são os primeiros que passam nesta direção

— Tá certo! Desculpe o incômodo, seguiremos nosso caminho.

— Sinto por não poder prestar qualquer ajuda

— Sem problemas, mas com certeza outros poderão vir nessa direção, pois muitos homens foram designados a sair nessa busca à escrava desaparecida. Se souber de alguma novidade não deixe de colaborar, pois negar qualquer informação ao Barão é perigoso!

 — Compreendo, certamente que farei isso, não desejo inimizades com meus vizinhos

Havendo despachado os jagunços retorna para o interior da casa e alerta Luz do perigo que estarão correndo caso permaneçam ali.

 Porém, sair em fuga seria arriscado naquele momento, visto que não poderia saber ao certo onde eles estariam de tocaia

— Mas eles já foram embora, não devíamos aproveitar e sair logo daqui antes que decidam voltar?

— Não, pois acredito que eles duvidaram de minhas respostas. Com certeza ficarão de tocaia aqui por perto para ver se falei a verdade ou se tentei enganá-los

— Miseráveis!

— Só não invadiram a casa para se certificarem quanto a veracidade de minhas palavras para não dar na cara que duvidaram. Permitem que tentemos sair em fuga, assim eles nos pegariam com enorme facilidade

— Você tem toda razão, vamos permanecer aqui sem que eles percebam minha presença até que desistam e vão embora

— Sim, faremos dessa maneira

 Enquanto isso, não muito distante dali Justino era o único herdeiro de Ambrósio e Benedita, o mesmo casal que por não concordar em passar informações sobre onde estaria a fugitiva que ousou escapar das garras do poderoso Barão do Café acabou sendo espancado e queimado ainda vivo dentro de sua própria casa pelos homens de Dionísio.

Depois de ser notificado pelos criados de seus pais que escaparam ilesos do ataque, retornou acompanhado de pelo menos cinquenta homens a antiga região onde nasceu e de onde havia saído cerca de dez anos para se tornar um homem de sucesso nas terras do ouro. Lá prosperou e foi bem-sucedido nos seus propósitos, tornou-se um grandioso comerciante e recebeu o título de Conde, casou-se com Gabriela, uma importante condessa, oriunda de família abastada.

 Seu retorno se dava em busca de desvendar a causa da morte dos pais e fazer a devida punição sobre os culpados e os cinquenta homens que o seguiram até a propriedade de Ambrósio, seu pai assassinado. Eram todos militares fornecidos como sua guarnição particular pelo imperador. Ao chegar ali foi recebido pelos negros que o deixaram a par da situação. Ciente da forma covarde como seus genitores foram atacados e mortos separou a guarnição em quatro grupos e os enviou nas direções Leste, Oeste, Norte e Sul à procura dos criminosos.

A ordem dada foi que prendessem e levassem até a sua presença todo e qualquer suspeito encontrado naquelas terras, desde que montasse a cavalo e estivesse armado, podiam usar da força e até revidar possíveis ataques dos que se negassem à rendição. O cenário era dos piores, de um lado vários jagunços no encalço da fugitiva do poder dos Dantas. Do outro dezenas de militares espalhados pelos quatro cantos da região no intento de capturar os responsáveis pela morte do casal de idosos.

 Sem esquecer de Luz, a jovem que por não suportar a vida de abusos sofridos nas mãos de seu senhor decidiu fugir do sofrimento. Durante dois dias ela permaneceu escondida na casa de Florêncio que de vez em quando saia pelo terreno a executar algumas tarefas, como a capina do lugar ou a plantação de algumas sementes no espaçoso quintal, apenas para despistar seus observadores, dando-lhes a impressão de realmente se encontrar sozinho na propriedade caso estivesse mesmo sendo observado.

Ao concluir o tempo previsto preparou a montaria e fingiu sair na direção da cidade mais próxima no intuito de que fosse seguido ou que com isso os bandidos tentassem entrar na casa para se certificar de que a escrava realmente não estaria se escondendo no local, dessa forma sairiam da tocaia e acabaria a dúvida quanto a permanência deles nas proximidades. O rapaz era esperto e levou consigo uma arma de grosso calibre e muita munição.

