SEIS

Eu pensei que meu dia iria ser tranquilo. Que eu assistiria minhas aulas, faria novas amizades e iria me adequando lentamente à essa cidade estranha.

Que idiota sou eu!

Que idiota é o irmão da Anne!

Ele simplesmente fez do meu dia um inferno. Além de jogar meu tênis em cima do armário me fazendo perder a aula de educação física, ele também amassou todo o meu cadeado me impossibilitando de ter acesso ao que guardei. Se não fosse a Anne, nem sei como pegaria o material pra aula de inglês. Karolla e Anne foram pra aula de economia doméstica e eu segui pra sala onde a professora de inglês já estava. Vi que ele chegou logo depois. Ele deve ter tanto ódio de mim que nem para os meus olhos ele olha. Agora uma coisa me incomoda: por que tanto ódio e perseguição? Será ele um psicopata?

Com a sua chegada, o mesmo cheiro que incendiou o ônibus hoje cedo retornou. É dele. É tão bom, tão novo. Nem parece que um idiota como esse usa um perfume que transmite paz e boas sensações. Muito antes da professora começar sua aula, ele cai e parece sentir dores. Rapidamente muita gente fica em torno dele e eu, como boa curiosa, vou também. Parece que ele quebrou algum osso, assim, do nada. Deve estar doendo muito. Aproximo-me dele para saber se o mesmo está consciente.

_Ei, você está bem?

Ele não responde. Seguro em seu rosto e me aproximo para saber se ele está respirando. Seu cheiro de perto adquire um tom diferente. De repente ele abre os olhos e uma forte corrente passa pelo meu corpo. E sem querer, acabo falando o que nem eu entendi. E pior, ele também falou algo esquisito.

_Minha.

_Meu.

Ele me olha confuso e eu recuo me afastando. Ele parece querer se aproximar e se afastar ao mesmo tempo. Acabo saindo da sala às pressas. Minha cabeça começou a doer muito, muito mesmo. Comecei a enxergar as coisas muito turvas e embaçadas. Me apóio em algo que parece ser uma pia. Devo estar no banheiro. Lentamente meu corpo vai amolecendo e eu vou deitando no chão. Não chego a desmaiar, estou com os olhos bem abertos e fixos na parede, mas não tenho forças de sair daqui. De repente, juntamente com um forte tremor no corpo, imagens invadem meus pensamentos. Ou melhor, lembranças.

Lembrança on:

Tudo parece tão confuso. Mamãe chora sem parar e me abraça a todo momento. Eu não sei o que aconteceu, mas o papai não voltou desde ontem. Um amigo do papai está aqui conversando com a mamãe. O filho dele também veio, mas ele parece mal, com raiva. Nem comigo ele fala.

_Temos que ir atrás deles, Janine._O amigo da minha mãe repetia direto._Você vai arriscar deixá-los livres e sem punição?

_Eu vou embora com a Julienn. Eles vão querer matá-la se eu ficar nessa cidade._Vamos embora? E o papai não vai?_É melhor pra ela viver longe disso tudo. Tentarei protegê-la do seu lado sobrenatural o máximo que eu puder.

_Você vai fazer isso com a sua filha, Janine? Fazê-la acreditar que é igual a todos quando ela não é? Isso é um erro, o Paulo não iria querer que...

_O Paulo tá morto, Kaio!_Minha mãe berra me assustando e depois vira pra mim.

_O papai tá morto? Mamãe, cadê o papai? Morto?_Sinto as lágrimas tomarem conta do meu rosto._PAPAI! PAPAI! PAPAI!

Lembrança off.

Meus olhos novamente focam na parede, mas não com a mesma exatidão de antes. Eu estou chorando. As lágrimas borram minha vista. Outro tremor passa pelo meu corpo e mais uma vez lembranças chegam de surpresa.

Lembrança on:

Pedi por tudo pra mamãe me deixar ver meu pai, mas ela disse que ele tava doente e descansou. Ele não estava doente. Brincamos de pega-pega normalmente e eu sei quando ela mente. Nem vovó e vovô ela deixou eu ver. Agora ela está me puxando em direção ao carro onde já colocou minhas malas dentro.

_Mãe? Eu não quero ir._Tento me soltar, mas é em vão._Me deixa com a vovó Angélica, por favor.

_Você só tem 5 anos e eu sou sua mãe, Julieen. Vai pra onde eu for._Ela me coloca no banco do carro e passa o cinto._Está bem preso?

Nesse momento, um grande lobo surge atrás da mamãe. Somos todos lobos, é nossa herança sobrenatural. Antes mesmo que eu expressasse reação de surpresa, ela chutou o lobo sem olhar pra trás. Fechou a porta do carro, se transformou e acabou com ele. Ela entrou no carro um pouco ensaguentada e deu partida levando-nos pra muito longe. No caminho, ela me deu um vidrinho escuro e pequenino.

_Toma isso, Julie. Toma tudo. É pro seu bem, meu amor._Ela está chorando._Você um dia vai perdoar a mamãe por isso. Eu sei que vai. Agora toma.

_Tudo bem._Como uma filha obediente, tomei tudo. O gosto era ruim._Minha cabeça tá pesando...

_Ouve a mamãe, Julie. Você nunca conheceu seu pai, ele morreu de câncer com você ainda pequena. Nunca viu vovó Angélica e nem o vovô Joseph...

Mamãe dizia tantas coisas e minha mente estava uma confusão danada. Aos poucos meus olhos foram fechando e tudo foi se perdendo.

Lembrança off.

Recobro novamente a consciência e dessa vez não estou no chão do banheiro. O cheiro é familiar, mas não assimilo nada. Minha mente está embaralhada. Instintivamente minha mão vai até o meu nariz, pois o sinto molhado e quando olho pra minha mão nela contém sangue. Meu sangue. O que está acontecendo comigo? Quem eu sou?

^^


Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo