Capítulo 2

Porque o problema de querer é que eu quero você

O problema de querer é que eu quero você

O problema de querer é que eu quero você

E eu quero você o tempo todo

The Trouble With Wanting – Joy Williams

Sarah

Cinco anos depois

Depois da pior tragédia que poderia acontecer na minha vida, eu me fechei para o mundo, tornei-me uma mulher fria. Até hoje faço tratamento psicológico, a dor que sinto nunca passou. Durante um ano e meio depois da morte das minhas vidas, eu não conseguia me reerguer. Meu irmão, que é pessoa mais próxima que tenho, pedia diversas vezes que eu tentasse me reerguer, mas como eu poderia tentar sabendo que toda a minha felicidade havia sido destruída com a queda daquele avião?

Ninguém sabe o que é pensar que você tem a vida perfeita, o conto de fadas com o qual você sonhou desde criança, assistindo aos seus filmes de princesa, e, de um dia para o outro, seu conto de fadas foi totalmente destruído; uma bruxa má apareceu e levou as pessoas que você mais amava no mundo. Meu coração se estilhaçou e, mesmo com meu irmão implorando uma reação minha, eu sabia que nunca conseguiria fazer algo para colá-lo, ele estava simplesmente quebrado para o mundo.

Hoje em dia estou melhor, mudei-me para o Rio de Janeiro, consegui sair da depressão profunda em que me encontrava. Lógico que sou uma pessoa triste e que às vezes pensa que o melhor seria se eu tivesse morrido junto com minha família, pois depressão não tem cura e em alguns dias esse monstro vem me assombrar e me deixar desanimada mais do que já sou. Montei minha própria agência, a SGC-Comunicação, mas a minha decisão de mudar um pouco o meu destino sofrido só aconteceu quando sonhei com Biel e Carlos me pedindo para me reerguer. Eu sabia que teria de fazer isso por eles, mas mesmo assim, depois de longos anos, ainda dói muito. Todo dia, quando acordo e percebo que tenho que encarar mais um dia vendo pessoas felizes ao meu redor, facas entram em meu coração e o fazem sangrar; é assim o sofrimento de alguém que está vivo por fora, mas por dentro morreu há muito tempo.

Já que estou aqui, falando com vocês, contarei um pouquinho da minha rotina, afinal, não posso ficar só me lamuriando por aí.

Estou em um engarrafamento infernal — como sempre, o Rio de Janeiro é um dos lugares que tem o pior trânsito do nosso país —, isso porque era para eu estar na agência há uma hora, meu cliente já deve ter ido embora, então nem estou preocupada com que horas irei chegar para resolver os outros problemas que tenho pendentes. No rádio toca M.I.A da banda Avenged Seven Fold; pelo menos a música consegue me tirar do tédio em que me encontro.

Olhando fixamente o massacre,rezando pra que o sol nunca mais nasça

Vivendo outro dia disfarçado

Estes sentimentos não podem estar certos,me empreste sua coragem pra levantar e lutar,nesta noite

Ooh

Levante e lute

A luta aumenta cada vez mais, para me desafiar você precisa ser forte

Eu ando na sua terra mas não pertenço a ela, dois milhões de soldados não podem estar errados

Quando passo pelo acidente que aconteceu na pista, vejo que não foi nada grave, mas como as pessoas são curiosas, sempre têm que dar uma paradinha para ver a desgraça alheia e atrasam o trânsito. Os carros se dispersam e eu posso acelerar, entretanto, mal começo a dar velocidade ao carro quando um idiota resolveu correr mais que o permitido em uma situação dessas e bate na traseira do meu veículo, fazendo o carro girar na pista e eu, irresponsável, estava sem cinto de segurança. Isso fez com que minha cabeça batesse no volante; a batida foi tão forte que fico tonta imediatamente.

Quando o carro para de girar, vejo tudo duplicado e rodando. De repente, escuto um leve som de alguém batendo no vidro do carro. Mas estou tão nervosa por causa da batida na minha traseira, que a vontade que tenho é de matar o ser desprezível que não sabe dirigir. Acabamos de sair de um acidente e o idiota faz outro acontecer. Abaixo o vidro e, quando o faço, tem um homem com a expressão aterrorizada me olhando.

— Moça, você está bem? Você está sangrando, vou chamar uma ambulância.

Não consigo raciocinar direito, pois está tudo escurecendo, acho que a batida foi mais forte do que pensei. Escuto o imbecil que bateu em meu carro falando ao telefone, mas conforme as palavras vão saindo de sua boca, tudo escurece e só consigo escutar o nome dele, Doutor Douglas Maciel.