Fingiu sair a galope, mas retornou por outro desvio e se posicionou próximo do imóvel de forma a poder realizar alguns disparos caso os perseguidores da jovem ousassem surgir de repente para invadir sua casa. Após algumas horas o esperado aconteceu, os jagunços apareceram em número de quatro e posicionaram-se frente as portas.

 Nisso, tornou-se impossível combate-los ao mesmo tempo. No entanto, pensou que se atingisse os dois que estavam no terreiro os outros invadiriam pelos fundos e seria inevitável impedir a captura da moça sem coloca-la em risco. Mas, o que ele não sabia é que Luz não era do tipo que se rendia sem lutar e ao perceber o cerco armou-se com uma espingarda que encontrou no esconderijo, mandando bala nos invasores.

 Ao perceber o ocorrido Florêncio disparou quase que simultaneamente contra os jagunços que se encontrava na sua mira. Um dos que estavam nos fundos foi atingido pelos tiros dados por Luz, enquanto os dois posicionados na parte frontal foram mortos pelos disparos do proprietário da casa e um quarto elemento saiu correndo mata a dentro, perseguido pelo atirador que desejava terminar o serviço. Entretanto, haviam várias armadilhas fatais espalhadas por toda floresta, armadas na finalidade de pegar animais as feras que pudessem ameaçar seus animais ou caças com as quais se alimentava.

Infelizmente, o jagunço foi apanhado de surpresa por uma delas, caindo numa profunda cova onde haviam enormes varas em forma de lanças e ficou estrepado em quatro delas. Seu grito de dor que se espalhou pela floresta indicava que sua fuga havia chegado ao fim, agora era retornar para ver como a moça se encontrava. Somente depois do acontecido deu conta que ao perseguir o inimigo deixou Luz sozinha e em perigo, sentindo a necessidade de se desculpar.

 — Desculpe por tê-la deixado sozinha e ido em perseguição daquele jagunço, é que não queria que ele escapasse

 — Não precisa se desculpar, no seu lugar teria feito o mesmo

 — Ficaram apenas os quatro na tocaia, esperando que você aparecesse lá fora ou que eu saísse e pudessem invadir, sabiam que eu menti ao dizer que não havia lhe visto

 — Ainda bem que não permaneceram todos, não daríamos conta

 — Mas com certeza voltarão em breve, devem ter ido apenas fazer uma varredura nas redondezas e se ouviram os tiros já estão a galope

c— Certamente que sim, vamos cuidar em dá no pé antes que cheguem

Rapidamente os dois prepararam os animais e partiram, deixando tudo para trás. A casa, os poucos móveis, criações, plantações... A propriedade que Florêncio havia recebido como herança do pai e cultivou por muito tempo iria ficar em completo abandono, pelo menos por um tempo. As extensões de suas terras eram propícias para a plantação de café, cana de açúcar ou criação de gado pelo vasto pasto que ali existia, apesar de ele nunca ter feito uso para tais coisas.

Numa mata como aquela, sem o barulho natural dos centros urbanos e onde somente o silêncio impera, fica fácil se ouvir o estrondo de um tiro, principalmente se tiver sido efetuado por uma arma de grosso calibre como a que foi usada pelo atirador. E como era previsto os outros seis homens que haviam ido averiguar o paradeiro da escrava nas imediações ouviram os disparos e retornaram às pressas, mas por sorte ao chegarem os dois já tinham se disperso do local.

Então, dividiram-se em dois grupos e saíram no encalço dos fugitivos, pois agora sabiam que a negra estava sob a proteção do homem de quem pediram informações e foram enganados. O casal já se encontrava a muitos quilômetros distantes dali. Cada vez mais se aproximavam de Cachoeira do Campo, local onde pretendiam encontrar Justino, filho de Ambrósio. O que não sabiam era que o mesmo já teria vindo naquela direção e não estaria mais ali e sim na antiga propriedade onde seus pais foram mortos, em busca de encontrar os culpados.

 Mas, de acordo com os planos designados pelo destino, eles ainda teriam que confrontar nova ameaça antes de chegar ao destino, pois o pior estava por vir a ambos. Parecia que Lucinete havia nascido em noite de lua cheia ou de completa escuridão.  E o nome que lhe foi dado não condizia com sua falta de sorte naquele momento. Tudo dava errado na vida daquela pobre mulher que desde pequena sofria miseravelmente.

Enquanto percorria o mesmo caminho onde dias atrás foi cercada pelos jagunços de Dionísio e viu seu guia ter a cabeça estourada bem a sua frente, maldizia em pensamento o mal destino que lhe perseguia desde sempre e que nunca permitiu que fosse feliz. Na verdade, estava assustada com a possibilidade de a mesma cena voltar a se repetir e dessa vez ser o novo amigo a perder a vida. Eles permaneciam calados durante a viagem. Um pequeno espaço separava os dois animais em que montavam. O silêncio era rompido somente pelo bater das grossas ferraduras presas nos cascos dos cavalos, pisando sobre o terreno de cascalho e acompanhado pelo soprar do vento que insistentemente assobiava nos seus ouvidos.

Florêncio se mantinha atento a tudo que se movia em derredor, tanto embaixo como que voasse pelo céu, para evitar surpresas. Porém, nem mesmo toda a sua experiência foi suficiente para não serem surpreendidos pelo inesperado, como havia acontecido na ocasião anterior. Acontece que desta vez não eram muitos os inimigos, tratava-se de apenas um e bem mais determinado em levar a fugitiva ao seu dono que os anteriores.

Luz ficou pasma de perceber que o homem com um rifle nas mãos, apontando na direção dela e de seu companheiro, tratava-se de Martim. Alguém que conhecia desde criança e sempre o considerou como um irmão, em quem pensou poder confiar plenamente. Sem entender claramente sua atitude, indagou:

— Martim, porque isso?

— Não me pede explicação de nada, mulher, tu é uma escrava fujona e vem comigo. E se esse ai quiser dá uma de valentão vai levar chumbo

— Pensei que fosse meu amigo, te via como um irmão

— Mas eu sempre te quis como mulher e fui rejeitado o tempo todo. Agora isso não interessa mais, vou te levar pro sinhozinho e ele vai me recompensar, vou virar jagunço ou capataz da fazenda

— Não acredito que está confiando nas promessas daquele monstro, Martim, ele não vai cumprir nada do que te prometeu

— Vai sim, ele é homem de palavra! E não discute comigo, segue de volta na minha frente, pois quero chegar na fazenda até o amanhecer

Depois de desarmar Florêncio, Martim lhes conduz de volta a fazenda dos Dantas pela estrada principal sem se preocupar em encontrar outros jagunços pelo caminho, pois estava sob a proteção do homem mais poderoso daquelas bandas e se alguém ousasse tocar nele seria punido no chicote.

Bem, pelo menos era o que ele acreditava, mas esquecia que os outros não haviam sido informados de sua missão. Jagunços, pistoleiros, caçadores de recompensa e todo tipo de pessoas foram convocadas pelo escravocrata. Foram contratados na missão de localizar e levar a negra de volta, aquela região estava tomada de pessoas ambiciosas que ansiavam ser recompensados por tal feito, encontrá-los seria perigoso.

Andaram menos de dois quilômetros em sentido contrário de onde o casal seguia anteriormente, quando o eco de um tiro se fez ouvir e o zumbido de uma bala raspou as orelhas do negro que conduzia os dois prisioneiros, forçando-o a uma manobra repentina para evitar ser morto. Num grito ordenou que o casal fosse para detrás de umas pedras enormes localizadas no campo aberto, para se protegerem. Estando os três ali, começou a troca de tiros entre Martim e os homens que buscavam tomar posse da fugitiva, eram em número de dois os que procuravam tirar-lhe a vida.

Florêncio insistia que lhe fosse permitido fazer uso de seu rifle para ajudar na defesa, mas o negro era teimoso e ordenava que não se atrevesse a tocar na arma. Depois de muitos disparos ficou sem balas. Os adversários perceberam a situação e saíram do lugar de defesa, atirando continuamente contra as rochas que protegiam os três. Na intenção de se aproximar e dominá-los, mas Florêncio era hábil no manejo com o rifle e rapidamente resolveu o problema.  De posse da sua arma, mesmo sem o consentimento do pistoleiro que o conduzia, disparou contra os dois oponentes que tombaram de rosto em terra. Feito isso se vira e aponta para Martim com os dois canos ainda fumegando.

