Capítulo 2

“O olho é a lâmpada do corpo, se teu olho é bom, todo o teu corpo se encherá de luz, mas, se ele é mau, todo O teu corpo se encherá de escuridão. Se a luz que há em ti está apagada, imensa é a escuridão".

Jesus Cristo.

Logo, recebi uma Paróquia para "pastorar", e me fui com as malas, os livros e toda a minha humanidade, afinal, santidade não vi nenhuma, mesmo sendo Ordenado. Os peitos ainda me olhavam, diretamente nos olhos!

Fui enviado à Santiago de Compostela. O padre, já muito velho, estava em péssimas condições de saúde! Alguém teria que o substituir, e fui o escolhido, por minha "capacidade acima da média"; tendo sido comparado aos outros padres recém-ordenados.

Assim que cheguei, fui recebido por um homem que ajudava no trato da Igreja. Seu nome era Enoch. Homem de uns trinta e poucos anos, bonachão, divertido, prestativo... Logo, pude perceber que fazia aquele trabalho com dedicação, mas sua aparência mostrava-me que tinha tantas dúvidas quanto eu, alternando-se, hora em luz, hora em trevas; o que me fez simpatizar com ele, logo de cara. Veio até mim, depois de perceber um olhar insistente sobre ele, enquanto limpava os bancos da Igreja. Esticou a mão, para me cumprimentar. Muito direto, me disse:

— Você, pela roupa, deve ser o novo padre. Prazer! Sou Enoch! E já aviso que não sou gay! Gosto, mesmo, é de mulheres!

Soltei uma gargalhada.

 — Tenho aspecto de gay?

— E gay precisa de aspecto? Já ouvi muitas histórias de padres que não são chegados à fruta, e você estava me olhando tão fixamente, que me incomodou! Desculpa, Padre... “Padre”, o quê? — Enoch, coçando a cabeça, meio sem jeito.

— Ruan Albarracin. Fique tranquilo! Apenas gosto de observar as pessoas, para sentir melhor a energia que elas carregam consigo — digo, quebrando a tensão que havia se formado.

— Padre vidente? Médium? — Enoch, com os olhos atentos e curiosos.

— Apenas Padre Ruan. — Enoch era perceptivo, apesar de parecer um tanto desligado.

— Sentiu minha energia, Padre Ruan? — Enoch, com um riso disfarçado entre lábios.

— Sinto que seremos bons amigos! 

— Ufa! Que bom! Ajudo muito o Padre Castañeda. Já é bem velho, um tanto chato e já está completamente gagá. Moro em uma casa, atrás do terreno da Igreja, que ele me deu, em troca de minha ajuda. Isso vai continuar assim? — Realmente, a cada minuto, a franqueza de Enoch me cativava!

— Não tenho pretensões de mudar nada por aqui! — digo, batendo em suas costas.

— Então, posso continuar trazendo minhas namoradas pra cá? Sabe, Padre, tenho minhas necessidades... — Enoch, com um sorriso irônico nos lábios.

Sorri novamente. Ele era bem direto, e isso me fazia ter confiança naquele homem que acabara de conhecer.

— Falamos sobre isso depois, Enoch. Mas, como já disse: não pretendo mudar as coisas por aqui. Leve-me até o Padre Castañeda. Quero me apresentar.

Enoch fez um gesto, com a mão, para que eu o seguisse.

A Catedral era imponente, desde a sua entrada. Uma construção muito antiga! Carregava naquelas paredes histórias que pareciam ser ouvidas no seu silêncio absurdo, enquanto vazia.

Os viajantes que passavam por ali, todos os dias, buscavam algum tipo de experiência, devido à sua história. Quando o peregrino vem à Santiago de Compostela, tem essencialmente um objetivo: ver o túmulo do apóstolo Tiago. Tiago de Zebedeu, ou Santiago Maior, fiel amigo de Jesus Cristo, dito o responsável pela evangelização hispânica. Morto pela espada, segundo o novo testamento, por Herodes Agripa I, rei da Judéia. Os restos mortais teriam sido transportados até a Galícia, onde foi enterrado, segundo a lenda. Esquecido durante cerca de oito séculos, foi a redescoberta do seu túmulo, por um ermida, e o bispo local que permitiu fazer, de São Tiago de Compostela, o lugar de relevo da Cristandade. 

Entrar aqui, na pele de um padre peregrino, e descobrir as maravilhas do patrimônio mundial da humanidade que aqui se encontram, e todos os mistérios que gritam aos meus ouvidos... Isso faria com que me deparasse com meu pior lado e as consequências disso. Pude perceber, assim que comecei a minha peregrinação pelos corredores daquele lugar, que minha vida nunca mais seria a mesma.