***

Acordo em uma sala branca escutando um apito enjoado. Quando vejo, estou com um cateter na veia, injetando-me algum tipo de remédio. Olho para o lado e vejo minha mãe... Espera, minha mãe está aqui?

— Mãe. — Minha voz sai horrível.

Ela se vira imediatamente e caminha até a cama. Posso ver quão preocupada está. Depois da grande tragédia, além de sofrer pela morte do neto, minha mãe ainda teve que manter vigilância sobre mim, com medo de eu tentar tirar minha própria vida. Lógico que pensei várias vezes em fazer isso, era a maneira mais fácil de acabar com a dor, mas eu não consegui, não fui corajosa o suficiente para cortar os pulsos, ou me entupir de remédios — bom, entupir de remédios quase consegui.

— Filha, quando recebi a ligação do hospital vim imediatamente para cá. Como você está, querida?

— Sentindo um pouco de dor de cabeça, só isso.

— Meu amor. Fiquei tão preocupada, mas já soube que você não foi culpada, bateram no seu carro. Na verdade, você tem um pouquinho de culpa por dirigir sem cinto, Sarah, onde você estava com a cabeça?

— É... Lembro-me vagamente de terem batido no meu carro, acho que a pessoa se chama Douglas ou algo parecido e, mãe, sem repreensões agora, por favor.

— É isso mesmo, ele é médico, trabalha aqui neste hospital e me pediu mil desculpas, disse que quando você acordasse iria vir aqui conversar com você. Ele é um fofo, querida — ela diz dando um leve sorriso, mas a preocupação não sai de seu rosto.

— Mãe, está tudo bem, ainda estou viva — digo, tentando amenizar as coisas, mas percebo que faço é piorar.

— Sim, você está viva, Sarah, e vai continuar até quando Deus quiser, então não me venha com isso de ainda estou viva, como se não estivesse. Eu sei que é difícil esquecer, meu amor, mas você precisa de uma aventura nessa sua vida.

— Dona Branca, pode parar com isso — falo, começando a me irritar.

— Não me chama de dona Branca.

— Tudo bem, mãe. Mas não vamos entrar nesse assunto novamente, só por hoje. Minha cabeça está explodindo e se for para a senhora começar, pode sair do quarto.

Trato-a com grosseria, mas eu não gosto quando ela começa a falar que eu tenho de seguir minha vida. Ninguém sabe a dor que sinto no meu coração até hoje, então não podem me julgar. Querem arrumar alguém para eu amar, mas uma pessoa com coração destruído não ama; mesmo se tentasse e eu nunca mais tentei, afinal, eu nem tenho mais um coração para chamar de meu.

— Tudo bem, querida, eu vou chamar o médico ou alguma enfermeira para verem se você está bem.

Ela sai do quarto, deixando-me sozinha. Fecho os olhos, tentando fazer a dor diminuir, quando a porta se abre novamente.

— Nossa, mãe, você foi rápida. — Abro os olhos lentamente e encaro a figura parada aos pés do leito do hospital.

— Bom, não sou sua mãe, desculpa. E desculpa também por ter feito uma bagunça hoje de manhã. — Olho para ele e agora, depois de toda confusão, percebo que ele é bem bonito; bonito é apelido, ele é lindo, com cabelos cor de mel e os olhos da mesma cor, um rosto tão jovem que não parece ser médico, como minha mãe disse.

— Acidentes acontecem, mas imbecis que saem dirigindo parecendo que estão em uma corrida de Velozes e Furiosos é outra coisa totalmente diferente. — Eu não consigo ser educada com todos que passam em minha vida e não é com este doutorzinho que serei.

— Eu sei que estava errado, mas você também estava sem cinto e outra, eu estava em uma emergência. Quando saí do engarrafamento, só pensei em acelerar, o problema é que não percebi que estava perto demais do seu carro. — Será que ninguém esquecerá o fato de eu estar sem o cinto?

— Já passou, não quero tocar mais no assunto. Não precisa se preocupar, o seguro cobre o conserto do meu carro. Então a porta está à sua disposição — digo, apontando o indicador para que ele se toque e suma da minha frente, mas parece que não é isso que ele pretende.

— Sarah, não precisa me olhar assim, eu sei seu nome, pois tive de pegar seus documentos para fazer sua ficha aqui no hospital.

— Isso não importa, eu quero que você saia — digo um pouco alto demais e a porta se abre. Minha mãe abre um sorriso ao ver Douglas e sei que isso não irá prestar, logo atrás entra outro doutor.