 Com o dedo preso ao gatilho bastava um respirar mais forte ou um movimento brusco e um tiro seria disparado. Luz, que até então se manteve deitada sobre o terreno para se proteger dos balaços que rodopiavam pelas paredes feito de pedras, levanta num salto e coloca-se entre os dois inimigos. Ordenando que acabem com a ameaça. Era amiga dos dois homens e não queria a morte de nenhum deles.

 — Podem parar com isso! Baixem logo essas armas, pelo amor de Deus, chega de mortes!

 — Mande que ele baixe primeiro, aí eu largo também!

 — Você ouviu, Florêncio, atende!

 — Não seja infantil, Luz, esse maldito não tem o menor interesse em me manter vivo, se eu fizer o que me pede ele estoura meus miolos!

  — Tá certo, então os dois vão fazer isso juntos, ao mesmo tempo. Ou então, se querem mesmo se matar podem atirar através de mim!

Os dois homens, cujos olhares eram mais ferozes do que um tigre selvagem, amolecem diante das palavras da mulher. A mesma que aprenderam a amar e se desarmaram. Luz recolhe os dois rifles e saem dali a cavalo, em forte galope. Por causa do atentado sofrido no decorrer da jornada ele decide tomar um atalho por dentro da floresta para evitar mais surpresas.

Ao anoitecer param num determinado ponto e ali resolvem descansar. Luz, astutamente, inicia um diálogo com seu antigo amigo na esperança de conseguir convence-lo a desistir de entrega-la ao Barão do Café, revelando a Martim a verdadeira razão de ter fugido da fazenda. Ao ficar ciente de que Dionísio a havia estuprado e forçava que fizesse sexo com ele sempre que queria ficou indignado. O tempo que levou entre sua fuga e aquele instante era menor que trinta dias, ainda não era possível perceber a gravidez que até então escolheu esconder até mesmo de Florêncio. Agora era a hora ideal para falar sobre o assunto.

— Não posso acreditar que durante todo esse tempo você escondeu isso de mim, foi essa a razão de ter passado mal logo que nos conhecemos? Poderia ter cuidado melhor de você, da alimentação...

 — Sim, Florêncio, tenho me esforçado bastante para que não percebesse, não queria colocar maior responsabilidade sobre seus ombros, pois o que tem feito por mim já foi mais do que suficiente

— E por que não contou a Sinhá o que fez aquele satanás?

— Martim, não passo de uma negra, escrava como você e os outros de nossa tribo. Sinhá Joana me ama como se fosse sua filha, mas não possui poder algum para me livrar das mãos daquele infeliz

— Pois se já soubesse disso teria feito justiça com minhas próprias mãos contra aquele filho de uma égua, pois tive foi muita chance!

— E a essas horas estaria no tronco sendo açoitado até a morte, não é assim que vamos resolver as coisas

— E o que entende da vida de escravo? É negro de pele lisa, conheço teu tipo, nunca soube o que foi trabalhar na lavoura ou num canavial. É negro bem letrado, fala bonito

— Está correto, sou um negro livre, não sou propriedade de ninguém

— Logo vi, não sabe da peleja que nós escravos temos de passar pra sobreviver naquele inferno

— Não é necessário sofrer as mesmas injustiças para compreender uma situação, mesmo sendo livre entendo o horror da escravidão

 — Será que os dois podem parar com essa arenga e se preocupar numa maneira da gente se manter vivos?

Apesar da conversa ter seguido num tom amigável entre os dois homens Martim permaneceu empunhando sua arma. Não ficou menos que quatro metros de distância, parecia temer que Luz estivesse apenas tentando distrair sua atenção para que fosse dominado e pudessem fugir. Por isso assumiu o posto da guarda enquanto eles descansavam para a longa viagem que fariam na manhã seguinte.

O silêncio da madrugada era rompido pelo resmungar da coruja, a festa dos insetos e o leve soprar do vento que brincava com a vegetação. O vigilante diante de tamanha calma acreditou que nenhuma ameaça se aproximava e decidiu recostar-se numa das muitas arvores existentes ali, sob as quais se abrigavam. Coloca sua arma de lado e acende um cigarro. Trocou sua astuta atenção por um minuto de distração.