— Este lugar assusta um pouco, né, Padre Ruan? — Enoch, percebendo minha feição.

— Acho que a palavra certa não é “assustar”. Pouca coisa me assusta. A palavra certa seria "temer".

— Conhece a história deste lugar? Vou lhe contar. Sou bom em contar isso aos viajantes; principalmente, às guapas! Veja como me saio. Ham, ham: — Enoch, pigarreando.

 — O antigo peregrino da Idade Média, após uma longa e frequentemente perigosa caminhada, era finalmente recompensado, à sua chegada, pela beleza do lugar. Ele iniciava a visita da catedral passando pela porta do Paraíso, transformada, hoje, na chamada Porta da Azabacheria. Na atualidade, os visitantes preferem usar a porta principal da Praça do Obradoiro. O visitante moderno também recebe um prêmio, à semelhança do peregrino. Quando entra no recinto da catedral, vislumbra uma obra-prima da Arte da Idade Média. Logo por detrás da fachada barroca do Obradoiro, encontra-se outra fachada, apenas visível em alguns lugares. É a antiga fachada romana da Catedral. O Pórtico da Glória é a obra-mestra medieval da catedral. É da autoria do Mestre Mateo. Foram necessários, não menos de vinte anos, para o Mestre Mateo e os seus assistentes canteiros realizarem a obra. Os trabalhos finais levariam ainda mais tempo, só ficaria realmente concluída em mil duzentos e onze. O Pórtico que vemos hoje não é idêntico ao construído pelo Mestre, no momento da construção da nova fachada barroca, no século XVIII. Algumas estátuas foram deslocadas, estando, agora, no museu da catedral. A pintura policromada do pórtico está, hoje, na sua totalidade, praticamente desaparecida. O pórtico representaria a Jerusalém celeste, tal como está descrita no Apocalipse. É constituído por três arcos, um para cada nave da igreja. No arco da porta da direita, representa o Julgamento Final. No arco da porta da esquerda, episódios do Antigo Testamento estão representados. No arco central, no meio do tímpano, encontra-se o Cristo Pantocrator, um Cristo em toda a sua glória, após o Julgamento Final, daí o nome do Pórtico. — Enoch apontava cada um dos monumentos e belezas históricas, como se apresentasse pessoas de sua família. — Cristo mostra os seus estigmas, em sinal de triunfo sobre a dor e a morte. Ele está rodeado pelos quatro evangelistas. Ao seu lado, encontram-se os anjos que seguram os símbolos da Paixão, como a Cruz e a coroa de espinhos. Dispostos em arco de circunferência, reconhece-se os vinte e quatro velhos do Apocalipse, segurando, na sua maior parte, um instrumento de música. Estão a tocar uma sinfonia em honra a Deus. — Algumas vezes, parecia, mesmo, que se emocionava profundamente. — Aos pés de Cristo, está Santiago. Por debaixo do Pórtico da Glória, encontramos uma cripta, concluída pelo Mestre Mateo. Servia de sustentação ao pórtico, para compensar a irregularidade do terreno. De estilo Romano, a "Velha Catedral" faz, hoje, parte do museu. É o ponto de partida para as visitas guiadas, essas que eu ofereço, sabe? Já conheci belas guapas, nesta vida! — Ele sorri e continua: — Apesar do exterior da catedral ter sido mudado, ao longo do tempo, o seu interior conservou o essencial, da sua característica romana. A catedral é imensa! Depois de passar pelo nártex, onde se encontra o Pórtico da Glória, encontramo-nos perante a simplicidade da beleza da catedral de Santiago de Compostela, minha preferida, recheada de bancos para os fiéis, na nave central, e os seus inúmeros confessionários nas colaterais. O confessionário em Santiago é uma tradição, para o peregrino crente, que chega ao seu destino. Serve para ele se purificar, antes de se encontrar com o túmulo do apóstolo. Embora haja visitantes vindos dos quatro cantos do mundo, a igreja encontrou uma solução. Propõe confessionários em várias línguas. No fim da nave, por detrás do altar-mor, encontramos a Capela Maior. Este espaço, situado no centro da catedral, é o que mais salta à vista, no meio da simplicidade romana. Marca o lugar do local do túmulo de Santiago. Ele se encontra na cripta, logo por debaixo. A profusão exuberante do barroco esconde a estrutura original romana da Capela Maior. É preciso estar aqui, para ver todos esses anjos que suportam o baldaquim, todo esse ouro e essa prata, pontuados por milhares de detalhes diferentes, para tomarmos conta da riqueza artística e das maravilhas culturais, acumuladas ao longo dos séculos, em Santiago de Compostela. A estátua principal de Santiago, data