Descubro que ele se chama Fábio e ele me explica que tive uma concussão leve, mas que iria ter de passar a noite em observação por ainda estar sentindo dor de cabeça. Arrependo-me plenamente de ter falado que estava com dor; se eu não tivesse aberto minha boca, uma hora dessas já teria recebido alta. Depois de a enfermeira me dar um medicamento para passar minha dor, eles saem, deixando-me somente com minha mãe e Douglas. Na verdade, quando minha mãe percebe que Douglas não vai sair, ela mesma sai e a vontade que tenho é de dar um sermão da montanha nela por me deixar sozinha com este idiota.

— Bom, eu quero que me desculpe e que me deixe pelo menos resolver os problemas com o seu carro.

— Qual a parte do “seguro resolve” que você não entendeu?

— Nossa, estou tentando me desculpar com você pela burrada que fiz — ele diz, franzindo o cenho.

— Pensasse antes de bater no meu carro e me fazer passar a noite na merda deste hospital. — Quando eu disse que me fechei para ao mundo, eu me esqueci de dizer que a educação também foi para o espaço. Sério! Eu me tornei uma pessoa insuportável.

— Desculpa, mas a prioridade era a criança que estava me esperando aqui. Agora, se você não sabe aceitar um pedido de desculpas, eu não posso te obrigar, mas mesmo assim quero te pedir mil perdões por ter feito essa bagunça e agora vou fazer o que você quer e te deixar em paz. Melhoras! — falando isso, ele sai batendo a porta do quarto e eu fico pensando na criança. Será que está bem? Logo depois minha mãe entra me olhando com cara feia.

— Mãe, não começa — já digo, tentando impedi-la de falar qualquer besteira.

— Eu não disse nada.

O tempo passa e o medicamento que tomei começa a fazer efeito, até que caio no sono. Odeio dormir, pois os pesadelos aparecem com força total. Eles sempre voltam para perturbar minhas noites de sono depois daquele dia; nunca consigo dormir uma noite completa, deve ser por isso que sou mal-humorada assim.

Hoje estou no velório dos meus amores, com aqueles caixões, um preto e outro pequeno na cor branca, fechados, pois não restou nada que pudesse ser visto. Tento me despertar, mas lógico que eu não consigo e, como todo pesadelo que eu tenho desde quando Carlos e Biel morreram, quando está chegando perto do fim, vira um sonho. É quando eu me sinto próxima dos meus amores mais uma vez.

Ao contrário dos meus sonhos normais, hoje não vejo os meus anjos, vejo uma pessoa totalmente diferente sorrindo para mim e aqueles olhos cor de mel me prendem até que desperto assustada, olhando para todos os cantos à procura de algo que possa me explicar que porcaria foi essa.

Minha mãe está dormindo no sofá que tem no quarto onde estou e nem percebeu minha movimentação. Encosto-me novamente nos travesseiros e não consigo entender o que aconteceu, só pode ter sido a agitação de hoje que me fez sonhar com Douglas Maciel.

***

Saímos do hospital e eu agradeço mentalmente por não ter esbarrado com o tal doutor Douglas, ainda não consegui entender o sonho que tive com ele. Mamãe e eu pegamos um táxi, já que ela não veio de carro para o hospital. Fomos direto para meu apartamento, pois eu precisava de um banho.

Ao chegarmos, minha mãe faz um café bem reforçado para nós, com direito a bolo de chocolate e bolachas de nata, pois ela sabe que amo esses mimos. Logo depois vou para o banho e a única coisa em que consigo pensar é no porquê de Douglas estar no meu sonho. Tento deixar o pensamento para lá, mas de hora em hora os olhos dele vêm em minha mente, o que já está me deixando nervosa.

Deito em minha cama para relaxar, pois meu corpo todo dói; a batida pode não ter sido grave, mas o corpo humano sente as mudanças, o que faz o cansaço bater e me fazer dormir em questão de minutos. Quando acordo, já está tarde. Levanto-me, procurando por minha mãe. Chego à sala e a vejo ao telefone; está sussurrando e fico observando em silêncio até que escuto.

— Não, não foi tentativa de suicídio, bateram no carro dela. Sim, Diego, eu sei, mas quando você chega? — Passa um tempo e ela volta a falar. — Que bom, pois ela não gosta de se abrir comigo e só você consegue algo dela. Tudo bem, meu querido, até mais.

— Eu não vou me matar, mãe — digo repentinamente, assustando-a.

— Querida, você acordou. Quer fazer algo? — Tenta desviar a atenção do assunto.

— Mãe, eu não vou me matar — digo pausadamente.

— Querida, que tal você tirar umas férias com seu irmão? — Se ela soubesse o tanto que me irrita quando se faz de sonsa...

— Mãe, eu não vou me matar depois de cinco anos, vê se entende. Se eu fosse me matar, já havia feito há muito tempo! — grito para ver se fui bem clara.