Depois de tanta labuta queria saborear o fumo que queimava. Mas a morte se aproximava dali a passos lentos, pisando suave sobre as folhas secas para não fazer barulho nem despertar suas vítimas. O estampido de um tiro de fuzil ecoou mata a dentro e o silêncio foi interrompido mais uma vez com o disparo certeiro junto com o baque de um pesado corpo ao chão. Sua queda se fez sentir bem aos pés da espessa arvore de pequi, onde os dois negros dormiam num sono profundo.

A fumaça do cigarro que queimava na boca de Martim ficou manchada de vermelho depois do respingar do sangue que saiu de seu crânio, estourado pela bala que veio da escuridão. Florêncio e Luz despertaram assustados com o barulho e nem tiveram tempo de entender o que havia acontecido já estavam sendo dominados, presos e amarrados pés e mãos pelos jagunços. Eles chegaram na calada da noite sem serem percebidos e aguardaram o melhor momento para atacar.

A moça olhava para o corpo do amigo de infância com seus olhos cheios de lágrimas, enquanto era arrastada juntamente com o novo companheiro de sofrimentos. O sol despontava por detrás da colina, quando eles já eram conduzidos pelos jagunços para a fazenda do Barão, onde certamente seriam punidos pela rebelião. Ela receberia como castigo o tronco, dezenas de chicotadas aplicadas pelas mãos do próprio

Dionísio e seu parceiro de fuga poderia padecer as mesmas punições ou ser morto da maneira mais horrenda. Joana era a filha caçula do antigo Barão do Café e irmã mais nova do cruel escravocrata, o mesmo que aguardava ansioso pela captura da fugitiva afim de castiga-la.

Puni-la pela ousadia de desafiar seu poder. Suas orações eram elevadas ao céu todos os dias e em diversos momentos, intercedendo aos santos mais poderosos para que protegesse sua menina da crueldade do irmão. Ela ainda não conseguia entender as razões que levaram Luz a fugir, e questionava se não teria de alguma maneira sido rígida demais com ela.

— Minha filha, não se atormente tanto sobre isso, de maneira alguma a fuga dessa escrava foi causada por alguma coisa relacionada a você

— Então me mostre outra razão de minha menina ficar tão angustiada ao ponto de decidir fugir dessa casa, mamãe?

— Eu não sei, Joana, mas você sempre foi tão prestativa no trato com ela que só posso entender ter sido por outra razão e não por sua causa

— Fico angustiada só de pensar no que irá acontecer com a pobrezinha depois que meu irmão colocar as mãos sobre ela

— Bem, quanto a isso já podemos muito bem imaginar o que irá acontecer

— É verdade, no mínimo será castigada no tronco, como ele costuma fazer com os outros escravos

A conversa das duas mulheres é encerrada e voltam aos seus afazeres, mãe e filha encontravam-se no pátio da casa grande, fazendo tricô. Desde a fuga de Luz nunca mais Joana se dedicou a leitura dos livros de poemas e aos romances com suas histórias apaixonantes. Sentia saudades de ouvir a voz de sua protegida, lendo belos contos de amor que alegrava seus dias. Justino, querendo vingar-se da morte cruel sofrida pelos pais e alguns dos seus servos estava decidido a descobrir os culpados.

Queria saber quem teria sido o verdadeiro responsável pelo massacre. Portanto, após dividir em grupos seus comandados partiram à procura de pistas que os levassem a esclarecer o caso. Não demorou muito para saber através dos comentários feitos pelas pessoas dos vilarejos próximos sobre os recentes acontecimentos.

 Onde o Barão do Café tinha ordenado a seus homens a saírem em busca da escrava fugitiva para que usassem de todos os meios necessários para localizar seu paradeiro e levá-la de volta à sua propriedade. De posse dessa informação entendeu que isso teria algo a ver com o ocorrido com seus genitores e optou em ir mais fundo nas suas investigações. Acompanhado por três dos militares que com ele chegaram na região dirigiu-se imediatamente às terras dos Dantas para obter mais esclarecimentos.