do século XIII, e é da feitoria do Mestre Mateo. O peregrino pode vir beijar o seu manto, graças a uma escadaria, construída na capela, logo por detrás da estátua do apóstolo. As fotografias são, aqui, proibidas. Num lugar sagrado, como é o exemplo de uma catedral, evitamos passar por cima das proibições; claro, apenas algumas! — Ele sorri maliciosamente e continua sua explanação: — No cruzamento do transepto, debaixo da torre lanterna, encontra-se um imenso incensário, suspenso por um cabo. É o botafumeiro, feito de latão e banhado em prata. Pode conter até quarenta quilos de carvão e de incenso. Era utilizado na missa do meio-dia, do domingo, mas, por causa do desgaste da corda, a sua utilização é restringida aos momentos solenes, como a Páscoa e o Natal. Noutras ocasiões, é outro incensário menor que é utilizado. Tem o nome de "Alcachofa". Para mover o botafumeiro, é preciso um grupo de oito pessoas, que devem trabalhar em sincronia, para conseguir fazê-lo oscilar, no bom sentido... — Ele sorri novamente, enquanto observo, estupefato, toda aquela beleza. — O incensário poderá, então, se deslocar a toda a velocidade, no transepto da catedral, chegando aos sessenta e oito quilômetros por hora.  No século IX, existia uma igreja, um pouco mais distante da igreja primitiva de Santiago. Um mosteiro. Esse mosteiro, o mosteiro da "Corticela", tinha no seu recinto, uma pequena igreja. Com falta de espaço, num mosteiro tão pequeno, os monges decidiram fundar outro mosteiro, do outro lado da catedral: o mosteiro de "San Martin Pinário". A igreja é, então, confiada à catedral e totalmente transformada em paróquia dedicada "aos peregrinos, aos estrangeiros e aos bascos". Na capela gótica de São Fernando, acessível a partir do claustro, encontra-se o "Tesouro". É aqui que são guardados os objetos preciosos da catedral, para o serviço litúrgico. A maior obra do Tesouro é um grande ostensório do século XVI, realizado pelo grande ourives espanhol Antônio de Arfe, no estilo plateresco. Os arquivos da catedral são acessíveis a partir do claustro. Encontramos nos arquivos um dos manuscritos mais preciosos: o Códex Calixtinus. Estes textos são muito úteis, para compreendermos melhor a vida do peregrino do século XII. O Códex foi escrito por volta do ano mil cento e quarenta. Podemos encontrar nele o "Guia do Peregrino de Santiago de Compostela", uma espécie de livro-guia da época! O seu autor é, provavelmente, um francês de nome Aimey Picaud, monge do Parthenay-le-Vieux. A Cripta do apóstolo Tiago é o objetivo último do peregrino. Toda a Catedral, toda a cidade, foi construída em redor do derradeiro objetivo do peregrino: o túmulo do apóstolo Tiago, o Grande, discípulo de Jesus Cristo e evangelizador da Península Ibérica, segundo os dizeres da tradição. O túmulo se encontra por debaixo da catedral, no interior da cripta. No relicário em prata, se encontram os supostos restos mortais do Santo. É o destino supremo do peregrino, que pode, deste modo, render uma homenagem, por alguns segundos, ao discípulo de Jesus, evangelizador da Espanha. O culto dos Santos, do qual Tiago faz parte, é considerado como uma idolatria, pelas igrejas protestantes; e uma transgressão da igreja católica, perante o monoteísmo do Islã ou do Judaísmo. Quanto a mim, posso admirar o gênio criativo do homem durante um milênio, estando, todo ele concentrado num espaço majestoso, como é a catedral de Santiago de Compostela. Emana daqui uma atmosfera muito particular, que a torna diferente das outras catedrais: os peregrinos de mochila às costas devem ter alguma influência! Não sei, ao certo, mas para mim, aqui, as coisas parecem mais verdadeiras... Principalmente aqui, no culto aos Santos.

— Parabéns! Você é um ótimo guia! O lugar é realmente fantástico... Posso ter acesso ao Códex Calixtinus? — indago, feliz, pela história interminável ter chegado ao final.

— Isso é com o Padre Castañeda... Vamos. É ali seu aposento! Ficou intrigado com o Códex? Eu também, mas apenas uma pessoa que conheço teve o privilégio de tocá-lo, sem ser o velho padre. — diz Enoch, me guiando por um corredor.

— E quem é essa pessoa? — pergunto, curioso.

— Madalena... A linda e inteligente Madalena! — diz Enoch, com admiração.

Logo, estávamos à frente de uma porta muito antiga, de madeira de lei; e sentia que, ao entrar naquele quarto, algo iria mudar toda a minha vida!

             

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