— Desculpa, querida, mas eu morro de medo de... — Ela não consegue terminar, pois começa a chorar.

Aproximo-me dela e a abraço, tentando acalmá-la. Depois de algum tempo, ela sorri para mim e pergunta:

— Você não quer passar o fim de semana na minha casa, para relaxar?

— Vou pensar e amanhã te dou a resposta. — Ela sorri e se afasta. Nunca tive um relacionamento fácil com minha mãe, ela sempre foi fechada e sempre mimou mais meu irmão, e meu pai não se importa muito com nenhum dos filhos. Mas esses poucos momentos de ternura que temos é só para fortalecer o pensamento de que nos amamos.

***

Acordo na manhã seguinte ouvindo vozes vindas da sala. Levanto-me e coloco um robe por cima de minha camisola e encaminho-me para lá. Quando percebo o motivo do falatório, abro um sorriso enorme.

— Se você for falar para eu prestar mais atenção no trânsito, pode ir embora. Por que eu estou é com saudades e quero abraços — digo, sorrindo ainda mais ao ver a expressão do meu irmão.

— Eu vim aqui para brigar mesmo, mas você tem razão: a saudade falou mais alto. — Ele dá um sorriso lindo, que sempre me conforta, e vem me dar um abraço.

— Bom, vou deixar vocês dois conversarem enquanto dou uma caminhada na praia. — Minha mãe beija minha bochecha e sai.

— A que devo a honra desta visita, maninho?

— Bom... Mamãe me contou que você sofreu um acidente, então resolvi que vou passar uns dias aqui com você, afinal, você conhece a mamãe, ela queria vir de mudança para ficar aqui, mas ela tem afazeres lá em casa.

— Tipo evitar que nosso pai mande todos os funcionários embora. — Gargalhamos, enquanto Diego concorda.

Depois de rirmos bastante, eu continuo.

— Não foi tão grave o acidente, a mamãe é uma exagerada, mas se você vai ficar aqui, como fica o serviço na construtora?

— Estou de férias. Mas também conheci uma garota um dia desses em uma boate e ela mora por aqui, por isso eu tenho dois pretextos para ficar; cuidar de você e ficar com minha gata!

— Percebi que fui usada de desculpa para você vir para cá! — Começamos a rir um do outro.

Quando estamos juntos, minha vida fica um pouco melhor. Adoro quando meu mano vem me visitar e sem contar que sou uma irmã extremamente ciumenta, por isso já quero conhecer a garota com quem ele está no momento.

— Diga-me, quando vou conhecê-la?

— Na sexta vamos a uma boate comemorar o aniversário do irmão dela, se você quiser ir... Sabe, acho que você vai adorar a Sabrina.

— Festa não é para mim, Diego, você sabe que eu não saio há um bom tempo para festas.

— Eu sei e é por isso que você vai nem que eu tenha que te arrastar pelo cabelo. Falando em cabelo, o seu está bem estranho. Chama a mamãe para ir com você ao salão. Ela vai adorar o dia das meninas.

— Diego, não começa você também com esse papo de “você tem que mudar, Sarah”, você e mamãe sabem muito bem... — Ele me interrompe.

— Não começa você. Na sexta vamos sair e você vai estar linda, como era a minha irmã antigamente.

Encaro-o com certo ódio. Ele retribui o olhar de mandão que tem, mas sei que ele está certo. Nem sei quando foi a última vez que dei uma repaginada no visual, ultimamente só faço o básico, corto as pontas do cabelo, faço unhas e retiro a sobrancelha para não passar vergonha com os clientes.

— Tudo bem. Vou ver o que posso fazer, mas só vou se a mamãe for comigo.

Conversamos mais um pouco, rimos de algumas bobeiras que o Diego inventa, até o celular dele tocar e ele precisar ir embora para encontrar a Sabrina. Não sei se é impressão minha, mas acho que pela primeira vez meu irmão está apaixonado.

Caminho até meu escritório e vou até a mesa. Abro a gaveta, pegando uma foto que eu deixo guardada para não ficar revivendo a todo o tempo a tragédia. Uma foto em que se encontra uma família linda e feliz. Olho essa imagem, lembrando-me da vez que eu tive o sonho com meus amores. No sonho, eles me pediam para levar a vida da melhor maneira possível... E é neste momento que resolvo fazer o que Diego me pediu. Pego o telefone e ligo para única pessoa que vai me ajudar com o que preciso fazer.

— Luigi, sou eu, a Sarah. Preciso fazer uma mudança radical e eu só sei de uma pessoa que pode me ajudar... Você.

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