 E ao chegar ali solicitou que pudesse falar diretamente com o escravocrata, o que lhe foi devidamente concedido. Dionísio era um homem de estatura exagerada, media quase dois metros de altura e pesava um pouco menos de cem quilos. Pele clara, típica de um bom português, olhos amarelados e uma dentadura na boca repleta de ouro. Sua voz era macia, mas ao mesmo tempo maliciosa, seu olhar era profundo e parecia sondar a alma de quem por ele era observado. Isso assustava aqueles que ousavam confrontá-lo.

Entretanto, naquela manhã ele conheceria outro igual, frio e incapaz de se sentir intimidado por quem quer que seja. Justino desceu de sua montaria e dirigiu-se até a casa grande, onde era aguardado pelo proprietário resguardado por alguns jagunços armados até os dentes. Aqueles que acompanhavam o visitante permaneceram sobre seus cavalos e a certa distância hábeis atiradores estavam à espera. Prontos para qualquer investida.  Os dois homens se cumprimentaram com aperto nas mãos, trocando olhares venenosos. Eram estranhos um ao outro e possuíam em comum a mesma desconfiança. O dialogo deu-se inicialmente por parte do recém-chegado.

— Bom dia, sou Justino, possuo uma propriedade aqui próximo às suas terras, muito grato por me ter recebido

— Não há de quê, o agradecimento. Mas me fale, qual o motivo de sua visita?

 — Pois não, serei breve: A pouco menos de um mês alguns homens, que tudo indica pertencer a seus empregados, invadiram minha propriedade e mataram a sangue frio meus pais, já bem idosos, além de alguns de seus serviçais. Não contentes com esse feito, ainda atearam fogo na casa com os corpos dentro no objetivo de esconder as provas de seus atos. Assim, vim aqui para identificar os criminosos e puni-los conforme determina a lei

— Caro amigo, primeiramente me diga como adquiriu tamanha certeza de que se tratava de meus empregados e quem lhe deu tal informação?

 — E quem mais possui o maior número de jagunços nesta região? Soube que uma de suas escravas havia efetuado fuga recentemente e o senhor contratou homens de todos os cantos dessa região. No objetivo deles saírem nessa busca, ordenando que fizessem uso da força e de todos os meios para captura-la e traze-la de volta. Dessa forma é enorme a possibilidade de que alguns destes seus contratados tenha sido os responsáveis por tal crime.

— E o que levaria estes homens a cometer tal barbaridade com seus pais? Porventura estariam eles escondendo a escrava no interior de sua casa ou a ajudaram em fuga e se negaram a repassar tais informações, aumentando-lhes a ira a tal ponto de intentarem contra suas vidas?

— Estas explicações não posso lhe fornecer. Até agora o que sei, de acordo com o que me informaram alguns dos meus criados, é que uma de suas escravas que vivia livremente costumava ir visita-los. Seu nome era Luz. Mas não sei ao certo se ela estaria envolvida nessa história.

Ao ouvir tal informação do visitante Dionísio mudou de semblante e ficou visível o quanto estava indignado, mas não poderia deixar com que o investigador atribuísse a chacina a seus homens, encobrindo descaradamente a verdade.

—  Luz é uma das criadas de minha irmã, Joana, que apesar de possuir algumas regalias entre as demais não é livre, porém tem permissão para passear pela propriedade e as vezes exagera, indo além de minhas terras

— Entendo, sendo assim fica claro que a escrava fugitiva é outra?

— Sem sombra de dúvida. E se o amigo acredita que seus pais não deram qualquer guarida a fugitiva, então o ato terrível praticado contra eles não provém de meus homens

 — Muito bem, prosseguirei investigando até achar os culpados. Passar bem

Justino e seus companheiros retornam para o local do crime e procuram obter mais detalhes da situação com os negros que moravam com seus pais. Os quais sobreviveram porque estavam nos cafezais no dia do massacre, queria entender melhor como tudo aconteceu.

Enquanto isso, num plano que era feito para eliminar de vez os supostos inimigos dos Dantas, Dionísio reunia seus comparsas e ordenava fosse feita uma emboscada para matar aquele que ousava interferir nos seus atos, juntamente contra todos os que lhe auxiliavam naquela investigação.

Homens da pior espécie serviam aos mandados do rico fazendeiro que não permitia que seus planos fossem interrompidos por quem quer que seja. Sua primeira providência diante de tal situação era livrar-se dos que por qualquer motivo ameaçavam seus planos e tentavam atrapalhar seus propósitos malignos.

Devido ao poder e a riqueza que tinha sentia-se intocável e nessa arrogância pisava de queixo erguido sobre os mais fracos em força e condições financeiras. Por causa de seu temperamento violento e a enorme crueldade com que tratava seus subalternos ficou regionalmente conhecido como o pior dos Dantas.

Nem mesmo seu pai, nos tempos em que dominou com “varas de ferro” seus escravos, foi visto com tamanho temor e desprezo pelos demais donos de terras, que desejavam reciprocamente um dia surgir alguém de “sangue nos olhos” para encarar o maldito e expulsá-lo definitivamente daquela região.

E talvez pela providência divina seus apelos estariam perto de serem atendidos. Os tempos da maldade daquele homem chegava ao fim. Todos torciam para que de alguma maneira seu domínio fosse combatido com grande rigor, principalmente aqueles que viviam debaixo de sua tirania. Escravos, subalternos e até mesmo os familiares, como Joana e a própria mãe do infeliz carrasco sonhavam com esse momento.

Num daqueles dias um pobre escravo havia sido por ele açoitado até a morte. Qual o crime cometido? Ele simplesmente apoderou-se indevidamente de um fruto das árvores existentes no meio das plantações no intuito de matar a fome que lhe roía o estômago, essa atitude lhe custou a própria vida miserável após ser delatado por um dos capatazes. A crueldade do herdeiro da tão temida família Dantas era mais apavorante do que as chamas do inferno, ninguém ousava desafiá-lo. Aquela não seria a primeira nem a última de muitas outras barbaridades cometidas pelo maldito.

Com a chegada de Luz, a escrava fugitiva, o nível de sua ira alcançaria o ponto mais alto de seu desrespeito pela vida humana. Faltavam poucos minutos para que o sol se escondesse por detrás das colinas, quando são atrelados frente a ampla porteira da fazenda os animais que serviram de montaria aos perseguidores daquela que era aguardada com grande ansiedade pelo malfeitor.

A viagem foi longa e todos traziam estampado no rosto as marcas do cansaço, junto os dois prisioneiros que permaneceram todo o tempo amarrados, um de costa para o outro, sobre os lombos de um único cavalo. Com a chegada dos jagunços no local, trazendo os condenados como prêmio após semanas de perseguições um aglomerado de olhos surpresos e assustados reuniram-se para presenciar o triste acontecimento. Joana, bastante angustiada, saiu ao encontro da escrava que criou e educou com todo o seu amor. Porém, foi impedida de abraça-la por ordem do irmão que de imediato determinou que fossem levados diretamente para o tronco. O ódio refletido no seu olhar e a sede de vingança desenhado em cada movimento que fazia deixava claro que seria terrível o desenrolar daquela situação.

Principalmente depois de ter sido informado pelos subalternos que o forasteiro capturado juntamente com a negra era seu defensor e a ajudava na fuga. Dionísio não se importou pelo fato de uma multidão de outros escravos se fizessem presentes ali porque era de seu interesse executar o castigo reservado à fugitiva diante de todos.

 Os dois foram brutalmente arrastados até o tronco, local onde eram castigados a chicotadas aqueles que se rebelavam contra a autoridade do impiedoso Barão. Foram amarrados com seus corpos colados a um poste de madeira com os braços erguidos, presos a uma grossa corda que enroscava seus pulsos feridos, inchados, e que lhes obrigava a permanecer de pé.

 Permaneceram assim enquanto o irado carrasco descia sobre seus lombos as chicotadas que lhes rasgava as carnes suadas pelo calor intenso daquele início final de tarde que parecia acontecer lentamente. Foi um espetáculo para todos quanto tiveram coragem de assistir. Porém, tanto aquele que chicoteava os dois infelizes, quanto os que estavam na plateia não puderam ouvir um só grito de desespero saindo de seus lábios. De dentes cerrados eles suportaram a dor e não lhes deu o prazer de vê-los sofrer.

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